EDITOR: Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

 

  • Font size:
  • Decrease
  • Reset
  • Increase

Jogo do Dinheiro

Estrelado por George Clooney e Júlia Roberts, o filme joga o espectador no terreno especulativo, envolvente e pouco transparente de Wall Street, o coração financeiro da cidade de Nova York. Com direção de Jodie Foster, o longa combina de maneira inteligente temas urgentes como terrorismo, sensacionalismo midiático e descrença econômica. Três personagens centrais dão vida ao enredo. Clooney vive Lee Gates, um cínico e subserviente apresentador de um programa televisivo especializado em análises financeiras. Trata-se de Money Monster, um extravagante show que, na ânsia de contornar a aridez do assunto, entrelaça informações e dicas de ações com garotas de biquíni, piadas forçadas e efeitos especiais vulgares. Como espécie de mestre de cerimônias, Gates chega a se fantasiar de boxeador ou usar chapéu de Tio Sam, entre outras bizarrices. Interpretada por Júlia, a produtora Patty Fenn comanda dos bastidores essa miscelânea. Ambos sabem que o público de hoje precisa digerir notícia embalada num formato de entretenimento barato. 

A terceira figura é Kyle, vivido por Jack O´Connell. Descontrolado e desesperado, portando revólver e dois coletes recheados de explosivos, ele invade os estúdios de gravação no momento em que mais uma edição está em curso. Por ter seguido uma recomendação do guru das finanças, acabou perdendo todo o seu dinheiro na aquisição de ações de uma empresa – um inusitado colapso nos computadores torrou, da noite para o dia, US$ 800 milhões do estoque financeiro da tal companhia. Como não está disposto a arcar sozinho com o prejuízo, quer respostas críveis não só do fanfarrão Gates como do inescrupuloso magnata da corporação Walt Camby (Dominic West) que, curiosamente, tomou chá de sumiço durante a crise.

A radical atitude do rapaz transforma a narrativa, que vira um jogo angustiante de espera e esperteza. Enquanto o invasor mantém a vida do showman sob a mira de uma arma, a produtora tem de descobrir o paradeiro do executivo desaparecido e escarafunchar a geopolítica do escândalo.  Aos poucos, os fios do enredo vão se conectando e os protagonistas revelando sua natureza. Gates parece mais um charlatão, embora lentamente adquira consciência de seu papel nessa engrenagem. Patty não se abala um segundo em colocar de pé esse circo de horrores. Kyle é a típica vítima dos predadores de Wall Street.

A obra desembrulha questões importantes, mesmo que de forma um tanto simplista e se valendo de cacoetes típicos do cinema de suspense e investigação de Hollywood - numa improvável reviravolta no roteiro, por exemplo, os personagens desembarcam nas ruas de Nova York para um acerto de contas. São discussões bem atuais, como o comportamento nocivo do mercado financeiro, os cambalachos das corporações, o despudor de uma mídia transformada em reality show, o hábito bovino do público de acompanhar eventos midiáticos como se fosse uma novela. É sintomático observar as audiências que se formam em bares, cafés e encontros familiares para assistir aos desdobramentos desse folhetim absurdo.

A direção extrai o máximo de interesse das situações, trabalha com segurança as cenas de tensão ambientadas no set televisivo e concede ao vilão um discurso que o faz angariar solidariedade e atenção popular. Embora não revele grandes surpresas, a trama funciona como sátira à corrupção de um sistema capitalista sem freios, que parece programado para enriquecer os já ricos e empobrecer cada vez mais os pobres. A rigor, o fantasma da crise financeira que ainda sacode o mundo continua assombrando demais e há um sentimento de desencanto no ar. Não por acaso, o título da atração televisiva é Money Monster. Ironia pura.

(Emerson Rossi O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )    

(Foto Divulgação)

 

Avaliação: Bom

 

Jogo do Dinheiro

Título Original: Money Monster (EUA, 2015)

Gênero: Suspense, 99 min

Direção: Jodie Foster

Elenco: George Clooney, Julia Roberts, Jack O´Connell e outros

Estreou: 26/05/2016

 

Veja trailer do filme:

 

Garota Sombria Caminha Pela Noite

Estamos diante de um longa-metragem de terror atípico, falado em persa e com uma personagem vampira que perambula pela noite de skate vestida de xador. Rodada na Califórnia, em um expressionista preto e branco, a produção tem figurado na lista dos melhores filmes do gênero fantástico e saiu prestigiada na última edição do alternativo Sundance Festival. O roteiro e direção levam a assinatura da cineasta inglesa Ana Lily Amirpour, filha de pais iranianos e há anos radicada nos Estados Unidos. Ela cruza elementos da estética noir, do western spaghetti e da linguagem das histórias em quadrinhos. Há ainda ingredientes do cinema de David Lynch, no tocante às marcas surrealistas e, em especial, de Jim Jarmusch e seu apego pelo ambiente melancólico. 

O resultado é uma obra estranha, climática, carregada de atmosfera lúgubre e momentos contemplativos. Um tanto irregular em seu desenvolvimento, com tensão dosada e narrativa fria. Mesmo uma cena em que dois personagens iniciam um romance, eles dançam em uma espécie de câmera lenta. Notadamente, uma brincadeira da diretora sobre os filmes de arte iranianos.

