EDITOR: Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

 

  • Font size:
  • Decrease
  • Reset
  • Increase

Quem tem medo de Norma Bengell?

A última vez em que ela apareceu publicamente foi na festa da 10ª edição do Grande Prêmio de Cinema Brasileiro, em junho passado no Rio de Janeiro. Sentada em uma cadeira de rodas, e homenageada por Marieta Severo, a atriz revelou que havia oito meses que não saía de casa e que precisava trabalhar. “Não posso mais atuar, mas dirigir seria muito importante para mim. Pode ser uma novela, um seriado, qualquer coisa”, desabafou. Projeto ela tem: um média-metragem sobre o cartunista e ilustrador carioca J. Carlos, que seria produzido pelo cineasta e documentarista Silvio Tendler. “Eu consigo trabalhar de cadeira de rodas, só preciso de alguém que me apóie”, garante.

Aos 76 anos, sem filhos e viúva, Norma Benguell está lutando para sair de uma crise financeira que começou na prestação de contas do filme O Guarani (1996) – como não tem uma fonte de renda fixa, já se desfez de jóias e quadros para amortizar as dívidas. Ao lado dela trabalha Vilma Gomes, sua acompanhante e amiga há duas décadas. Sua atual limitação física deve-se ao fato de no ano passado ter escorregado num tapete de casa, sofrido um tombo e precisar operar a coluna e o cotovelo. Por conta disso, passou muito tempo ora internada no hospital ora cumprindo uma extenuante jornada de fisioterapia.

Quase cinqüenta anos depois da estréia de Os Cafajestes (1962), de Ruy Guerra, clássico do Cinema Novo protagonizado por Jece Valadão e Hugo Carvana, até hoje a figura mítica da atriz e cineasta continua associada à da mulher que ousou desafiar os costumes numa época de acentuado conservadorismo. O que mais chamou a atenção neste cultuado longa-metragem foi uma “escandalosa” sequência de quatro minutos em que a atriz, então com 27 anos, aparece completamente despida correndo na praia. Foi o primeiro nu escancarado do cinema nacional. “O Celso Amorim (N.R.: ex-ministro do Governo Lula) era assistente de direção e escondeu o rosto atrás de um livro vermelho do Mao Tse-Tung”, diverte-se ela, que dois anos depois estrelaria outra produção controvertida, Noite Vazia, de Walter Hugo Khouri.

Uma das intérpretes mais bonitas e sensuais do cinema nacional, que chegou a ser comparada à musa francesa Brigitte Bardot, Norma ainda é uma referência. Sua trajetória é uma colcha de eventos marcantes. Depois de fazer sucesso como vedete nos espetáculos de Carlos Machado, estreou na tela grande em 1959, contracenando com Oscarito em O Homem do Sputnik (foto ao lado), de Carlos Manga. Gravou um disco de sotaque bossa nova, Ooooooh! Norma (1959), em que aparecia seminua na capa. Viveu e trabalhou no cinema na Europa, namorou homens belíssimos, como o ator francês Alain Delon, e foi seqüestrada durante o regime militar brasileiro. Pregou o ideário feminista no Brasil e foi chamada de sapatona.

“Nunca fico fora de moda porque sou atriz e não um corpo”, costumava dizer, ironizando as mulheres que se diziam atrizes, mas cuja fama se reduzia às curvas e não sobreviviam além de um verão. Quatro anos atrás, abalada emocionalmente, abandonou uma montagem teatral que mal tinha estreado. “O médico me obrigou a voltar para o Rio de Janeiro”, justificou, na ocasião. Na televisão, seu último trabalho foi no seriado Toma Lá, Dá Cá (2009, na Globo), na qual interpretava a personagem Deise Coturno. Em 2010, subiu aos palcos em São Paulo com a peça Dias Felizes, de Samuel Beckett, dirigida pelo amigo Emílio Di Biasi. Nesta entrevista, realizada pouco antes do acidente doméstico, ela repassa momentos importantes da sua vida. 

