EDITOR: Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

 

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Marcia: "A criança não é o anjinho que idealizamos"

O mundo hoje vive o reinado das crianças, que se tornaram pequenos imperadores e ditam o comportamento dos adultos. Se não têm um desejo atendido de imediato, especialmente em situações como de compras em supermercados e shoppings, elas se valem de acessos de berros e choro forçado que costumam paralisar os adultos. O diagnóstico, feito de forma enfática, é da psicanalista Marcia Neder. “Como não aceitam mais as regras, tornaram-se pequenos imperadores em tempos republicanos”, reitera ela, formada em Psicologia Clínica pela Universidade Santa Úrsula do Rio de Janeiro, com mestrado na mesma área pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e Pós-Doutorado nessa especialização pela PUC de São Paulo.

Autora de Psicanálise e EducaçãoLaços Refeitos (1998) e A Arte de Formar: o feminino, o infantil e o epistemológico (2002), a psicanalista prepara-se agora para lançar seu terceiro livro, Édipo Tirano: o feminino e o poder nas novas famílias, no qual discorre, entre outros assuntos correlatos, sobre a excessiva valorização do infantil no mundo moderno. “Esse novo regime social parecia impensável tempos atrás. Hoje as crianças são as déspotas mirins do século XX”, ressalta ela, que tem agenda carregada de palestras, leciona na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul e atua na Casa do Saber, no Rio de Janeiro. Nesta entrevista, Marcia fala sobre a idealização da infância, passeia pelos contos de fadas, explica a crueldade infantil e mostra o porquê dos pais estarem desorientados diante do novo comportamento dos filhos.     

 

Por que se diz que a infância é a época mais feliz da nossa vida?

Ela é idealizada assim pela suposição de que nesta fase não experimentaríamos dores, inquietações e sofrimentos. Muitos pais, professores, educadores e adultos em geral tentam impedir que seus filhos entrem em contato com as malvadezas e crueldades de personagens históricos de contos de fadas que fazem parte do imaginário cultural há séculos. Nada de bruxa, ogro, bicho papão, cuca, boi da cara preta, gigante ou qualquer outra figura do mal que viria provocar um tormento supostamente alheio ao universo infantil.

Mas o sofrimento não faz parte do processo de crescimento?

Toda criança sofre da angústia do abandono e da separação, seja pela chegada de um invasor na família - o nascimento de um irmãozinho, por exemplo - ou a sua entrada na escola. É para amenizar essa ansiedade, também (re) vivida pela mãe e pelo pai, que a criança chama a professora de “tia”, aproximando assim esse mundo extrafamiliar de seu reino familiar.

Na verdade, a infância é cheia de dores existenciais?

Exatamente. A criança sofre o conflito da insuportável transformação da mãe-fada adorada em uma mãe-bruxa quando esta recusa algo para ela. Por incrível que pareça, a existência humana está bem mais próxima dos contos de fadas do que dessa criança feliz que passamos a idealizar a partir do século XVIII.  

Os contos de fadas são vistos como histórias pueris, que finalizam com uma moral...

Um conto como Pele de Asno, de Perrault (1694), por exemplo, trata explicitamente do incesto: um rei deseja casar-se com a própria filha após a morte da esposa. A versão original de Pinóquio, de Carlo Collodi (1883), terminava tragicamente com o assassinato do menino de madeira que queria ser humano e acabava morto pelos dois homens que o perseguiam no bosque. Inúmeros contos começam com a morte da mãe ou do pai e as dores daí geradas. E todos eles tratam das angústias típicas vividas por cada humano desde o seu nascimento e desencadeadas por fantasias que envolvem sua separação em relação aos pais, seus conflitos edípicos e rivalidades fraternas, suas perdas e também suas conquistas.

Por que a criança sempre foi poupada do chamado mundo real?  

Ao ser “confinada” nas escolas a partir do século XVIII, a criança deixou o mundo adulto e passou  a ser projetada como um ser inocente, puro e feliz. Logo, ela seria uma figura estranha à crueldade, ao conflito, às paixões e à sexualidade que a psicanálise freudiana veio, antipaticamente, confrontar. Mas a criança de carne e osso com a qual convivemos escancara o contrário disso: basta uma ida a um shopping ou a um supermercado para observarmos aquelas situações típicas de crianças, roxas do mais genuíno ódio, exigindo satisfação imediata de seus desejos.

As tais inocência e bondade infantis são um mito?

Esse é um grande problema que tem paralisado pais aflitos diante do choro forçado e dos acessos de berros de seus filhos pequenos. A descoberta freudiana da criança edípica, tomada por impulsos amorosos e agressivos dirigidos aos adultos que dela cuidam, mostrou que esse ser inocente e bonzinho é uma farsa. A psicanálise provou que as relações familiares não são tecidas por amor e inocência. O complexo de Édipo mostra uma criança com arroubos libidinais incestuosos e hostis. Há amor, raiva, ciúme, inveja e rivalidade entre pais e filhos.

Então há uma guerra entre pais e filhos?

O conflito sempre existiu entre as duas partes. A lenda de Édipo, que antecede a Era Cristã, é uma metáfora da criança e da família. Ela encena essa guerra, esse ódio entre pais e filhos: Laio é o algoz do filho Édipo, condenando-o à morte logo que nasceu, com o consentimento da mãe, Jocasta. A história da família é a história dessa guerra da qual a criança saiu vitoriosa.

Esta supremacia da criança sempre existiu?

Desde a antiguidade até o início dos tempos modernos, no século XVIII, a criança foi vista como um ser que inspira medo e repulsa. Durante séculos, a filosofia e a teologia desenharam uma representação terrível da infância, reproduzindo não só a imagem de uma criança diabólica e maligna como convocando os adultos a uma luta sem tréguas contra o infantil. Daí o parricídio (quando a criança mata o pai ou a mãe) ser um crime severamente punido desde a antiguidade. Diferentemente do infanticídio (assassínio do filho por parte do pai ou da mãe), que permaneceu uma prática comum tanto na Grécia quanto em Roma. No Ocidente, esse tipo de crime foi tolerado até fins do século XVII.

Pais que abandonam ou matam seus filhos, infelizmente, é mais comum do que se imagina...

Na história do Ocidente, esse tipo de atitude é relativamente comum. No século XIII, por exemplo, sob a influência da Igreja Católica, foram criadas as Casas dos Expostos (ilustração ao lado) ou Casas da Roda, que acolhiam as crianças enjeitadas ou frutos de relações inconvenientes. Trata-se de um termo que vem desde a antiguidade para designar as crianças destinadas à “exposição”, isto é, ao abandono à própria sorte em algum lugar ermo, como Édipo no Monte Citerão. Este dispositivo chegou ao Brasil no século XVIII e foi instalado nas Santas Casas de Misericórdia, onde funcionaram até meados do século XX. A Casa da Roda do Rio de Janeiro foi fechada em 1938, a de Porto Alegre em 1940 e as de São Paulo e Salvador na década de 1950.

No fundo, é uma ironia tratar a infância como uma fase de intensa felicidade...

Em seu magnífico filme Cria Cuervos (foto de abertura), o cineasta espanhol Carlos Saura revela justamente o lado sombrio dessa infância supostamente feliz. Ele detona o mito da inocência infantil, critica a família sagrada e ironiza a nossa imagem idealizada da infância, de uma criança incapaz de desejar o mal. Na trama, uma criança encantadora é atormentada pela hostilidade, pelo medo e pela angústia. Quando adulta, ela faz uma reflexão: “A minha infância foi um período longo, interminável e triste, cheio de medos”.  

Em muitos filmes de terror, aliás, a criança é fonte privilegiada do mal...