Um pouco flácida, a trama simples vale pelo jogo de sombras e ambiguidades e seus personagens marginalizados. A ação transcorre no fictício distrito iraniano de Bad City, lar fantasmagórico de criaturas chulas e vulgares, abrigo de usinas e onde um lixão a céu aberto serve de despejo de cadáveres humanos que nunca se decompõem. Entre seus habitantes, gente isolada e emocionalmente exilada, há um traficante violento (Dominic Raisn), uma prostituta maltratada (Mozhan Marno), um viciado em drogas (Marshall Manesh) e um menino que vive pedindo esmolas, entre outros reféns desse lugar aparentemente sem saída.

Nessa cidade circula uma sedutora vampira (Sheila Vand), uma jovem e misteriosa criatura que, diferentemente de outros sugadores de sangue, não é atormentada pela angústia da imortalidade. Ela cultiva regras próprias na hora de escolher suas vítimas, normalmente pessoas solitárias ou de moral duvidosa, como o cafetão explorador e violento. Na pele desse anjo vingador, que visualmente lembra uma tradicional muçulmana, ela não reproduz a imagem conhecida do vampiro com capa preta e olhos vermelhos - é possível que a diretora, ao se valer dessa representação, tenha desejado personificar o mundo masculino da repressão e hipocrisia. Na casa da vampira, cartazes de Michael Jackson, Bee Gees e Madonna decoram as paredes.

Em que pese o título, o protagonista é o jardineiro Arash (Arash Marandi), um sujeito que transpira certo charme rebelde à la James Dean. Ele passeia pilotando um carro modelo Thunderbird 1957 e cuida do pai (Marshall Manesch) endividado e viciado em heroína e prostitutas. O rapaz parece apartado e em desarmonia com o lugarejo, tanto que sua ligação emocional maior é com um gato. Daí não ser de todo incomum sua aproximação com a vampira, em um encontro que acontece depois de uma festa a fantasia, ele vestido de Drácula. Mais do que uma narrativa de suspense, é sobre essa inusitada e doce história de amor que se move o enredo. Uma relação de poucos diálogos embalada por envolvente trilha sonora pop e eletrônica de vários estilos. Uma sonoridade que remete ao espírito meditativo e deprimido de Tom Waits.

Por meio dessa miscelânea de influências e personagens solitários, a diretora um sentido sobre a atual realidade do Irã. De forma enviesada, ela põe o dedo na ferida da opressão sofrida pelas mulheres naquele país. Todo o momento o sentimento é o de estar confinado em uma sociedade que perdeu o viço civilizatório e não oferece perspectivas. Aqui, o universo feminino é enigmático e se expressa por ruas e becos  escuros.  

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto Divulgação)

 

Avaliação: Bom

 

Garota Sombria Caminha Pela Noite

Título Original: A Girl Walks Home Alone At Night (EUA / Irã, 2014)

Gênero: Terror, 100 min.

Direção: Ana Lily Amirpour

Elenco: Sheila Vand, Arash Marandi, Dominic Rains e outros.

Estreou: 17/12/2015

 

Veja trailer do filme:

Spotlight - Segredos Revelados

Muito comparado ao épico do jornalismo investigativo Todos Os Homens do Presidente (1972), este guarda uma diferença fundamental: enquanto lá nos anos 1970 aquele longa tinha um ar documental e paradigmático do tempo ainda forte do Jornalismo, aqui o premiado Oscar de Melhor Filme transmite uma atmosfera de fim de época.

O filme inicia com a chegada de um novo editor, Marty Baron (Liev Schreiber), ao jornal Boston Globe num diálogo com chefe da equipe investigativa chamada Spotlight, Walter Robinson (Michael Keaton). Há o medo da demissão e a preocupação da perda de leitores para a Internet. Sua missão é tornar o jornal “essencial para os leitores locais”. Baron torce o nariz ao saber que a equipe Spotlight demora meses para encontrar uma nova pauta e está preocupado com a perda dos classificados do jornal.

“Ele é judeu, não é casado e odeia beisebol”, como jocosamente comentavam os repórteres nos bastidores sobre o novo editor que claramente está ali para tentar salvar o Boston Globe diante dos novos tempos do século XXI.

A redação do jornal é formada essencialmente por jornalistas que cresceram, estudaram e vivem na cidade onde o tema das rodas de conversas goram em torno do último jogo da temporada de beisebol ou sobre a consulta médica de um amigo. Baron sabe que esse provincianismo é uma barreira para o novo tempo global que a Internet prenunciava no início do século - a história se passa em 2001.

E ele confronta a referida equipe com uma pauta que fora desprezada pelo jornal e que precisa ser retomada: a velha história de um padre (John Geoghan) sobre quem se multiplicam acusações de abuso infantil e que tem um potencial de se transformar em um escândalo global – os documentos podem revelar um esquema sistêmico da Igreja para acobertar padres pedófilos.