 

Edgar Olimpio de Souza     

 

Os Cafajestes vai completar meio século no próximo ano. Você imaginava que a cena de nudez na praia fosse gerar tanta polêmica?                                                                  

No fundo, pegou todo mundo de surpresa. O diretor Ruy Guerra avisou que, se não gostasse do resultado, cortaria a sequência. Ele me pediu para entrar na água, tirar o maiô dentro do mar e depois correr pela praia. O Ruy botou a câmera em cima de um jipe e filmamos de uma vez só. O Celso Amorim era o primeiro assistente de direção e escondeu o rosto atrás de um livro vermelho do MaoTse-Tung (risos). Como ninguém tinha dinheiro, quem produziu foi o bicheiro Castor de Andrade.

 

O filme despertou a ira dos setores reacionários, que não gostaram nada do que viram...                                                        

A TFP (a organização Tradição Família e Propriedade) exigia que meu nome fosse removido de todos os cartazes e chegou a promover uma passeata contra mim.Avisaram que se eu fosse para Belo Horizonte iria morrer a pauladas. Alguns cinemas no Rio de Janeiro foram fechados, o que afetava a nossa sobrevivência porque vivíamos das bilheterias e não do dinheiro do Estado. Havia pressão para que o filme (foto ao lado) tivesse cortes. Até cortaram as cenas mais fortes. Aproveitei que o clima político estava começando a pesar, e que eu acabara de filmar O Pagador de Promessas, e me mandei para a Itália.

 

Os tempos mudaram mesmo e hoje a nudez é até incentivada...                                     

Eu prefiro dizer que hoje em dia o nu feminino virou um artigo vulgar. Não tem mais peso político, apelo transgressivo, perdeu completamente o sentido de contestação. Virou mera exibição do corpo. Mas não tenho nada contra, cada um faz o que bem entende com o seu. Só me reservo o direito de achar feio ou não. Por exemplo: o fio dental é um horror, deixa aquelas duas bolotas de fora. Isso não quer dizer que a alternativa seria vestir um maiô do tipo daquele usado pela Esther Williams (atriz e nadadora americana famosa nos anos 1940 e 50). Eu prefiro um biquíni normal, que exibe o corpo da mulher sem exagerar. 

 

Por que a temporada italiana não deu muito certo?                                                     

Quem disse que não deu? Eu entrei e saí pela porta da frente. Por causa do sucesso do filme O Pagador de Promessas, que ganhou o Festival de Cannes em 1962, o Dino de Laurentis (produtor de cinema italiano) me convidou para trabalhar no cinema italiano. Eu atuei ao lado de artistas importantes como Renato Salvatore, Alberto Sordi, Jean-Louis Trintignant e Catherine Deneuve. Convivi com os diretores Visconti, Fellini, Monicelli, Pasolini. O prédio em que eu morava com o meu marido era uma referência e os paparazzi subiam nos telhados. Só fui embora porque o meu casamento havia acabado. 

 

O fato de ter namorado o ator Alain Delon deve dar inveja em muitas mulheres...

A gente se conheceu quando eu filmava Mafioso e ele O Leopardo. Estávamos hospedados no mesmo hotel, em Palermo. Foi uma relação forte, intensa, mas não casei porque não o amava o suficiente. Ele se apaixonou loucamente por mim, mas era muito mulherengo e ambíguo, cada dia estava com uma pessoa diferente. Não era homem para mim. Várias vezes ameacei de ir embora. Aí, na hora de eu dormir, ele tocava Rachmaninoff (compositor russo) e me acordava com Ne me quitte pas. Até hoje somos amigos. Como amante, Alain Delon (foto acima) era o máximo.

 

Você era muito namoradeira?                                                                                          

Não me escapou ninguém, namorei todo mundo: o Renato Salvatori (ator italiano), o Jean Sorel (ator francês), o Vianinha (ator, dramaturgo e diretor brasileiro). É bom citar ao menos um brasileiro para não me acusarem de entreguista! Eu e a Odete Lara (atriz e cantora) aprontamos muito na Itália. Eu só namorava homens bonitos. Fui casada com o ator Gabriele Tinti, que era considerado o homem mais bonito do mundo. Casamos nos Estúdios Vera Cruz e meus padrinhos foram os técnicos que trabalhavam lá. A gente se separou anos depois porque ele era o típico marido italiano, que acha que a mulher, depois de casar, deve engordar e ficar em casa. Impossível, eu era completamente famosa. 

 

Ter sido comparada à atriz francesa Brigitte Bardot prejudicou a sua carreira?