Até aceitamos isso com naturalidade. No longa-metragem O Anjo Malvado (1993) (foto ao lado), do diretor Joseph Ruben, o menino Mark Evans (Elijah Wood) passa o tempo todo lutando para fazer os adultos acreditarem que uma criança possa ter índole tão má como seu primo Henry Evans (Macaulay Culkin), que o escraviza de forma perversa. Atrás daquele rosto de anjo esconde-se um verdadeiro demônio. Nesse filme é impressionante, e mesmo chocante, a ausência de um adulto no cotidiano de Henry e da irmã. O que esperar de crianças abandonadas a si mesmas, sem um adulto que as ajude a conter seus impulsos destrutivos? Isso mesmo: um Henry Evans.

A crueldade infantil pode ser disfarçada sob um rosto angelical?

Angelical e criança são praticamente sinônimos. Se nos lembrarmos que um anjo foi expulso do céu para habitar o reino noturno, poderemos voar na ambivalência desse substantivo. Satanás, o Tinhoso, o Maldito que nos espreita, a Besta Fera que nos ronda, o demônio, representa a parte sombria do nosso ser. Freud reconheceu a crueldade como própria ao caráter infantil e observou que a criança só começa a ter noção do que é certo e do que é errado a partir dos cinco ou seis anos.

Crianças mandam em casa e influenciam nas decisões dos pais?

Sim. Elas são hoje plenipotenciárias e usam e abusam de sua arma poderosa: os ataques de birra e cenas em público que envergonham e neutralizam seus pais. É notável a ampliação do mercado de consumo infantil. Sabedora do poder das crianças sobre os pais, a publicidade modelou e explora esse nicho. Não à toa vivemos discutindo limites para o exercício desse tipo de publicidade e querendo buscar padrões éticos.

Por que o adulto reage com permissividade ou inércia diante da birra de uma criança?

Contrariar uma criança é ver a raiva transformá-la numa daquelas criaturas de filmes de terror. O adulto fica paralisado pela angústia, pela raiva, pela vergonha quando é confrontado com o ódio do ser que ele idealiza como inocente. As crianças usam e abusam dessa arma. Por outro lado, por meio da permissividade e da falta de limites praticado por esses soberanos mirins, o adulto satisfaz seu narcisismo. Os privilégios que concedemos aos nossos filhos testemunham a nossa supremacia, a nossa realeza.

Os pais estão confusos e desorientados hoje em dia?

Muito. Essa desorientação está espalhada pelos sites na internet como antes se multiplicavam em reportagens dedicadas ao tema pelas revistas semanais. Em uma palestra que proferi numa escola no Rio de Janeiro, na qual desenvolvo um trabalho que vem se revelando extremamente fecundo (Favinho e Mel), foi muito interessante ouvir os pais e suas aflições, o que é compreensível, já que a família mudou e a escola também. Como lidar com essa criança que não aceita regras, que acha que pode fazer, ter e ser tudo o que quiser? O que fazer com esses pequenos imperadores reinando em tempos republicanos? Foi justamente o título que dei a essa palestra. A criança é o déspota mirim do século XX.

Muitos professores são insultados e até agredidos por alunos pequenos...

As relações entre adultos e crianças/adolescentes, outrora organizadas verticalmente pelo respeito e hierarquia, transformaram-se em relações horizontais nas quais “somos todos iguais”. O que antes era coibido com um simples “não”, hoje exige uma argumentação com réplicas e tréplicas intermináveis.

A relação ficou mais difícil?

Isso mesmo. Nesse novo regime social, que denomino de pedocracia, o poder passou da mão dos adultos para o das crianças, dos filhos e, por extensão, dos alunos. Nós lhes concedemos o livre exercício de sua agressividade. É nesse contexto extremamente difícil que os professores têm de exercer sua função educadora. Uma função limitada pelo narcisismo dos pais, para quem, em geral, “meu filho sempre tem razão”, e pelo narcisismo da criança.

Por que hoje em dia é comum a prática do bullying nas escolas?

É uma questão bem complicada. A superficialidade com que tratam o assunto sugere que de repente nossas crianças transformaram-se em pequenos demônios. Poderíamos percorrer vários fios implicados no tema para mostrar que o buraco é bem mais em baixo. A permissividade dos adultos é permissividade também em relação à agressividade do seu filho, liberado para bater, morder, chutar, xingar e desrespeitar quem ele quiser, como marca da supremacia dos pais, como se fosse uma espécie de brasão de família.

De certa forma, o bulliyng é incentivado indiretamente pelos adultos?

A presença ou ausência dos adultos é tão determinante para a ocorrência desse tipo de violência física ou psicológica quanto de qualquer outro comportamento infantil e juvenil. O bullying (foto abaixo) põe em evidência a velha luta pelo domínio do outro que assombra toda relação humana. Osuperior, seja física, numérica, social, econômica ou narcisicamente, aproveita-se de sua autoridade para impor-se sobre o outro. Este pode ser o garoto mais novo ou o mais solitário, o colega “diferente da média idealizada por uma sociedade” ou o gênero feminino que, desde os gregos, tem sido considerado inferior e, portanto, “naturalmente” destinado à dominação.

Por isso é “natural” os pais pedirem para os filhos reagirem...

Depende muito dos adultos e de como lidam com seu próprio narcisismo. É comum ouvir pais incitando seus filhos a reagir a uma violência, sentida por eles mesmos como pessoal, uma ferida no seu narcisismo. Preferem agir assim ao invés de oferecer à criança outros meios de descarga da agressividade e de proteção. As situações de agressão são muito variáveis, porém o que tem se tornado invariável é a ausência, não necessariamente física, mas psicológica, do adulto no universo da criança e do jovem. Conversar sempre e não só em momentos de crise ou de risco, é uma forma eficiente de estar presente psicologicamente na vida da criança. Mas, atenção: conversar é também saber ouvir o interlocutor.

(Foto de abertura: Filme Cria Cuervos / Divulgação)

(Foto de Márcia Neder feita por Ivo Vicentim)

PHA: “Os jornais são um lixo”

Sua trajetória profissional daria um livro. Ele acompanhou a movimentação do subcomandante Marcos nas selvas mexicanas, reportou a violenta guerra civil em Ruanda, assinou matérias sobre o terrível vírus Ebola e cobriu o assassinato do megatraficante colombiano Pablo Escobar. Ex-correspondente no Exterior e com passagem pelos principais veículos de comunicação brasileiros, o jornalista Paulo Henrique Amorim, 68 anos, pilota o Domingo Espetacular, a revista eletrônica da Record que concorre contra o Fantástico, da Globo, e mantém o acessadíssimo site Conversa Afiada, referência de jornalismo independente. “Se eu não chutasse o balde agora, eu acabaria não chutando nunca mais”.

Nesta entrevista, acionando sua habitual irreverência e língua ferina, PHA atira para todos os lados. Desanca a mídia que chama de golpista, detona a nova geração de jornalistas, aposta que o personagem do Vesgo, do Pânico, tem mais chances que o Serra na corrida presidencial e ironiza os quinze anos do governo tucano em São Paulo. “A única obra que eles têm para mostrar é o rouboanel, cuja peculiaridade é cair”. Não bastasse, ainda desmonta o mito Paulo Francis, que ganhou recente documentário no cinema. “Era um péssimo colega, ocioso, que tinha horror de ser brasileiro.”    

 

Edgar Olimpio de Souza

 

O jornalismo perdeu relevância?

Jamais perderá porque é um instrumento pelo qual as pessoas se informam. Tem função essencial numa democracia. Thomas Jefferson dizia que não poderia haver uma democracia sem imprensa. O que está acontecendo é uma acelerada decadência, sobretudo no Brasil, da imprensa escrita, que foi durante muito tempo o padrão e o referencial do jornalismo. 

 

A informação chega até nós ou temos de aprender a procurá-la?

Funciona como num supermercado, que oferece um milhão de opções. Aí você escolhe o produto por preço, qualidade, experiência. Se você visitar o site Conversa Afiada, que eu tenho a honra de dirigir há quatro anos, você sabe o que esperar dele. Diz coisas muito parecidas, com coerência indiscutível. Então, se você vai comprar aquela marca de biscoito é porque você conhece o fabricante, gosta do preço, da embalagem, do sabor. Você não fica nervoso ou preocupado porque existem outras cem marcas de biscoitos na gôndola.