Para jornalistas que vivem em Boston e que cresceram com grande deferência à Igreja Católica, levar esse tema às últimas consequências é assustador: “Você que processar a Igreja?!?!”, exclama assustado um dos editores do jornal.

As representações que Hollywood faz sobre o Jornalismo nas telas sempre foram, no mínimo, ambíguas: os jornalistas são investigativos, ousados e aventureiros, mas também cínicos, inescrupulosos, alcoólatras e arrogantes.

Por isso, o Oscar de Melhor Filme a esse episódio real da revelação do sistemático acobertamento pela Igreja de inúmeros casos de pedofilia deve ser relativizado: com essa premiação Hollywood na verdade tocou um réquiem para o fim de uma era do jornalismo – a crise do jornalismo analógico, local e comunitário substituído pelo digital e global das novas tecnologias. Ironicamente, aquilo que o filme consagra (a lenta e cuidadosa investigação, a precisão e checagem das informações) na verdade é um mundo que deixa de existir justamente pela urgência demonstrada pelo novo editor Marty Baron – paradoxalmente, tornar o jornal “essencial para os leitores locais” é trazê-lo para as pautas do mundo on line onde justamente esses valores jornalísticos que o filme consagra deixam de existir pela velocidade e imediatismo.

Diferente do documentário de 2012, Mea Maxima Culpa: Silence in The House of God (onde Alex Gibney sugeria que o Vaticano manteria registros sobre abuso de crianças por padres desde o século IV), Spotlight muda o foco. A Igreja é representada no longa de forma abstrata como “todo o sistema” e os choques do jornal com a instituição católica são apenas mostrados de passagem.

A narrativa concentra-se mais na questão de como uma comunidade inteira pode tornar-se cúmplice de crimes tão abomináveis. “Se toda a comunidade educa uma criança, toda a comunidade abusa dela”, diz a certa altura o advogado Mitchell Garabedian (Stanley Tucci) cujos clientes enfrentam uma conspiração de silenciamento pelos membros da alta sociedade de Boston.

Spotlight quer mostrar como a própria força do jornal Boston Globe (sua redação formada por jornalistas que nasceram e vivem na própria cidade que lê o jornal) foi a sua fraqueza: silenciosamente a vida na comunidade fez ignorar uma notícia que há muito tempo deveria ter merecido uma primeira página.

O ator-diretor Tom McCarthy parece ter sido o nome certo para o projeto dessa produção: ele é um especialista em personagens outsiders ou estrangeiros – Em O Agente da Estação (2003) um exilado se muda para uma estação de trem abandonada em busca de solidão e se torna o catalisador de mudanças inesperadas. Em O Visitante (2007) um professor tem sua vida inesperadamente mudada quando descobre que em seu apartamento mora ilegalmente um casal de estrangeiros (uma senegalesa e um sírio).

Dessa vez temos um editor judeu e Garabedian, advogado armênio, que no filme são também catalisadores de transformações numa comunidade em que segredos são abafados por festas e confraternizações sociais onde “uma mão lava a outra”. Tudo cimentado ideologicamente pelo fervor religioso e pelas costumeiras missas de domingo. Como se fala em uma linha de diálogo em certo momento, só mesmo estrangeiros vindos de fora daquela cidade poderiam enxergar algo que todos recusavam ver.

Se historicamente Hollywood cria representações no mínimo ambíguas sobre o Jornalismo (com uma tendência ao negativo), devemos levar em consideração essa perspectiva ao analisar o Oscar de Melhor Filme a esta obra. Ela é impiedosa sobre a forma como os jornalistas do Boston Globe foram também envolvidos pelo jogo do “uma mão lava a outra” que manteve por décadas os terríveis segredos envolvendo padres naquela localidade.

Se por um lado podemos considerar Spotlight um trabalho que presta homenagem ao velho jornalismo investigativo tal como em Todos os Homens do Presidente, por outro a ameaça da Internet ao jornal (citada no início do filme) e o paroquialismo e provincianismo que fizeram o periódico perder uma boa história no passado apontam para uma crítica que está latente: o velho jornalismo comunitário e local deve ser substituído pelo jornalismo global, livre das limitações regionais como laços de amizades e familiares.

No final, Marty Baron sentencia a moral da história: “passamos a maior parte do tempo tropeçando no escuro. Uma hora a luz se acende e sobra uma boa porção de culpa para distribuir”. Quem acendeu as luzes foram estrangeiros, solitários e sem laços familiares ou de amizades com aquela comunidade.

O Global se sobrepõe ao Local, no prenúncio do que se tornaria o Jornalismo com a Internet e a Globalização. Nessa perspectiva, o longa é um réquiem a um estilo de Jornalismo que desaparece com a transnacionalização das empresas de comunicação – jornalistas agora “cozinhando” informações enviadas por terminais globais, todos sentados ao invés de gastarem suas solas de sapato e paciência checando dados em arquivos empoeirados. Essa é a ironia do filme premiado pelo Oscar: uma homenagem a um Jornalismo que não existe mais.

(Wilson Roberto Vieira Ferreira, do site Cinema Secreto: Cinegnose)

(Foto Divulgação)

 

Spotlight – Segredos Revelados

Título Original: Spotlight (Estados Unidos, 2015)

Gênero: Drama / Suspense, 128 min.