De maneira alguma. Eu não levava isso a sério, sou meio anárquica. Na verdade, era ela quem se parecia comigo. E mal parecida, porque bebe e está toda encarquilhada (risos). Mas eu a admiro. Nos últimos anos ela tem desenvolvido um trabalho que julgo bem interessante e nobre, o de defender os animais. Esse título de Brigitte Bardot brasileira me persegue até hoje e acho uma grande injustiça porque tenho uma carreira nacional e internacional consolidadas. Tenho um trabalho a mostrar.

 

A sua beleza sobressaiu mais do que o seu talento? Um rótulo incomoda?

Sou uma mulher que nunca fica fora de moda porque sou atriz e não um corpo. Na época do filme Os Cafajestes tentaram colar uma aura libertária à minha carreira e me transformar em musa do Cinema Novo. Mas eu estava preocupada com outras coisas. Nunca fiz Playboy, por exemplo, por absoluta falta de tempo. Eu era bonita, levava muitas cantadas, era assediada na rua. Uma vez, aqui em São Paulo, tive de me esconder num hotel para fugir de um bando de homens. A beleza ajudou, abriu portas, não nego. No amor, alguns homens observavam mais a minha forma física que a minha pessoa. Mesmo assim, eu aproveitava. Quer? Toma lá, dá cá. Nunca fiz análise. Na única vez que tentei deitar no divã, me apaixonei pelo analista. 

 

Aproveitando a frase: no seriado Toma Lá, Dá Cá, exibido pela Rede Globo até 2009, a sua personagem Deise Coturno deu o que falar...

Era uma personagem masculinizada, que vivia sendo chamada de sapatona e não contestava. Isso acabou incomodando a muita gente. Diziam que o comportamento dela prestava um desserviço ao movimento gay. Que bobagem! A Arlete Salles interpretava uma avó que dava para todo mundo, ninguém escapava. Não vi preconceito algum nesse caso. Era uma brincadeira do autor Miguel Falabella. Se algumas pessoas levaram para o lado da maldade, é porque não entenderam o humor do programa.

 

Esse tipo de polêmica chegou a te aborrecer?

Para falar a verdade, eu só soube da repercussão pela imprensa. Na minha frente ninguém jamais condenou a personagem. Ao contrário até, ela era vista como engraçada. Conheço moças assim, tenho uma amiga no teatro com esse jeito masculino. Qual o problema? Mesmo sofrendo preconceito, a Deise Coturno (foto acima) fazia bastante sucesso entre os moradores do condomínio. Essa polêmica pode ter sido forjada.

 

Por que em certos momentos da sua vida algumas pessoas gostavam de especular sobre a sua sexualidade?

Quando voltei da França, na década de 1970, cheguei pregando um discurso feminista.  Comecei a lutar pela libertação da mulher, pela liberação da sexualidade. Eu estava sendo coerente com a minha vida e trajetória. Então me deparei com um Brasil atrasado e conservador. Fui chamada de sapatona, sapatilha. Uma mulher não podia ser livre e transar com quem quisesse. Era proibido defender o uso de pílula anticoncepcional. Alguns padres me impediram de cantar em um show na PUC do Rio de Janeiro.

 

Pelo jeito, você tinha a sensação de estar pregando no deserto...

Tanto que achei melhor desistir dessa história de feminismo. Vi que não valia a pena me queimar num país onde ninguém me entendia. Na França eu convivi com a Simone de Beauvoir, que me ensinou muito sobre a condição feminina. Eu guardo ótimas lembranças dela. Um dia ela interrompeu o nosso papo porque o Sartre ficava numa esquina vendendo o seu jornal e ela temia que ele pudesse ser atropelado! 

 

No auge do regime militar, você não chegou a ser vítima de seqüestro?                         

Fui sequestrada na Rua Xavier de Toledo, em 1968, durante a temporada da peça Cordélia Brasil no Teatro de Arena. Uma noite, na saída do hotel, eu e o diretor Emílio Di Biasi fomos abordados por quatro homens. O Emílio tentou me defender, foi golpeado e caiu no chão. Eu fui jogada violentamente para dentro de um fusca. Enquanto o Emílio acionou a Cacilda Becker, que tinha muitos contatos políticos, eu fui parar no Rio de Janeiro.