 

Mas a informação que chega é de qualidade?

No Brasil é de baixíssima qualidade, parcial, deturpada e insuficiente. Os jornais impressos ainda determinam boa parte da agenda das outras mídias e da agenda política do país. O professor Wanderley Guilherme dos Santos, notável professor de Ciência Política do Rio de Janeiro, disse que o poder da mídia impressa é o poder de gerar crises. Para mim ela é golpista, desde que conseguiu matar Getúlio Vargas ou contribuiu para ele se matar em 1954. Ela até deu um golpe em 1964, quando entrou no Palácio do Planalto com as botas dos militares na deposição do presidente João Goulart. Se você pegar a imprensa argentina, tão conservadora quanto a brasileira, notará a diferença. O Clarín, o La Nacion, o Página 13 são publicações bem melhores. Os jornais brasileiros são um lixo.

 

Os jornalistas de hoje são mais preparados? 

Claro que não.Elesdizem aquilo que os patrões queriam que eles dissessem e eles dão a entender que dizem aquilo como se fossem as suas próprias idéias. As redações de jornal são hoje ocupadas por mauricinhos, meninos de classe média, filhinhos de pai rico, tudo branco, cheirosinhos, que nunca viram pobre na vida e não têm nenhum compromisso com a sociedade brasileira.

 

Como você vê o futuro do jornalismo?

Brilhante, porque será independente da imprensa escrita. A sociedade está se educando, entrou para o PROUNI, tem acesso à banda larga, lê mais livros. Tudo isso demanda mais informação, que pode vir pela tevê, rádio, revista, celular, internet, redes sociais, até de carrinho de mão. Não estaremos mais à mercê das famílias Marinho, Frias, Civita e o que sobrou dos Mesquitas, que condicionavam e condicionaram durante muito tempo a opinião pública brasileira. Eles são uma praga, um rotavírus.

 

Acha que a mídia impressa brasileira age como um partido político de oposição?

Desde 2002 o objetivo da imprensa brasileira tem sido o de derrubar o presidente Lula. E não conseguiram porque o Lula é melhor que todos eles. O presidente pega o Globo, a Veja, a Folha e o Estadão, mistura tudo, põe no liquidificador e toma com suco de laranja.

 

Na sua opinião, por que a grande mídia teria implicância com o governo Lula?   

É uma oposição histórica entre a imprensa escrita brasileira e o trabalhismo. Começou com Getúlio Vargas, depois Jango, Brizola e agora Lula. A diferença é que nesse intervalo de tempo houve uma concentração geral de mídia. Por isso criei a expressão PIG - Partido da Imprensa Golpista. A imprensa no Brasil é uma ameaça à sobrevivência das instituições democráticas, à democracia brasileira. Antes eu chamava a Folha, o Estadão, o Globo, a Veja e a Rede Globo de Televisão de mídia conservadora e golpista. Mas era uma expressão rebuscada. PIG é melhor.

 

 A grande mídia estaria definhando... 

De forma melancólica. A Veja, a última flor do fascio, foi entregue a salteadores. Na Globo, o diretor de jornalismo Ali Kamel comporta-se como o inquisidor-geral Torquemada. Já a Folha é dirigida por um direitista enrustido que não tem a hombridade política de assumir suas posições políticas, que escreve de maneira inacessível e muita chata sobre assuntos irrelevantes e de forma irrelevante, que pensa ser um grande intelectual. Ele faz parte desse conjunto que eu denomino de deidades provinciais. Um dos bustos da província de São Paulo é o do Otavinho. Tem também o do Daniel Piza, que enforcou Jesus Cristo. Tem ainda o busto do publicitário Luiz Gonzáles, que faz a campanha do Serra e é um gênio. Ele fez a campanha do Alckmin em 2006, que entrou para a história da política universal porque no segundo turno o Alckmin conseguiu menos votos que no primeiro.

 

Faltou falar do Estadão...

Ao menos tem mais coerência e é tão moderno quanto os donos do café do século 19. Se você gosta de acompanhar o pensamento escravocrata daquela época basta ler o Estadão. É um jornal que está preocupado com a tomada do palácio de inverno de São Petersburgo no século 19 e com as ocupações do MST.

 

Você que trabalhou na Globo não estaria cuspindo no prato que comeu?

Na evolução da humanidade mudamos do regime da escravidão para o regime capitalista. No primeiro, o trabalhador era escravo do dono. No segundo, passou a ser assim: o dono me paga para eu trabalhar para ele, em troca de remuneração. Quando eu não quero mais trabalhar para ele, vou embora trabalhar para outro. E se ele não me quer mais, me manda embora e contrata outro. Por que tinha de trabalhar lá a vida inteira? Quem disse que a Globo é um bom emprego? É uma prisão de segurança máxima. Ou você diz aquilo que o patrão quer ou é fuzilado.

 

Por que o Lula não enfrenta o PIG?

Ele não peitou a grande mídia, cometeu um erro estratégico, considerou que poderia dar um nó no PIG, embora tenha até conseguido porque o PIG está desencontrado, vive de fabricar uma crise falsa por dia. Ele deveria ter criado mecanismos institucionais para oferecer alternativas ao PIG, que não é a TV Brasil. Não importa que Lula levasse pau, qual o problema? O Brizola era tratado pela Rede Globo como se fosse um cão sarnento e ganhou duas eleições para governador do Rio de Janeiro. O Kirchner foi eleito na Argentina alvejado pela mídia local e a mulher dele depois se elegeu sem dar uma única entrevista. Lula perdeu a chance de criar mecanismos para que a sociedade brasileira tenha informação de forma democrática, plural e isenta.

 

Ele teria se curvado ao poder da Rede Globo...

Quando trabalhei na Rede Globo, era proibido ter o som de Lula, ouvir a sua voz. Se ele falasse javanês ou sânscrito, a sociedade brasileira não saberia, só se mostrava a sua imagem. Aí teve o famoso debate Lula x Collor, em 1989, quando a Globo entrou para a antologia da manipulação política através da televisão. Então ele se elege em 2002, num domingo, e dá entrevista exclusiva para o Pedro Bial. No dia seguinte, ancora o Jornal Nacional ao lado da Fátima Bernardes e do William Bonner.

 

O PIG é tucano? 

É porta-voz dos interesses da elite brasileira. Uma parte da sociedade brasileira tem dificuldades em admitir que exista uma alternativa política que não seja a que sempre nos governou. O símbolo dessa elite preconceituosa é o governador paulista José Serra. Ele é candidato a presidência da República, ex-ministro da Saúde, ex-ministro do Planejamento, ex-secretário do Planejamento, ex-deputado federal, ex-senador da República. Dê uma idéia gerada por ele. O que o Serra pensa? É um conjunto em branco, uma nulidade. Aliás, é inacreditável que os tucanos de São Paulo se elejam aqui. O PIG paulista vende ao Brasil a idéia de que São Paulo é a Chuiça brasileira: tem o dinamismo econômico da China e o IDH da Suíça.

 

O paulista é enganado?

E não percebe. Os tucanos governam o Estado há quinze anos e a única obra que construíram foi o rodoanel, mais conhecido como rouboanel, que tem como peculiaridade cair. O Alckmin, quando governador, represou o rio Tietê e disse que nunca mais haveria enchentes em São Paulo. No dia em que o PCC governou a cidade de São Paulo por dois dias, ele disse que o governador era o Cláudio Lembo. São Paulo abriga mais pobres que o Rio de Janeiro e os tucanos passaram quinze anos fingindo que não os viam. Aí, quando desabaram as chuvas, a pobreza se afogou e eles se deram conta de que eles existem.

 

Mas a pobreza não é igual em todos os lugares?