Direção: Tom McCarthy

Elenco: Michael Keaton, Mark Ruffalo, Rachael McAdams, Liev Schreiber,  John Slattery e Stanley Tucci.

Estreou: 07/01/2016

 

Veja trailer do filme:

O Clube

Em seus últimos trabalhos, o diretor chileno Pablo Larrain explorou as conseqüências do regime de Pinochet em sua terra natal, casos de Tony Manero (2008), Post Mortem (2010) e No (2012). Neste, ele lança o olhar para a Igreja Católica e desembrulha um retrato sombrio da instituição, aqui representada por quatro veteranos sacerdotes exilados (ou banidos) em uma pequena casa na pacata cidade costeira de La Boca, no Chile. O grupo descansa, come, bebe vinho, assiste reality show pela tevê e aposta dinheiro em um galgo, o único cachorro citado na Bíblia, que participa de corrida de cães locais – eles assistem as disputas de longe, por binóculos.

Embora religiosos, nunca rezam, confessam, freqüentam a igreja ou mantém contato com a comunidade. E devem seguir um rígido código de conduta, como seguir horários específicos para circular pelo vilarejo. Os padres Vidal (Alfredo Castro), o ex-capelão do exército Silva (Jaime Vadell), Ortega (Alejandro Goic) e o idoso Ramirez (Alejandro Sieveking) não atuam mais em suas paróquias, porque foram afastados por mau comportamento, e agora se encontram sob os cuidados da freira aposentada Irmã Monica (Antonia Zegers).

A metódica e calma rotina é rompida com a chegada do padre Lazcano (Jose Soza), cuja presença não passa despercebida por Sandokan (Roberto Farias), um sujeito desvairado que relembra os abusos sexuais sofridos nas mãos dele no passado, quando havia sido seu coroinha. Cheia de detalhes, a acusação é feita aos gritos na porta do sobrado, numa cena inquietante. A ameaça de exposição pública obriga Lazcano a intervir e o desfecho é chocante. O incidente faz com que a Igreja envie para o local o vigário Garcia (Marcel Alonso), jovem conselheiro com formação em psicologia encarregado de investigar os ocupantes da residência e as circunstâncias da morte ocorrida. Como estão sob escrutínio, uma série de interrogatórios se desenvolve. O novo inquilino compele cada um a confessar seus segredos e pecados, que variam da pedofilia ao tráfico de bebês de mães solteiras para casais sem filhos. Pragmático e racional, o “inquisidor” vai avaliá-los e julgá-los. Vidal, por exemplo, ama o cão de corrida e conserva pontos de vista contumazes sobre sua homossexualidade. A sempre sorridente Monica tem um passado repulsivo, ligado à agressão a uma criança africana. Nenhum deles nutre sentimentos de culpa ou receiam punições.  

Escrito por Larrain, Guillermo Calderón e Daniel Villalobos, o roteiro inteligente não tem pressa em revelar as histórias pessoais dos personagens e os elementos do enredo. O filme faz a radiografia dessa colisão ideológica e moral protagonizada por figuras que parecem ter desistido de cultivar algum tipo de crença espiritual. De uma forma ou outra, eles precisam ser discretamente escondidos dos olhos do mundo e das vistas do Vaticano. É interessante observar como uma instituição de mil anos de idade sabe acionar seus instintos de sobrevivência quando necessário. A fim de salvar a sua face, ela retira de circulação seus membros pervertidos e não faz nada por suas vítimas de violação sexual, incluído aí o traumatizado e emocionalmente fragilizado Sandokan, personificação de todos aqueles que sofreram abusos no âmbito da Igreja.  

Diante desse quadro em putrefação, os padres sem batinas, arrependimentos ou remorsos, irão precisar tomar algumas medidas. Curiosamente até Garcia, cuja missão era botar as coisas em ordem, se torna cúmplice de novos pecados. Uma sequência monstruosa sugere como uma ordem religiosa milenar, por meio daquelas criaturas, chega a agir criminosamente para manter seus esqueletos dentro do armário. Com exceção do clima de idílio intencionalmente escancarado nos primeiros minutos, com cenas de pôr do sol, ondas do mar e jantares, o longa evolui com imagens escuras, que por vezes parecem fora do foco, compondo uma atmosfera claustrofóbica. Tudo isso empacotado pela melancólica trilha sonora do compositor minimalista estoniano Arvo Part, que contribui para a sensação de desconforto e tensão. 

Trata-se de um filme arrojado, temperado por diálogos pesados e comentários incendiários sobre a hipocrisia da fé, a corrupção endêmica no seio de uma instituição religiosa fechada e a psicologia doente por trás do véu da santidade. O clube nada mais é do que uma espécie de Purgatório, habitado por personagens atormentados sem possibilidade de alcançar a graça divina. O cineasta não está interessado em proferir discursos moralistas contra os males da Igreja. Larrain sonda as entranhas do silêncio imposto, a repressão enviesada e a imunidade conveniente. Em entrevista, o cineasta confessou certa admiração pelo Papa Francisco, mas criticou a conivência do Vaticano para com os crimes praticados pelos seus membros. Por isso a ironia sutil do título.       

