A Cidade da utopia

Ela existe, chama-se Christiania e ocupa uma desativada base militar de 340 metros quadrados nos subúrbios de Copenhague, capital da Dinamarca. Sem leis e hierarquia, cultiva regras próprias, celebra a liberdade individual e cultua um estilo de vida progressista. Sua porta de entrada é um arco sobre dois totens. Ali, os moradores não querem viver da mesma forma que as pessoas ditas normais. Formam uma espécie de sociedade alternativa, sem governo institucional, que está completando quatro décadas de existência - ou melhor, de experiência social.    

Fundada em 26 de setembro de 1971 por hippies, anarquistas, artistas e intelectuais, que criticavam a rígida e burocratizada política habitacional dinamarquesa, é uma espécie de paraíso perdido. Entre os seus aproximadamente mil habitantes atuais, incluem-se também aposentados, imigrantes, sem-tetos, desempregados, mães solteiras e beneficiários do sistema social escandinavo. Uma comunidade irmanada na atitude de rejeitar certos valores morais, renunciar às conquistas da civilização moderna e propagar princípios de uma vida utópica. Foi neste mundo à parte que conceitos hoje difundidos como meio ambiente e sustentabilidade ganharam corpo, voz e ressonância.

A existência de Christiania, no entanto, está ameaçada. O sinal amarelo vem do atual governo conservador da Dinamarca, que decidiu apertar a política em relação ao bairro. Repetindo a má-vontade de outras administrações passadas, eles entendem que neste lugar impera a desordem e se transgridem os bons costumes. Por conta disso, vários planos já foram produzidos para normalizar e legalizar o local que, entre outras ousadias, permitia o livre comércio de drogas.

Batidas policiais, ações repressivas e ordens de prisão foram práticas comuns durante esse tempo todo. Acuados, os próprios residentes decidiram em 2004 impedir a venda de substâncias pesadas dentro de seu território. Hoje, a atividade até persiste, mas em nível recatado, longe da visão alheia. Nem tanto, se levar em consideração que em março passado a polícia apreendeu quase 24 quilos de haxixe em uma incursão ao lugar.   

A tensa e conflituosa relação com sucessivos governos, aliás, já deixou de ser novidade. Num momento, negocia-se a renovação urbana. Em outro, a intenção velada das autoridades é desmantelar o espaço. Depois, querem só derrubar as casas fixadas nas margens do lago. Os 35 hectares de terra dali são valiosos. Para os christianistas, não há dúvida de que, passa ano entra ano, o intuito é desintegrar Christiania e o conceito que a envolve e justifica.

Sem proprietários. Apesar dos inimigos históricos, a autoproclamada cidade-livre vai sobrevivendo. Pelas ruas desalinhadas e freqüentemente não pavimentadas, a circulação de automóvel é proibida - bicicleta é o meio de transporte preferencial -, assim como não é permitido tirar fotografias. Não se percebem diferenças de classes sociais. Cada um se dedica ao trabalho da maneira que melhor lhe convir. Trabalhar mais significa a possibilidade de ter mais conforto. Menos, leva-se uma vida mais simples.

Se um músico quer apenas levantar alguns trocados para sobreviver de sua arte, sem se sujeitar às draconianas regras da indústria fonográfica, a opção é absolutamente respeitada. Ninguém é discriminado. Uma parte dos moradores tem emprego, outra é sustentada pelo poder público e existem aqueles sem rendimento oficial.

O bairro se auto-sustenta com oficinas de artesãos, bares, cafés, restaurantes, centro cultural, clube social, “caixinha” local e um comércio de venda de artesanato e peças de roupas para turistas. Não há contratos de aluguel e nenhum morador é proprietário de imóvel – barracos restaurados, velhos galpões e casas ecológicas. Um dos privilégios, aliás, é construir livremente, sem as imposições do mercado imobiliário, o que fez brotar residências com designs únicos e psicodélicos. 

Tal “regalia”, porém, está por um fio. Neste ano, a Suprema Corte da Dinamarca confirmou a propriedade estatal e o controle da terra. De olho no potencial de investimento da área, agentes imobiliários começaram a bater ponto por ali. Pressionados pela ameaça de despejo, por não terem recursos financeiros para adquirir suas moradias, os christianistas se uniram e levaram a batalha para os tribunais. As negociações para uma saída pacífica já começaram e a luta promete estender-se. Se os partidos de esquerda, mais favoráveis aos postulados da comunidade, ganharem as próximas eleições, eles ainda poderão ser salvos.

Bandeira e hino. O desaparecimento de Christiania significaria a destruição de uma experiência de sociedade bem-sucedida em vários pontos. Aqui, os ocupantes recolhem e reciclam o próprio lixo e limpam suas ruas.  Cada membro aprende a respeitar o próximo e resolver os conflitos democraticamente. As decisões sobre o orçamento local, que paga despesas com luz, água, esgoto, taxas municipais e um conjunto interno de serviços, são sempre tomadas em comunhão. Todos podem ir às reuniões e assembléias e dar a sua opinião. Nada se decide por votação, mas consenso. Trata-se de uma democracia popular que exige muita disciplina, paciência e espírito comunitário. O diálogo abrangente e aberto tem mais peso que uma lei.  

Neste território livre, sem burocracia, apoiada na autogestão e com moeda própria, um lema dá o termômetro dessa nova ética de convivência: “A nossa sociedade é economicamente autossustentável e vamos continuar firmemente convictos de que é possível evitar a miséria física e psicológica”. A comunidade criou até uma bandeira, de fundo vermelho e três esferas amarelas representando os pontos nas letras “i” do nome. E uma canção de protesto, escrita em 1976 por um grupo de rock dinamarquês ligado ao movimento flower power, virou hino oficial do lugar – Você Não Pode Matar-nos. 

Com percalços e contradições incrustados em sua história, Christiania assume um estilo alternativo de vida que pode incomodar quem prefira um cotidiano mais tradicional e burguês. Nos últimos anos, tornou-se o terceiro ponto turístico mais visitado de Copenhague, suprado apenas pela escultura da Pequena Sereia, figura inspirada num famoso conto do escritor dinamarquês de histórias infantis Hans Christian Andersen, e pelo parque de diversões Tívoli. Talvez seja mesmo um destino atraente para sonhadores, descolados e gente em busca do diferente num mundo cada vez mais igual.

 

Edgar Olimpio de Souza

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