A pobreza em São Paulo está confinada em Sowetos. Você é capaz de morar no Morumbi, trabalhar na Rua Augusta e nunca ver um pobre. No Rio de Janeiro a pobreza invade a sua janela. Os tucanos acham que o pobre de São Paulo tem a mania de morar em barranco, em áreas de risco, quando podiam viver no Morumbi, nos Jardins e na Vila Nova Conceição.

 

FHC deixou alguma herança positiva?

Os oito anos de reinado de FHC compuseram a ditadura do pensamento único. Como se sabe, ele era portador do conhecimento universal, foi ele quem descobriu a Lei da Gravidade. Um dia ele estava sentado em Higienópolis, debaixo de uma macieira, e aí caiu uma maçã na cabeça dele. Pronto, ele inventou a Lei da Gravidade. Ele é o Farol de Alexandria. O FHC fez tudo o que queria. O resultado foi um período governamental de trevas, que associou a mediocridade à inação.

 

Quem vai ganhar as eleições presidenciais?

Não sei. Se o Serra se candidatar, o Vesgo, do Pânico, tem mais chances. Mas duvido que ele saia candidato. O Serra não irá correr o risco de ceder o governo paulista ao vice Albert Goldman e deixar que seja eleito em São Paulo um candidato de oposição, como é provável que aconteça. Ou entregar ao Geraldo Alckmin, que quer ver o diabo na frente, mas não quer ver o Serra. Se o Alckmin ganha o Palácio dos Bandeirantes, não vai nem servir café para ele. Também acho que será uma campanha entre Lula e FHC. A oposição está querendo sepultar o FHC, enfiá-lo naqueles esgotos que têm no Jardim Romano. Se pudesse, o PSDB o seqüestrava e o mandava para o Haiti. O Lula vai pendurar o FHC no candidato da oposição, quem quer que seja o adversário da Dilma.

 

A Marina Silva pode ser uma terceira via?

Quem? Qual? Ela é uma traíra, foi ministra do Lula durante sete anos, saiu e agora fica criticando o governo. Faz parte do mesmo grupo de traidores a que pertence o senador Cristóvão Buarque. A Marina engrossou a comunidade de traíras.

 

No site Conversa Afiada você fala tudo o que pensa? 

Cada vírgula minha tem uma mira, nada ali é gratuito, digo o que estou com vontade de dizer. Acho que consegui, debaixo de muita porrada, preservar esse espaço. Conhece a história do Rubem Braga? Era colunista da revista Manchete. Um dia ele foi pedir aumento ao Adolfo Bloch, que respondeu: ´Você escreve isso aí em meia hora´. Aí o Rubem rebateu: ´Eu escrevo isso aí em quarenta anos e meia hora´. Eu tenho essa liberdade porque estou na estrada há cinco décadas. Entrei numa redação de jornal aos 17 anos, estudante de colégio, para ser foca na renúncia do Jânio Quadros. Estou lutando para ter minha independência desde 1961. Se eu não chutasse o balde agora, não chutaria nunca mais.

 

Viu o documentário sobre Paulo Francis?

Não vi e não gostei. Eu o lia na época em que ele era trotskista, apoiava o Jango e chamava o Carlos Lacerda de matador de mendigos. Depois, ele caiu no colo da direita e morreu abraçado no regaço do fascismo. Convivi com ele no escritório da Globo em Nova York. Era uma convivência deplorável, um péssimo colega, ocioso, tinha horror do Brasil, vergonha de ser brasileiro, queria ser americano embora falasse inglês como um escolar da Nigéria. Estou achando interessante. Recuperaram o Wilson Simonal e o Paulo Francis, a próxima obra do documentarismo brasileiro será resgatar o coronel Ulstra, que será transformado no novo Duque de Caxias.

 

Qual foi o seu maior furo de reportagem? 

Fiz um Globo Repórter inteiro sobre os ursos polares da ilha de Kodiac, no sul do Alasca, ameaçados de extinção. Eu estava acompanhado de um guarda florestal e cheguei a poucos metros de distância deles. Há dois anos cobri para o Domingo Espetacular um tiroteio na favela da Mangueira. Era sobre o desmonte de um muro que os traficantes haviam construído no alto do morro, com aberturas estratégicas para disparar contra a polícia. Só subi porque tinha a garantia da polícia que estava tudo sobre controle. Mas qando cheguei lá, choveram tiros.

 

E a maior lambança? 

Quando eu era correspondente da Veja em Nova York, em 1968, fui cobrir a campanha a prefeito do escritor Norman Mailer. Eu estava acompanhado do escritor Fernando Sabino, que ia escrever crônicas para o Jornal do Brasil. Fomos ao escritório do candidato e sua assessoria sugeriu que acompanhássemos uma carreata que sairia na manhã seguinte, que disponibilizariam vaga para nós num dos carros. Às seis da madrugada estávamos a postos em frente à casa de Mailer, no Brooklyn, em pleno inverno novaiorquino. De repente começou a sair gente da residência dele e logo lotaram os automóveis. Vimos que não tinha sobrado lugar para nós. Aí passou aquele camarada da assessoria de imprensa gritando: ´Sigam a gente´. Ficamos ali, feito dois imbecis. Fomos a uma cafeteria. Ao menos o papo com Sabino foi muito agradável.

 

De onde vem o humor e a língua solta? 

Sou carioca.

A Cidade da utopia

Ela existe, chama-se Christiania e ocupa uma desativada base militar de 340 metros quadrados nos subúrbios de Copenhague, capital da Dinamarca. Sem leis e hierarquia, cultiva regras próprias, celebra a liberdade individual e cultua um estilo de vida progressista. Sua porta de entrada é um arco sobre dois totens. Ali, os moradores não querem viver da mesma forma que as pessoas ditas normais. Formam uma espécie de sociedade alternativa, sem governo institucional, que está completando quatro décadas de existência - ou melhor, de experiência social.    

Fundada em 26 de setembro de 1971 por hippies, anarquistas, artistas e intelectuais, que criticavam a rígida e burocratizada política habitacional dinamarquesa, é uma espécie de paraíso perdido. Entre os seus aproximadamente mil habitantes atuais, incluem-se também aposentados, imigrantes, sem-tetos, desempregados, mães solteiras e beneficiários do sistema social escandinavo. Uma comunidade irmanada na atitude de rejeitar certos valores morais, renunciar às conquistas da civilização moderna e propagar princípios de uma vida utópica. Foi neste mundo à parte que conceitos hoje difundidos como meio ambiente e sustentabilidade ganharam corpo, voz e ressonância.

A existência de Christiania, no entanto, está ameaçada. O sinal amarelo vem do atual governo conservador da Dinamarca, que decidiu apertar a política em relação ao bairro. Repetindo a má-vontade de outras administrações passadas, eles entendem que neste lugar impera a desordem e se transgridem os bons costumes. Por conta disso, vários planos já foram produzidos para normalizar e legalizar o local que, entre outras ousadias, permitia o livre comércio de drogas.

Batidas policiais, ações repressivas e ordens de prisão foram práticas comuns durante esse tempo todo. Acuados, os próprios residentes decidiram em 2004 impedir a venda de substâncias pesadas dentro de seu território. Hoje, a atividade até persiste, mas em nível recatado, longe da visão alheia. Nem tanto, se levar em consideração que em março passado a polícia apreendeu quase 24 quilos de haxixe em uma incursão ao lugar.   

A tensa e conflituosa relação com sucessivos governos, aliás, já deixou de ser novidade. Num momento, negocia-se a renovação urbana. Em outro, a intenção velada das autoridades é desmantelar o espaço. Depois, querem só derrubar as casas fixadas nas margens do lago. Os 35 hectares de terra dali são valiosos. Para os christianistas, não há dúvida de que, passa ano entra ano, o intuito é desintegrar Christiania e o conceito que a envolve e justifica.