 (Edgar Olimpio de Souza)

(Foto Divulgação)

 

Avaliação: Ótimo

 

O Clube

Título Original: El Club (Chile, 2015)

Gênero: Drama, 97 min

Direção: Pablo Larrain

Elenco: Alfredo Castro, Roberto Farias, Antonia Zegers e outros.

Estreou: 01/10/2015

 

Veja trailer do filme:

Carol

Na cena de abertura, que irá se repetir no desfecho sob outro ângulo e novos sentidos, duas mulheres bebem chá. Não se ouve nada da conversa íntima, até serem subitamente interrompidas pela aparição de alguém que reconhece uma delas. Há uma estranheza nessa sequência e só saberemos da importância desse encontro após um longo flashback. Baseado na obra de 1952 da escritora americana Patricia Highsmith, que na ocasião assinou com o pseudônimo de Clara Morgan, o longa conquistou seis merecidas indicações ao Oscar. Com narrativa simples, este filme dirigido por Todd Haynes é um delicado romance lésbico ambientado em uma época marcada por excessivo conservadorismo e opressão masculina. 

A trama se desenvolve durante o período natalino em Nova York, no início dos anos 1950. Na seção de brinquedos de uma grande loja de departamentos, Carol (Cate Blanchett) e Therese (Rooney Mara) se conhecem e se flertam. Trata-se de uma ligação imediata, que desperta sem palavras. Carol é uma refinada dama da alta sociedade, mãe de uma filha de quatro anos, prestes a se divorciar do marido rico, o inconformado e arrogante Harge (Kyle Chandler, em consistente desempenho). Therese é a introvertida e entediada funcionária, insatisfeita com o namorado Richard (Jake Lacy, convincente como o apaixonado atônito) e que almeja trabalhar com fotografia. Um par de luvas esquecido sobre o balcão – teria sido de propósito? – servirá de pretexto para a aproximação entre ambas.   

Talvez a paixão e o desejo tenham surgido numa circunstância pouco propícia, porque o envolvimento amoroso não se consumará sem problemas. Especialmente a partir do instante em que elas viajam pela estrada afora, como se fossem fugitivas, dispostas a escapar dos inevitáveis olhares de desaprovação. Therese se atrai pela sofisticação urbana de Carol. Esta, por sua vez, se empolga pela juventude da outra. Em algum instante, no entanto, terão de retornar à vida como ela é, o que significa enfrentar rejeições, encarar dores emocionais e decidir sobre questões urgentes, como a custódia da filha, no caso de Carol, e o futuro profissional, dilema de Therese.   

Estamos diante de um drama conceitual, abordado com genuína sinceridade, que privilegia os sentimentos e não o jogo de intrigas. Nota-se isso, por exemplo, na forma sussurrada como Carol se dirige à Therese, na fotografia de intenções poéticas, no tratamento dramático da luz, no suave hálito melodramático do enredo. Um clima de melancolia paira no ar, os diálogos são elegantes e a música exuberante de Carter Burwell abre espaço para silêncios pontuais.

Com interpretações irrepreensíveis, as duas atrizes formam um dos casais mais memoráveis do cinema nos últimos anos. Cate Blanchett injeta temperamento forte ao seu personagem, oscilando entre explosões furiosas com o marido e declarações afetuosas para sua recente conquista. Na pele de uma jovem assustada e perplexa, Rooney Mara comporta-se com estudada rigidez.

Nesta história de amor proibido e dolorosamente erótico, algumas cenas provocam desconforto. Em uma sala, na presença de advogados, Carol está tentando argumentar e é instada a escolher entre a guarda da sua filha ou a pessoa que quer ao seu lado. Escudado por um caso homossexual da mulher no passado, com a amiga Abby (Sarah Paulson, em performance segura), o marido está firmemente convicto de usar tais episódios contra ela. O longa expõe esse romance homossexual de forma lenta. O casal só chega à intimidade física depois de decorrido mais de uma hora de projeção. Reféns da moralidade sexista daqueles tempos, Carol e Therese buscam respirar num ambiente sem oxigenação. Não à toa elas viveram até ali fingindo ser o que não são.

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.   

(Foto Divulgação)

 

Avaliação: Bom

 

Carol

Título Original: Carol (Estados Unidos, 2015)

Gênero: Drama, 118 min.

Direção: Todd Haynes

Elenco: Cate Blanchett, Rooney Mara, Kyle Chandler, Sarah Paulson e Jake Lacy.

Estreou: 14/01/2016

 

Veja trailer do filme:

Love

Cenas de sexo explícito apimentam o novo trabalho de Gaspar Noé, o diretor argentino radicado na França conhecido por suas obras transgressivas, exemplo do contundente filme Irreversível (2002), que exibia um angustiante estupro de intermináveis nove minutos. Rodado em 3D, o atual longa é uma reflexão sobre a sexualidade sem puritanismo, como um aspecto vital de conexão entre os seres humanos. Aqui, a prática está inserida em um relacionamento romântico, diferentemente da cópula vazia típica do cinema pornográfico. A abertura já fornece a medida da vocação de Noé para a polêmica. Murphy (Karl Glusman) se encontra nu, deitado de costas, enquanto Electra (a modelo suíça Aomi Muyock) acaricia seu membro ereto até ele atingir o orgasmo. No momento seguinte, o rapaz está acordado ao lado de Omi (Klara Kristin), enquanto seu filho chora no quarto contíguo.