 

O que aconteceu lá?                                                                                                     

Permaneci presa durante dois dias. Eles queriam que eu denunciasse os supostos comunistas infiltrados no teatro. Acabei sendo liberada sem denunciar ninguém. Como nessa época os artistas viviam ameaçados, decidi me exilar na França em 1971. Numa entrevista a jornalistas franceses chamei o presidente Médici de urubu-rei. Cancelaram o meu passaporte. A sorte é que eu tinha passaporte italiano.

 

O filme O Guarani, que você produziu e dirigiu em 1996, até hoje rende processos na Justiça. Na prestação de contas, você foi acusada de ter desviado dinheiro público. Encara isso como perseguição política ou aconteceu, de fato, um equívoco contábil?

Tem gente que jura que fiquei milionária! Antes tivesse porque o filme alcançou doze milhões de espectadores na Rede Globo, foi exibido na China, Inglaterra, Portugal e Estados Unidos e lançado em DVD. Cadê a fortuna que eu teria roubado? Não vou me eximir de culpa. Levei dez anos nesse trabalho e quando finalizei a obra, olhei a minha conta bancária e vi que só tinha ganhado dezessete mil reais. Não acreditei.

 

O valor estava errado?

Um produtor executivo me disse que um diretor faturava de 400 a 500 mil reais em produções de grande porte. Aí eu acrescentei esse valor, cobrei e não avisei ao Ministério da Cultura. Pronto, começou a confusão. Fui indiciada por evasão de divisas, lavagem de dinheiro e apropriação indébita. O processo criminal foi arquivado, sobrou o tributário. Toda essa história me magoou muito.

 

O cinema feito atualmente no Brasil te agrada?                                                           

Temos uma produção qualificada, diretores e atores talentosos, filmes preocupados em denunciar problemas atuais. Só não gosto da necessidade de se criar rótulos, como “cinema marginal”, “pornochanchada”, “cinema isso”, cinema aquilo”. Cinema é um só. Não sei se hoje tem espaço para filmes diferentes como A Idade da Terra, do Glauber Rocha, que eu fiz. É tão lindo quanto incompreendido, embora eu acredite que ainda será compreendido um dia.

 

Como foi trabalhar com o Glauber Rocha?                                                                 

Lembro que nos primeiros dias de filmagem eu cheguei com o texto na ponta da língua. Aí o Glauber pediu para eu esquecer tudo e acabei inventando uma mulata. Eu e ele éramos dois bicudos que não se beijavam, mas se amavam muito. Ele era alucinado. Queria que eu fizesse um outro filme no qual eu escalaria nua os Andes acompanhada de guerrilheiros. Recusei porque não sou louca. 

 

Quatro anos atrás você sofreu um colapso nervoso logo no início da temporada da peça O Relato Íntimo de Madame Shakespeare. Chegou a pensar que não tinha mais condições físicas e emocionais para atuar?

Eu estava afastada do teatro havia duas décadas e enfrentava problemas pessoais na ocasião. Eu esquecia as falas e a temporada da peça (foto ao lado) foi interrompida na primeira semana. A minha amiga Sônia Nercessian (fotógrafa e produtora), com quem morei vários anos, tinha morrido recentemente de câncer e a história me abalou emocionalmente. Não conseguia me concentrar em cena, sofria de pressão alta. No quarto dia desabei no palco e fui parar no hospital. O médico me obrigou a voltar para o Rio de Janeiro. Foi decepcionante porque o espetáculo era uma homenagem a ela.

 

Nunca quis ter filhos?

Nunca. Aprendi a viver só, embora faça questão de cultivar os amigos. Filho é um assunto delicado e a educação exige atenção especial, um corpo-a-corpo diário. Como vivia trabalhando, filmando, viajando, não tinha tempo de pensar em maternidade. Meu filho ia ficar com quem? Com minha mãe? Aí não seria o filho da mãe, mas da avó.

(Foto da capa: Norma Benguell na peça Dias Felizes / foto de Suzane Sabbag)

 

 

Veja cenas do filme Os Cafajestes:

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Comente este artigo!

Modo de visualização:

Style Sitting

Fonts

Layouts

Direction

Template Widths

px  %

px  %