Sem proprietários. Apesar dos inimigos históricos, a autoproclamada cidade-livre vai sobrevivendo. Pelas ruas desalinhadas e freqüentemente não pavimentadas, a circulação de automóvel é proibida - bicicleta é o meio de transporte preferencial -, assim como não é permitido tirar fotografias. Não se percebem diferenças de classes sociais. Cada um se dedica ao trabalho da maneira que melhor lhe convir. Trabalhar mais significa a possibilidade de ter mais conforto. Menos, leva-se uma vida mais simples.

Se um músico quer apenas levantar alguns trocados para sobreviver de sua arte, sem se sujeitar às draconianas regras da indústria fonográfica, a opção é absolutamente respeitada. Ninguém é discriminado. Uma parte dos moradores tem emprego, outra é sustentada pelo poder público e existem aqueles sem rendimento oficial.

O bairro se auto-sustenta com oficinas de artesãos, bares, cafés, restaurantes, centro cultural, clube social, “caixinha” local e um comércio de venda de artesanato e peças de roupas para turistas. Não há contratos de aluguel e nenhum morador é proprietário de imóvel – barracos restaurados, velhos galpões e casas ecológicas. Um dos privilégios, aliás, é construir livremente, sem as imposições do mercado imobiliário, o que fez brotar residências com designs únicos e psicodélicos. 

Tal “regalia”, porém, está por um fio. Neste ano, a Suprema Corte da Dinamarca confirmou a propriedade estatal e o controle da terra. De olho no potencial de investimento da área, agentes imobiliários começaram a bater ponto por ali. Pressionados pela ameaça de despejo, por não terem recursos financeiros para adquirir suas moradias, os christianistas se uniram e levaram a batalha para os tribunais. As negociações para uma saída pacífica já começaram e a luta promete estender-se. Se os partidos de esquerda, mais favoráveis aos postulados da comunidade, ganharem as próximas eleições, eles ainda poderão ser salvos.

Bandeira e hino. O desaparecimento de Christiania significaria a destruição de uma experiência de sociedade bem-sucedida em vários pontos. Aqui, os ocupantes recolhem e reciclam o próprio lixo e limpam suas ruas.  Cada membro aprende a respeitar o próximo e resolver os conflitos democraticamente. As decisões sobre o orçamento local, que paga despesas com luz, água, esgoto, taxas municipais e um conjunto interno de serviços, são sempre tomadas em comunhão. Todos podem ir às reuniões e assembléias e dar a sua opinião. Nada se decide por votação, mas consenso. Trata-se de uma democracia popular que exige muita disciplina, paciência e espírito comunitário. O diálogo abrangente e aberto tem mais peso que uma lei.  

Neste território livre, sem burocracia, apoiada na autogestão e com moeda própria, um lema dá o termômetro dessa nova ética de convivência: “A nossa sociedade é economicamente autossustentável e vamos continuar firmemente convictos de que é possível evitar a miséria física e psicológica”. A comunidade criou até uma bandeira, de fundo vermelho e três esferas amarelas representando os pontos nas letras “i” do nome. E uma canção de protesto, escrita em 1976 por um grupo de rock dinamarquês ligado ao movimento flower power, virou hino oficial do lugar – Você Não Pode Matar-nos. 

Com percalços e contradições incrustados em sua história, Christiania assume um estilo alternativo de vida que pode incomodar quem prefira um cotidiano mais tradicional e burguês. Nos últimos anos, tornou-se o terceiro ponto turístico mais visitado de Copenhague, suprado apenas pela escultura da Pequena Sereia, figura inspirada num famoso conto do escritor dinamarquês de histórias infantis Hans Christian Andersen, e pelo parque de diversões Tívoli. Talvez seja mesmo um destino atraente para sonhadores, descolados e gente em busca do diferente num mundo cada vez mais igual.

 

Edgar Olimpio de Souza

À moda da casa

Desde que abriu as portas no Jardim Paulista, no início deste ano, o descolado restaurante Manuali entrou na rota daqueles clientes que buscam a legítima pasta fresca italiana, preparada diariamente com farinha de trigo moída e sêmolas puras, ambas importadas da Itália. Ali não tem vez massa pré-cozida ou pasteurizada, adicionada de água. A receita segue o costume das nonas italianas. Aliás, uma distinta senhora de 83 anos, a nona Capra Chiarina, marca presença diária na casa, produzindo molhos, pondo a mão na massa, espalhando ensinamentos.  

Ela é avó do jovem chef e proprietário Bruno Manuali, 23 anos, um ítalo-brasileiro que mantém acesa a tradição de sua família na gastronomia. Ele faz questão de ressaltar que a massa produzida no local permanece al dente por mais tempo. “Ela absorve melhor o molho e tem o mesmo frescor e a mesma textura daquela que se aprecia na Itália”, garante, acrescentando que o sabor do molho advém do uso correto dos temperos e da qualidade dos ingredientes.

No piso térreo do Manuali fica o bar e uma estação de petiscos, indicado para a happy hour. Seguindo um hábito tipicamente europeu, o cliente pede um drinque tradicional e se serve de comidinhas quentes, saladas, frios e até sanduíches. No andar superior está instalado o restaurante, com vista panorâmica para a elegante Alameda Lorena. O cardápio é composto por pratos de todas as regiões da Itália. Entre as opções, taglierini ai frutti di mare, gnocchi gorgonzola e pere e salmone alle erbe aromatiche.

Além das massas, o menu traz aves, peixes e carne bovina red angus. A costeleta de cordeiro com batatas coradas (R$ 52) caiu no gosto dos fregueses. Outro hit é o nobre risoto de funghi com trufas negras (R$ 70) – por sinal, o Manuali é um dos raros endereços que oferecem autênticas trufas negras de Alba. Para acompanhar, o cliente tem à disposição uma carta de noventa marcas de vinho. Como sobremesa, a dica é uma saborosa torta de limão ou uma torta de iogurte com framboesa. 

Uma sugestão para a clientela mais despreocupada com calorias é a porqueta, cortada em fatias e com acompanhamento (R$ 48), servida apenas nos fins-de-semana. Na hora do almoço, é oferecido um menu-executivo com entrada, primeiro e segundo pratos e sobremesa, na faixa de R$ 50.  Tudo o que tem no cardápio é vendido para fora. Mas, neste caso, como assinala Bruno, o cliente faz a encomenda e os ingredientes seguem separados. "A gente recomenda que ele cozinhe em casa porque durante o trajeto, se o prato estiver pronto, corre o risco de perder qualidade", ensina. No Manuali, excesso de zelo é bem-vindo.     

(Fotos de Maurício Saad)   

Anote aí: 

Manuali. Alameda Lorena, 1442, Jardim Paulista. Fone: (11) 3063-1317 / www.manuali.com.br. Funciona de terça a domingo, das 8h às 24h.

 

Músicos em pé de guerra

A classe musical anda tensa, dividida em fronts de luta, parte dela sentindo-se órfã de representação. Tudo por conta da controvertida atuação da OMB – Ordem dos Músicos do Brasil, criada em 1960 com o intuito de regular a profissão de músico no Brasil. Há quem veja nesta autarquia pública federal um comportamento policialesco de milícia, não condizente com a lei 3.857 que a criou, e reivindicam uma ampla e irrestrita reformulação da entidade. Já os que a defendem, alegam que a realidade profissional dos músicos estaria mais precária não fosse a fiscalização empreendida pelo órgão. Poucas vezes o segmento esteve tão fragmentado e pulverizado como agora.   

A queixa básica daqueles que não se vêem representados pelo órgão é a de que a OMB tem se destacado ao longo dessas cinco décadas por impor de forma autoritária penalidades e restrições a quem não tem vínculos com ela. Para exercer profissionalmente seu ofício, o músico é obrigado a inscrever-se na entidade, submeter-se a um exame prático, que muitos julgam inócuo, pagar anuidade e daí receber uma carteirinha, com peso de licença para trabalhar.  