A trama acontece durante o ano novo em Paris, época ideal para balanços e reavaliações. É o que faz Murphy, um cineasta americano residente na capital francesa, a partir do instante em que ouve uma mensagem da mãe de Electra, aflita com o sumiço há dois meses da filha. A ex-sogra imagina que ela poderia ter cometido suicídio. O episódio ativará uma série de flashbacks depressivos, nos quais o protagonista irá relembrar como sua vida com a ex-mulher foi destruída pela inveja e a lascívia. Ele está especialmente atormentado pelo arrependimento, vivendo infeliz na companhia da namorada adolescente Omi e o pequeno bebê de ambos. Não por acaso, um intertítulo postado na tela alude à famosa lei de Murphy, que reza que tudo o que pode dar errado, certamente vai dar. É exatamente o que sucede com o personagem central, um cineasta que sonha produzir filmes sobre sangue, esperma e lágrimas. Em que pese amar uma mulher, ele acabou engravidando outra. Por meio desses saltos no tempo, sabemos que o casal havia convidado a bela Omi para irem os três para a cama. Mais adiante, o rapaz terá de lidar com as conseqüências inesperadas de uma infidelidade conjugal.   

Noé explora as cenas de transa evitando ângulos de mau gosto, esdrúxulos ou gratuitos. O ménage à trois, por exemplo, é registrado de cima, mantendo-se uma distância elegante dos corpos em frisson. Por outro lado, ele chega a dar close-up em câmera lenta de um pênis ejaculando em direção à tela, valendo-se dos efeitos da técnica da terceira dimensão. O diretor mostra que a conjunção carnal entre duas pessoas pode significar muitas coisas diferentes em momentos distintos dentro de uma mesma relação.

O estilo nervoso de narrar, à base de cortes abruptos, permanece intacto. Em algumas sequências, ele impregna o enredo com um tipo de humor peculiar – na delegacia de polícia, para onde foi levado após furar um antigo amante de Electra, papel interpretado pelo próprio Gaspar Noé, um bizarro Murphy deita falação sobre as diferenças entre os franceses e os americanos. Em outra passagem, de apelo cômico, ele filma o encontro do par central com um travesti, uma das raras vezes em que os atos sexuais são apenas insinuados e não escancarados.

Salpicado por uma trilha sonora que emaranha música eletrônica contemporânea e Bach, o enredo é desenvolvido em parte dentro de um apartamento. Pendurados nas paredes estão cartazes de vários clássicos do cinema mundial, como Saló, Taxi Driver e O Nascimento de uma Nação. Trata-se de uma homenagem do diretor às produções que fizeram parte de sua formação cinematográfica.  

O conturbado romance entre Murphy e Electra, no entanto, não chega a envolver o público, apesar dos sedutores recursos 3D e a estrutura narrativa descontínua do longa. Os personagens carecem de consistência, principalmente as mulheres, retratadas sem vida interior. Não há nada de experimental ou revolucionário na maneira como o sexo é radiografado. Se remover todas as passagens explícitas de penetração, masturbação e sexo oral, o que resta é uma melancólica trama sobre a dor do amor e os seus dissabores, em abordagem meio superficial. Falta substância, como se vê em obras como Ninfomaníaca (Lars Von Trier), Romance (Catherine Breillat), Império dos Sentidos (Nagisa Oshima) ou O Pornógrafo (Bertrand Nonello), que remexem as perspectivas de uma relação de pleno erotismo para transmitir algum conceito ou ideia, para desfiar alguma tese. Mesmo a intenção de conceber uma história de amor, ou do luto advindo de sua súbita interrupção, onde a atividade sexual ilustra a emoção, foi tentado antes por Michael Winterbottom em 9 Canções, um projeto melhor sucedido. Não bastasse, Murphy e Electra não são tão singulares assim. Compõem apenas outra união disfuncional, cujo relacionamento é contaminado pelo ciúme e traições. Neste filme, o espectador é tocado pelo olhar e não seduzido pelo coração ou intelecto.

(Edgar Olimpio de Souza)

(Foto Divulgação)

 

Avaliação: Bom

 

Love

Título Original: Love (França / Bélgica, 2015)

Gênero: Drama, 134 min.

Direção: Gaspar Noé

Elenco: Karl Glusman, Aomi Muyock, Klara Kristin e outros.

