EDITOR: Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

 

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Leviatã

A obra do cineasta russo Andrey Zvyagintsev mira o atual estado das coisas numa Rússia pós-soviética convulsionada pela corrupção e pelos pequenos poderes. Não é um panfleto de acusação contra o país, mas uma crítica à sua longa história de opressão – em cena hilária, uma brincadeira de tiro ao alvo à beira de um rio, alguns dos alvejados são retratos de antigos líderes soviéticos, como Stálin, Gorbachev e Yeltsin, entre outras figuras emblemáticas. Chega a ser curioso como o nome do atual presidente Vladimir Putin nunca é citado na trama, embora sua imagem decore a parede do gabinete de uma prefeitura municipal. O longa incomodou líderes civis, políticos e religiosos russos, faturou o prêmio de melhor filme estrangeiro no Globo de Ouro e é forte candidato a bisar o feito no Oscar desse ano.

O enredo tem como personagem central o temperamental mecânico Kolya (Alexei Serebriakov), que dirige uma pequena oficina ao lado de sua casa em uma pequena e pitoresca vila de pescadores no norte da Rússia. Ali, vive com o seu filho adolescente rebelde do primeiro casamento (Sergey Pokhodaev) e a atual esposa mais jovem (Elena Lyadova). Logo nos primeiros minutos, ele vai apanhar Dmitri (Vladimir Vdovichenkov) na estação de trem, um ex-companheiro do exército que se tornou advogado de prestígio em Moscou. Ele chegou da capital para ajudar o amigo na luta contra o implacável e venal prefeito local, um tipo bufão e vingativo disposto a desapropriar por valor irrisório a terra de Kolya, que construiu a moradia com suas próprias mãos e cuja família vive neste lugar há várias gerações.   

O que existe é a luta de um homem contra moinhos de ventos, juízes parciais prontamente dispostos a descartar seus apelos, policiais indecentes, religiosos pusilânimes. O gestor se vale de todas as brechas da lei para impor sua vontade, até mesmo solapando meios legais para resolver a questão com medidas mais drásticas, o que empurra o conflito para uma zona cada vez mais tensa e perigosa. 

O esperto advogado Dmitri percebe o jogo e sabe que o estado de direito virou uma peça de ficção. Ele deposita na mesa da prefeitura um dossiê com documentos e fotos comprometedores. Receoso de que o explosivo material poderá estraçalhar a sua carreira política, o prefeito acaba cedendo em sua cobiça ou finge matreiramente fazê-lo. É outra ponta de humor em um enredo em que o vilão óbvio freqüenta regularmente a igreja e recebe a benção do padre ortodoxo, que o apóia em sua obsessão pela tomada do que pertence a Kolya.

Mais do que a busca por justiça, o filme faz o inventário de uma tragédia ao som da música sombria de Philip Glass. A sensação de que algo de ruim está prestes a acontecer é permanente. Basta observar a imagem sinistra do esqueleto em decomposição de uma baleia encalhada e restos de barcos de pesca abandonados na costa. Na clara referência à história bíblica de Jó, a quem tiram casa, mulher e saúde, Kolya é testado em sua paciência e fé e assume o papel do sujeito manipulado por Deus e o diabo. A ironia reside no fato de que naquela província parece que Deus morreu, foi esquecido ou nada vê. Em determinado momento, um padre cínico se refere ao livro do matemático e filósofo inglês Thomas Hobbes, autor de Leviatã (1651), para reforçar o argumento de que os desejos e as liberdades individuais do homem devem se subordinar a uma lei soberana para se evitar a carnificina social.

Não bastasse a jornada kafkiana de enfrentamentos, Kolya também se vê ameaçado por outros fantasmas que, aos poucos, arruínam sua vida.  Ele está bebendo vodka demais, seu filho despreza a escola e sua esposa parece um tanto distante dele, mesmo na iminência de perder tudo. Simultaneamente, os vínculos de amizade entre marido, mulher e advogado começam a se fragilizar, especialmente em um piquenique, quando uma reviravolta irá provocar dor e fratura irremediáveis.

Além de parábola assustadora sobre a maneira como o poder absoluto tritura aqueles que tentam opor-se a ele, o filme ecoa ainda o desmoronamento de uma cultura secular. Símbolo dessa derrocada é a sequência em que adultos, na presença de crianças, se inundam de álcool e disparam armas. O painel é amargo de um país em que o Estado foi corrompido, a engrenagem do poder é intencionalmente burocrática, o consumo etílico se potencializou e o povo se encontra à mercê de uma religião que se presta a ser signatária do arbítrio. Não cabem aqui maniqueísmos fáceis. Kolya é do bem, mas é capaz de agredir pessoas que o incomodam, como seu filho. Sua mulher revela ausência de pruridos e o advogado não se furta a agir pelas costas. O comentário de que a vida não está fácil na Rússia não deve ser individualizado. Vive-se hoje no mundo globalizado uma dura realidade: a cotação de qualquer pedaço de terra é levantada a partir de seu custo por hectare. Ninguém se importa com o valor sentimental ou histórico que, por ventura, pode estar nele impregnado.

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto Divulgação)

 

Avaliação: Ótimo

 

Leviatã

Título Original: Leviathan (Rússia, 2014)

Gênero: Drama, 141 min

Diretor: Andrey Zvyagintsev

Elenco: Alexey Serebryakov, Roman Madyanov, Vladimir Vdovichenkov e outros.

Estreou: 15/01/2015

 

Veja trailer do filme: 

 

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