O cenário teria piorado com uma portaria de 1986 baixada pelo então Ministro do Trabalho Almir Pazzianoto, que criou a Nota Contratual como forma de resguardar os direitos previdenciários dos músicos. O problema, na visão dos críticos, é que a OMB utiliza-se deste documento para controlar se o músico está ou não filiado ao órgão e em dia com a tesouraria. Na prática, o que deveria servir para garantir aposentadoria digna, virou água com a constatação de que a maioria da classe sobrevive na informalidade.

Uma recente decisão judicial atirou a OMB contra a parede. O Tribunal Regional Federal da 3ª Região de São Carlos proibiu a entidade de fiscalizar os músicos e de exigir a inscrição no órgão, criando jurisprudência para estender a decisão para o País inteiro. Segundo a resolução, a lei que originou a OMB nunca exigiu o registro de todo e qualquer músico para o exercício da profissão, mas apenas daqueles com formação acadêmica, que estão sujeitos ao controle e fiscalização do Ministério da Educação. Por conta disso, estaria crescendo bastante o número de liminares de músicos profissionais contra a obrigatoriedade de vinculação ao órgão.

Não bastasse a sentença contrária, a autarquia tem sido fustigada por outras acusações graves. Uma delas é a de que teria se tornado um centro de desvios financeiros e corrupção, uma agência de controle e extorsão. O ex-presidente Wilson Sândoli, nomeado interventor da entidade pelo Regime Militar, é acusado de desviar R$ 1,4 milhão, comprar carros blindados e armas, contrair empréstimos e pagar despesas pessoais com recursos dos contribuintes músicos. Tantos escândalos acumulados durante a sua controvertida gestão (1966-2008) provocaram a sua substituição no cargo pelo então vice-presidente e maestro Roberto Bueno.   

Para parte da classe musical, a OMB é uma espécie de caixa preta que nunca foi aberta. A entidade é acusada de não prestar contas do dinheiro arrecadado nos shows internacionais que acontecem no Brasil – a Lei 3.857 prevê a cobrança de um imposto no valor de 10% dos cachês das atrações que vêm do Exterior. Sândoli também teria ateado mais fogo ainda quando dividiu a classe em duas categorias - o Músico Prático, de aprendizado autodidata, e o Músico Profissional, de formação acadêmica.

Na avaliação dos defensores de uma revisão sem tréguas do órgão, a OMB deveria tratar da informalidade, combater a pirataria e promover a educação musical. “A cena musical do país mudou bastante a partir do advento da revolução digital, gerando mudanças estruturais”, escreveu o músico Ricardo Peres no site Vermelho, do PC do B. “Temos que discutir novas regras nas áreas da cultura, da comunicação e da política. A nova cena pede por uma nova estratégia de representação dos músicos profissionais.”

Igual a motoboy. Alvo de tantos ataques, a OMB decidiu contra-atacar. O novo presidente Roberto Bueno (primeira foto abaixo), que assumiu no final de 2008, lembra que durante os sete anos em que ocupou a vice-presidência da autarquia, esteve de mãos presas porque o cargo não tinha poder de decisão. Ele rebate as críticas de que o órgão continua estagnado em sua gestão. “Informatizamos a entidade, criamos um site (www.ombsp.org.br), lançamos uma revista mensal, organizamos um plano de saúde para a categoria, damos aulas para músicos deficientes visuais e abrimos uma série de cursos gratuitos”, enumera.

A lista dos benefícios não pararia por aí. A OMB engajou-se em dois projetos sociais, ensinando música para crianças carentes e moradores de rua. Uma das principais metas agora é inaugurar uma Casa do Músico para atender profissionais em situação financeira difícil. “Também enviamos um projeto de lei para a Assembléia Legislativa de São Paulo propondo a isenção de impostos de todas as casas que contratarem músicos profissionais com algum tipo de deficiência física”, completa.

Bueno não poupa das críticas aqueles que estariam se aproveitando da situação. Entre eles, o SIMPROIND – Sindicato dos Músicos Profissionais Independentes, que criou uma carteirinha para os músicos independentes, e o deputado estadual Carlos Giannazi, autor de alguns projetos de lei para a área. “Esse tal deputado está a favor dos empresários e do capital e não da classe dos músicos”, fustiga. “Se o ex-Governador Serra não tivesse vetado um deles, que desobrigava o músico de apresentar a Nota Contratual, os profissionais seriam jogados na lama da ilegalidade”, alfineta.

Até mesmo o vínculo obrigatório com OMB, Bueno vê como natural. “Para atuar como corretor de imóveis, o camarada não tem que se inscrever no CRECI? O motoboy não necessita de carteirinha? Assim como o médico e o engenheiro, que também precisam. Então por que seria diferente com o músico?”, questiona.

Atualmente, segundo Bueno, a OMB abriga 63 mil inscritos, dos quais metade, os acima de 65 anos, está isenta do pagamento de 120 reais anuais. “Quando assumi existiam apenas quatro mil vinculados, isso mostra que a classe percebeu que nossa administração é transparente”, acredita o presidente, que critica os músicos amadores que tocam por hobby em bares nos fins-de-semana, ocupando o espaço de profissionais formados em universidades e conservatórios musicais.

“A OMB é um sonho realizado de nomes como Villa Lobos, Pixinguinha e Eleazar de Carvalho e somos radicais no que diz respeito à proteção do segmento”, assinala Bueno. Hoje a entidade dispõe de 27 delegacias regionais para fiscalizar o exercício da profissão. “Os músicos de Ilha Solteira solicitaram uma delegacia local porque a cidade vive um estado de prostituição musical”, revela. “Quem critica a gente tem um tipo de discurso ultrapassado, está olhando para trás.”    

Pressão na ordem. O guitarrista Paulo Santana, presidente do SIMPROIND, discorda desse raciocínio. Lembra que a OMB nasceu para banir a idéia de que músico é vagabundo e profissionalizar a atividade, mas que tal atribuição teria sido deturpada ao longo do tempo. “O órgão, que deveria cuidar da previdência dos músicos, virou instrumento de cerceamento e passou a assumir o papel de cartório de arrecadação financeira, limitando-se a fiscalizar quem tem a tal carteirinha”, cutuca Santana. “Aquele que não paga a anuidade, e deixa de ter o documento, acaba sendo proibido de trabalhar.”

Tanto é verdade, afirma Santana, que nos últimos dez anos a classe abriu fóruns de discussão na internet para alardear seu inconformismo e propor uma pauta de reivindicações. “A OMB não é uma entidade representativa do segmento e tem falhado na hora de registrar a Nota Contratual. Isso significa que o INSS dos músicos não está sendo recolhido conforme a lei, empurrando a classe à míngua. Você conhece quantos músicos aposentados?”, desafia.

Com o intuito de oferecer uma alternativa à carteirinha e à Nota Contratual, o SIMPROIND criou o PR-PIS, programa on-line de registro profissional, com intermediação sindical, que junta nota fiscal e recolhimento do INSS na fonte, a contar dos contratos realizados a partir de janeiro desse ano. “Eles alegam que precisam de recursos financeiros para se manter, mas e o recolhimento dos 10% do valor dos cachês das atrações internacionais? Só um show da Madonna daria para pagar alguns meses de salário dos funcionários”, observa.

Contrária ao vínculo obrigatório dos músicos à OMB a APBSESP – Associação dos Profissionais da Banda Sinfônica do Estado de São Paulo, que reúne os oitenta músicos da banda e o seu corpo técnico, obteve uma liminar em 1996 contra a cobrança da anuidade. “A OMB nunca se preocupou com contrato de trabalho e direitos trabalhistas, só se limitava a cobrar de forma truculenta e oferecer colônia de férias na Praia Grande”, conta o trompetista Sílvio Flórido, presidente da associação. “Lá na sede da ordem, a pressão para pagar a anuidade era insuportável, ameaçavam não carimbar a carteirinha e sem ela não podíamos trabalhar”, recorda-se. “Podemos até provar que a OMB não está agindo segundo os princípios de sua criação, mas também não concordamos com aqueles que querem por abaixo toda a estrutura montada”, completa.