Estreou: 10/09/2015

 

Veja trailer do filme:

O Clã

A família de classe média dos Puccio parecia comum. Eles residiam no bairro nobre de San Isidro, nos arredores de Buenos Aires, e mantinham uma loja de artigos esportivos. O patriarca Arquímedes Puccio pilotava o lar estabelecendo regras severas e encarnava um pai amoroso, que não se furtava a ajudar a filha pequena na lição de casa. O filho Alex estourava como um promissor jogador de rúgbi da Seleção Argentina, que costumava figurar em capas de revistas. Já o primogênito Daniel passava uma temporada na Nova Zelândia. A esposa Epifanía e mais três descendentes completavam o núcleo familiar. O negócio deles, no entanto, era outro. Os Puccio seqüestravam, extorquiam e assassinavam gente abastada, pessoas conhecidas que integravam o seu círculo social. Uma das vítimas, por exemplo, compartilhava da amizade de Alex.

O mais incrível disso tudo é que esta assustadora história aconteceu na realidade e foi parar na tela de cinema, resultando numa envolvente e angustiante obra assinada pelo prestigiado cineasta argentino Pablo Trapero (Elefante Branco/ Abutres / Leonera). Candidata ao Oscar desse ano na categoria de Filme Estrangeiro, esta produção bateu recorde de bilheteria no país vizinho, tendo desbancado o bem sucedido conterrâneo Relatos Selvagens, de Damián Szifron. A ação transcorre durante a restauração da democracia na Argentina, após sete anos de uma brutal ditadura militar. Em 1985, Raul Alfonsín, o primeiro presidente civil, governava uma nação mergulhada em crise econômica, ainda confusa com a saída dos militares do poder e em busca da normalidade democrática. Foi em agosto daquele ano que as atividades criminosas dos Puccios vieram à tona e o bando foi desarticulado.

O frio e contido Arquímedes (Guilherme Francella) comandava as operações. Ex-colaborador dos serviços de repressão dos anos de chumbo, ele agia impunemente porque contava com a proteção de figurões que ainda desfrutavam de poder e da vista grossa da polícia local. A obra deixa entrever esse ambiente de corrupção generalizada, legado da guerra suja, no qual esquemas ilícitos e clandestinos teimavam em subsistir. Arquímedes incorporava o tipo de homem para quem a família deve fazer tudo junto, mesmo que isso signifique cometer crimes. Alex (Peter Lanzani) era o seu braço direito e Daniel (Gastón Cocchiarale), apelidado de Maguila, reforçava o temível grupo, engrossado por mais três comparsas do pai. Os Puccio cobravam resgates em dólares e encarceravam as vítimas no sótão da própria casa, algumas vezes em um cômodo contíguo aos quartos dos filhos.   

O longa se move nessa desconfortável fronteira entre a violência torpe e um cotidiano prosaico. O drama pode ser observado de maneiras complementares. Como um quadro das relações de poder no âmbito de uma sociedade em recuperação, no contexto do fim da ditadura. Ou como um embate familiar, desencadeado por uma criatura que exercia controle implacável sobre toda a sua família, especialmente sobre Alex. Um conflito que revela a psicopatia de um, mascarada pela aparência polida, e a conveniência passiva de outro, inerte diante da sombra da opressão – no desfecho, o confronto ganha corpo num diálogo de conotação trágica, no qual o pai, ameaçado de prisão perpétua, joga na cara do filho que tudo o que ele tem hoje foi obtido graças à ditadura militar.   

Trapero pincela o enredo com espessas tintas realistas. Habilmente ele escapa da narrativa linear, com a inserção ocasional, ao longo do filme, de fragmentos dos episódios protagonizados pelo clã, e se vale do emaranhamento de imagens documentais, como noticiário televisivo e discursos de generais, às sequências de ficção.

O conjunto é palpitante e impregnado de momentos de crueldade psicológica. Até porque os flagrantes dos seqüestros se intercalam, por exemplo, com a rotina de um trivial jantar em família, incluindo oração de agradecimento. E tais instantes violentos são banhados por rock pesado, um recurso pontual do cineasta, que transtorna o espectador aos sonorizar o horror retratado. Uma das passagens mais surpreendentes é uma inesperada tentativa de suicídio, rodada num plano sequência bem executado. Outra tomada sem cortes transcorre no interior do lar dos Puccio, quando Arquímedes caminha carregando uma bandeja de comida – tranquilamente ele avisa à família que o jantar está pronto e só finaliza o percurso na porta do quarto onde um refém se encontra preso e amordaçado. Em outro momento exasperante, cenas de um assassinato e de um casal praticando sexo no interior de um carro se entremeiam.  

Neste filme, há uma visível influência do cinema de Martin Scorsese, de quem Trapero é reverente. O dado comum é a discussão moral, com ênfase nas relações familiares, que emerge da narrativa e lhe dá sentido. No final, os créditos anunciam que nunca se soube exatamente se todos os membros da família tinham total ciência dos crimes e do confinamento das vítimas nas dependências da própria residência. É uma informação perturbadora.

(Edgar Olimpio de Souza)

(Foto Divulgação)

 

Avaliação: Ótimo

 

O Clã

Título Original: El Clan (Argentina / Espanha, 2015)

Gênero: Drama, 108 min

Direção: Pablo Trapero

Elenco: Guilherme Francella, Peter Lanzani, Gastón Cocchiarale e outros.

Estreou: 10/12/2015

 

Veja o trailer do filme:

Que Horas Ela Volta?