Para o maestro Amilson Godoy (foto ao lado), há quinze anos à frente do Grupo Sinfônico Arte Viva, orquestra que traz a estética da música erudita para a música popular, a OMB precisa de reformulação tanto quanto outros órgãos que representam os músicos, para contemplar outras demandas também. “Como ninguém se preparou para a evolução tecnológica, o nosso mercado de trabalho encolheu e precisamos reverter isso. Estamos sendo substituídos por playbacks e gravações”, alerta ele, sugerindo que se destinasse aos músicos um percentual pela utilização do playback e participação nos direitos conexos de música ao vivo.

Presidente do SINDIMUSPI – Sindicato dos Músicos Profissionais e Intérpretes do Município de São Paulo, o baixista e compositor Mário Henrique de Oliveira, o Marinho TP, conta que há mais de três décadas briga contra a má administração e o descalabro financeiro na OMB, que considera uma torre de babel. Ele faz uma radiografia nada complacente do estado de coisas que acomete a categoria. “Eu sei de um empresário, melhor dizendo, um cafetão de músicos, que trabalha com oito bandas de forró e não recolhe nada. Também conheço um grupo de pagode, com oito integrantes no palco, que recebe R$ 100 reais por uma hora e meia de apresentação. O empresário deles passa literalmente por cima da lei. Então como fica se um dos pagodeiros adoece?”, questiona.

O problema, em sua avaliação, não seria mais fazer vistas grossas para a ilegalidade, mas não fazer vista alguma. Uma das primeiras medidas para readequar a OMB seria acabar com a diferença entre músico prático e acadêmico. A autarquia surgiu para defender o profissional de formação acadêmica, que só poderá exercer a profissão depois de regularmente registrado no Ministério da Educação e Cultura e no Conselho Regional dos Músicos. “Mas ao criar a categoria de músico prático para fazer caixa, o órgão acabou contrariando a lei”, sentencia Marinho.

Violãozinho sem vergonha. Outra mudança necessária seria definir as funções originais de cada entidade que atua no segmento. “A OMB deveria fiscalizar o exercício da profissão, cabendo ao sindicato da classe averiguar as condições de trabalho”, ensina Marinho. O mais urgente, no entanto, seria fazer valer o artigo 66 da Lei 3857, que estabelece obrigações e deveres do contratante no tocante ao recolhimento da previdência social. “Como pouca gente cumpre a lei, o músico que insiste na legalidade é preterido por outro que se submete à informalidade para sobreviver”, assinala.  

Coordenador da Frente Parlamentar em Defesa dos Músicos e Compositores do Estado de São Paulo, o deputado estadual Carlos Giannazi (foto ao lado) engajou-se na luta dos músicos contra as ações da OMB e pela reestruturação da política da entidade. Ele assina o projeto de lei 214/09, que anula a exigência de comprovação de inscrição na OMB, e o PL 223/09, que declara o livre exercício da profissão de músico em todo o território do Estado de São Paulo. Outro projeto de lei seu, vetado pelo Governador Serra, mas que entrará novamente na pauta legislativa nesse ano, proíbe a OMB de fiscalizar a Nota Contratual, uma tarefa que caberia ao Ministério do Trabalho. 

“Queremos que os músicos paulistas não sejam mais fiscalizados pela OMB nem obrigados a se vincularem ao órgão para exercerem a profissão”, anota o parlamentar, que também entrou com representação no Ministério Público Federal solicitando que o Supremo Tribunal Federal anule vinte artigos da lei que criou a autarquia. Giannazi disponibilizou o Disque-Denúncia na Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo (fone: 11. 3886-6686) para receber todas as reclamações feitas por músicos, professores de música, compositores e escolas que se sentirem vítimas do assédio da OMB.

O parlamentar também quer revigorar e potencializar a atividade com outras duas medidas. Uma delas, o PL 940/09, institui incentivo fiscal para bares, restaurantes, casas noturnas e condomínios de shoppings que realizem eventos culturais com música ao vivo. Já o PL 842/08 propõe educação musical por meio da inclusão aulas de música no currículo das escolas públicas de Educação Básica do Estado de São Paulo.

Na Câmara Federal tramita o PL 6303/09, assinado pelo deputado federal Zequinha Marinho, que também proíbe a exigência de inscrição na OMB para a prática da profissão. O proponente argumenta que a obrigatoriedade do vínculo afronta a Constituição Federal, que estabelece o livre exercício profissional. “Apesar de a jurisprudência registrar que o músico não é obrigado a se inscrever na entidade, é comum observarmos os profissionais e os contratantes receberem multa por exercício ilegal da atividade”, justifica.    

Na classe musical, a discussão parece não ter fim. No badalado blog do economista Luis Nassif, que alguns meses atrás publicou matéria a respeito, o músico internauta Toninho Cruz elogiou a OMB, “apesar de todos os defeitos da entidade”, e emendou que o cenário seria pior se ela não existisse. “A regulamentação da profissão é necessária porque hoje observamos várias pessoas tocando um violãozinho sem vergonha se dizendo músico, tirando o emprego de quem estudou”, escreveu ele, que atua há mais de quarenta anos na área.

O músico Antonio Rodrigues rebateu o colega, afirmando que uma classe profissional que é subjugada há anos por um mesmo grupo, perde a voz na hora de reivindicar alguma coisa. Ele afirma que quem não tem interesse na participação dos músicos é a própria OMB. “Nós tentamos inúmeras vezes mudar a diretoria, mas sem sucesso. A OMB deveria ser um órgão facultativo, só vinculando-se aquele que tem vontade de ter carteirinha de artista”. Rodrigues acredita que caberia ao público diferenciar o profissional do amador. "Ninguém tem o direito de afirmar quem é ou não um artista."

Com nove anos de estrada, a banda Som+Ativa (foto lao lado), que se apresenta em bares da Vila Madalena, receia que o debate, importante e fundamental para a classe dos músicos, se perca em meio aos interesses particulares de cada ator nesse processo. Os quatro integrantes defendem que todos os esforços feitos para regulamentar, organizar e proteger a atividade, venha de onde vier, serão sempre bem vindos. Como assinala com ênfase o guitarrista Ricardo Kaki, “o que não podemos de jeito algum é desunir o segmento, para não corrermos o risco de implodir o mercado musical.” 

 

 

(Edgar Olimpio de Souza - O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto da página inicial: Brand New Band / Por Marcos Corazza)    

    

 

Café familiar

Inaugurado em agosto do ano passado, o Café Raiz caiu no gosto dos moradores de Perdizes e de bairros vizinhos. Em pouco tempo atraiu clientela fiel, alguns deles atores em temporada no TUCA, o teatro da PUC a um quarteirão dali. Não é à toa que a cafeteria, de pé direito alto e ambientes com grandes janelas, seduz pela elegância rústica. A casa oferece extensa lista de cafés especiais, alcoólicos e gelados, e serve um variado cardápio no almoço e jantar, além de atender aqueles que querem apenas petiscar. Um dos petiscos é o ouriço de queijo.Revistas e wi-fi para notebooks estão à disposição dos fregueses. O mix de opções, de preço honesto, foi meticulosamente montado após estudos e testes realizados pelo casal José Olympio e Beatriz Cintra, responsáveis pelo gerenciamento do ponto.

 

O blend selecionado é composto 100% de café arábica da região da Alta Mogiana, no Interior de São Paulo. Quem conhece esses tipos de grãos sabe que resultam em uma bebida mais suave, aromática e saborosa, cujo gosto permanece tempo maior na boca. Por sinal, um dos hits é o café extraído pelo coador de pano - o próprio cliente derrama a água quente sobre o pó. Vale experimentar o capuccino raiz, com pedaços de chocolate Callebaut, leite vaporizado e bastante chantilly. No almoço, a sugestão é um prato de salmão, posta ao molho de maracujá, purê de mandioquinhas e legumes no vapor. Outra pedida, não muito comum em cafeterias e aqui uma novidade, são os hambúrgueres, feitos com carne moída no próprio local. O de bacalhau é um sucesso – gadus mohua desfiado, com camada de tapenade, alface americana e tomates, no pão de hambúrguer tradicional.        