O atual trabalho de Anna Muylaert tem tudo para se tornar um marco no cinema brasileiro contemporâneo, como foram, em outros contextos, Central do Brasil e Cidade de Deus. É um filme em plena sintonia com o “pulso” do País. Encara com originalidade e coragem um momento de transformações sociais mais ou menos profundas, mais ou menos traumáticas – e, por favor, não estamos falando aqui de disputas partidárias ou programas imediatos de governo ou de oposição.

A figura central na arquitetura narrativa do longa, como se sabe, é a da empregada doméstica, aquela trabalhadora que dorme na casa dos patrões e é como que uma descendente da mucama da época da escravidão e também do “agregado”, tão frequente na obra de Machado de Assis. É aquela que “é praticamente da família” – desde que conheça o seu lugar e se conforme com ele.

E é exatamente esse “lugar”, ou a sua redefinição em nossa época, que a obra de Anna Muylaert vai observar, com um olhar ao mesmo tempo arguto, sutil e amoroso. Quem o ocupa é a doméstica Val (Regina Casé), que mora na casa dos patrões no Morumbi e ajudou a criar o filho do casal, Fabinho (Michel Joelsas), hoje um rapagão aspirante a uma vaga na universidade.

O drama e a comédia (nas produções da diretora, os dois vêm sempre juntos) começam quando Val recebe a visita inesperada da filha, Jéssica (Camila Márdila), que vem a São Paulo prestar vestibular para arquitetura.

A chegada de Jéssica traz instabilidade a um terreno que parecia sólido e imutável. Os espaços ameaçam tornar-se indefinidos, confusos, inseguros. Tudo, no fundo, é uma questão de arquitetura, e por isso boa parte dessa história é contada pelos ambientes: o quartinho de Val, a cozinha, a piscina, o quarto de hóspedes, o ateliê do patrão (Lourenço Mutarelli). Cada um desses locais adquire um sentido social, cultural e dramático profundo no desenrolar da narrativa.

Também os objetos dizem muito: o sorvete de Fabinho, o jogo de café que Val dá de presente à patroa (Karine Teles), a bandeja de prata da bisavó. Nada é gratuito ou supérfluo.

Nesse contexto narrativo concentrado, em que tudo “significa”, não há de ser casual que os lugares de São Paulo que o patrão galanteador apresenta a Jéssica – o edifício Copan e o prédio da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP – sejam obras de arquitetos comunistas (respectivamente, Oscar Niemeyer e Vilanova Artigas) que apostavam, ao menos em tese, na utopia dos espaços livres e igualitários, na abolição das barreiras e hierarquias sociais. Não é por acaso também que o ponto de encontro entre o patrão e a filha da doméstica se dá no ateliê dele, uma edícula separada da parte principal da casa e como que à margem de sua estratificação espacial.

Falou-se muito, e com razão, do desempenho marcante de Regina Casé no papel principal. Quando bem dirigida e despida das estridências televisivas, é de fato uma atriz extraordinária, senhora absoluta do ritmo, da prosódia, das modulações de voz. A sequência em que ela ensaia a montagem do jogo de café na bandeja é digna de qualquer antologia.

Mas o restante do elenco não destoa. Camila Márdila encarna à perfeição a jovem de uma classe social emergente, que não mais se encaixa passivamente numa ordem discriminatória, humilhante. Suas atitudes, desrespeitando as regras tácitas que os pobres “já nascem sabendo”, como diz sua mãe, são mais eloquentes que qualquer discurso político.

Houve quem criticasse a ótima atriz Karine Teles por compor, no papel da patroa, uma “megera de telenovela”. Discordo. A competência da atriz está justamente em mostrar as atitudes da personagem como expressão de uma espécie de internalização de seu papel social, formado por séculos de dominação disfarçada, de “opressão cordial”.

Ao sorrir de surpresa quando ouve que Jéssica prestará vestibular para a FAU, a patroa está, sem perceber, sendo tão violenta quanto ao mandar limpar a piscina depois que a mesma Jéssica entrou nela de roupa e tudo. Há toda uma educação para o “mando democrático e liberal” condensada nessa personagem. De resto, nossa classe média está repleta de “megeras de telenovela”. Basta olhar em volta.

Detectar a persistência do arcaico de nossa formação sob as aparências do moderno tem sido a marca de certa linhagem de filmes, em que se destacam O som ao redor e Casa Grande. O longa de Anna Muylaert faz parte dessa família cinematográfica, com a diferença, talvez, de colocar a ênfase nas forças de mudança. Além disso, entrelaça à questão social um poderoso melodrama sobre a condição materna, o que aumenta seu poder de comunicação com o público. Tudo indica que a repercussão será grande.

(José Geraldo Couto, do blog do IMS)

(Foto Divulgação)

 

Que Horas Ela Volta?

Título Original: Que Horas Ela Volta? (Brasil, 2015)

Gênero: Drama, 112 min.

Direção: Anna Muylaert

Elenco: Regina Casé, Camila Márdila, Michel Joelsas, Karine Teles, Lourenço Mutarelli

Estreou: 03/09/2015

 

Veja trailer do filme:

Modo de visualização:

Style Sitting

Fonts

Layouts

Direction

Template Widths

px  %

px  %