 

Café Raiz. Rua Cardoso de Almeida, 920, Perdizes. Tel.: 3868-4747. Funciona de domingo a quinta, das 10h à 0h; sexta, das 10h à 01h; sábado, das 8h à 01h;domingo, das 8h à 0h.

 

Cerveja brasileira desce quadrada

A cerveja produzida no Brasil não tem qualidade, é elaborada de maneira enganosa e já foi melhor no passado. A impressão é a de que todas são iguais, só mudam o rótulo. Quem afirma isso é o físico e professor emérito da Unicamp Rogério Cezar de Cerqueira Leite, que sabe estar mexendo num vespeiro. Tudo porque decidiu expor sua opinião nada generosa em relação a uma das instituições mais veneradas do Brasil, a cerveja. Para ele, o que estamos bebendo é um suco de milho fermentado e não uma bebida feita com cevada ou malte. “A nossa cerveja mata a sede, mas não satisfaz ao paladar mais exigente”, cutuca. “Era melhor nos tempos em que havia competição entre os produtores. Hoje, parece evidente que as grandes companhias têm um poderoso lobby.”

Foi num artigo que assinou poucas semanas atrás na Folha de S. Paulo que ele detonou a paixão nacional. O que escreveu não caiu no vazio. Nem poderia ser diferente. Uma semana depois, no mesmo espaço, o químico e mestre cervejeiro Silvio Luiz Reichert o rebateu, afirmando que a indústria nacional de cerveja tem tradição de mais de um século e produz bebidas de altíssima qualidade. “Como ele não aprecia um produto consumido e aprovado pelos brasileiros, levantou argumentos duvidosos para concluir que a nossa cerveja é ruim”, alfinetou. Nesta entrevista, Cerqueira Leite não elegeu a melhor cerveja do mundo, mas elencou algumas que considera seguirem um padrão de qualidade. E aproveitou para ironizar a publicidade brasileira, que associa a bebida a mulheres seminuas. 

 

Edgar Olimpio de Souza

 

 

Em artigo recente publicado na Folha de S. Paulo, você argumentou que a cerveja brasileira é ruim. Isso significa que nós bebemos gato por lebre?

Sim. Todos nós ou pelo menos quase todos pensamos que estamos bebendo uma cerveja feita com cevada ou malte, ou seja, cevada germinada, quando em realidade estamos bebendo um suco de milho fermentado.O milho constitui quase três quartos da matéria-prima da cerveja brasileira. Ou seja, com pequenas e honrosas exceções, a nossa cerveja mata a sede, mas não satisfaz ao paladar mais exigente.

 

Para chegar a tal conclusão, chegou a fazer testes ou pesquisas específicas?

Não fiz pesquisas em laboratórios, apenas na literatura. A minha conclusão é baseada na disponibilidade de cevada no Brasil. É, portanto, uma conclusão indireta, mas de certa maneira consubstanciada por uma pesquisa realizada em um instituto estadual de São Paulo há algum tempo. O relatório desse estudo revelava que quase 50% do conteúdo da bebida era proveniente do milho.

 

A nossa cerveja sempre foi ruim ou é um fenômeno recente?

A nossa cerveja foi muito melhor nos tempos em que havia competição entre os produtores e esta disputa não era apenas com relação ao preço, mas também com referência à qualidade. Aos poucos o nível da cerveja brasileira foi decaindo.

 

De certa forma, a cerveja brasileira é barata. É possível ter um produto de qualidade com preço tão baixo?

De fato, uma cerveja de melhor nível, uma ale, por exemplo, tem os custos de produção maiores, além de precisar de uma quantidade maior de cevada e lúpulo de qualidade. Todavia, o bom bebedor de cerveja não se incomodaria em pagar mais por uma cerveja de qualidade relativamente boa. Há hoje no mercado nacional um grande número de cervejas importadas que ainda são caras por uma questão de escala e porque os importadores ainda não estão bem estruturados, mas já existe boa cerveja por preços acessíveis.

 

Acha que as cervejas de produção em massa no Brasil são todas iguais, que só mudam os rótulos?

A impressão que se tem é a de que as cervejas nacionais com rótulos diferentes tendem crescentemente a se igualarem. Aparentemente, é uma política das empresas produtoras.

 

Qual é a melhor cerveja brasileira? Existe alguma que se aproxime em qualidade das principais cervejas do mundo?

Não poderia dizer qual a melhor cerveja brasileira. Algumas tentam imitar as ales e tanto quanto as poucas que conheço não parecem muito bem sucedidas.

 

A indústria cervejeira no Brasil tem grande poder de lobby e tráfico de influência?

Parece evidente que as grandes companhias de cervejas têm um poderoso lobby. Quando uniram a Brahma e a Antártica, dominando 70% do consumo nacional, elas convenceram as autoridades nacionais de que não estavam violentando as normas que regulam a formação de monopólios. Argumentaram que só assim poderiam concorrer no mercado globalizado. O incrível é que depois foram absorvidas por uma multinacional de capital estrangeiro e nenhuma providência foi adotada contra isso. O governo e o povo brasileiros foram enganados. Também não explicaram a prática perversa de coagir cervejarias nascentes, absorvendo-as ou banalizando seus produtos.  

 

Falta mais concorrência à cerveja brasileira?

Aparentemente, com o recente crescimento de importações de cervejas da Inglaterra, da Alemanha, da Bélgica e da Tchecoslováquia, deverão surgir cervejas de qualidade no Brasil. Esta é, entretanto, uma expectativa otimista.

 

Que país produz a melhor cerveja do mundo?

É muito difícil dizer qual país produz a melhor cerveja, pois gostos são diferentes. As cervejas mais elaboradas são as belgas, principalmente aquelas produzidas nos seis conventos trapistas, mas há outras cervejas belgas também de excelente qualidade. Gosto muito das cervejas inglesas do tipo ale, em especial aquelas denominadas ´bitter´.  Também as da Tchecoslováquia, do tipo larga, são de ótimo nível e muitos consideram as alemãs as melhores de todas, embora haja uma grande diversidade de tipos na Alemanha. As boas cervejas belgas, inglesas e alemães utilizam lúpulo de boa qualidade e dispensam o uso de antioxidantes e estabilizantes.

 

Na sua opinião, o que fez a cerveja se tornar instituição cultural brasileira?

A cerveja é uma instituição mundial e não brasileira. Em realidade, se olhamos per capita, o brasileiro bebe menos cerveja que os tchecos, os alemães, os ingleses etc. Trata-se de uma questão puramente econômica.

 

Por que todas as cervejas lançadas no mercado são apresentadas como leves?

O termo leve, acredito, é puramente propagandista. O que aparentemente acontece é que as cervejas brasileiras têm um teor de álcool relativamente baixo.

 

Poderia explicar por que foi imposta no Brasil a cultura de se servir cerveja estupidamente gelada? Qual é a temperatura ideal para servi-la?

Quanto pior a cerveja, mais gelada ela precisa ser, embora o mito da cerveja quente, ou seja, servido na temperatura ambiente como se supunha que os ingleses bebiam, está passando. Hoje eles têm meios para comprar geladeira. Além do mais, a temperatura ideal varia com o tipo de cerveja e também com o gosto peculiar de cada indivíduo.

 

Como avalia as cervejas artesanais brasileiras?

Ainda não há uma tradição de cerveja de pequenas produtoras no Brasil. É uma ótima iniciativa, mas ainda está engatinhando.

 

O que pensa a respeito da propaganda da cerveja brasileira? Quase toda publicidade mostra que o prazer de beber só é completo quando os homens estão cercados por mulheres seminuas.

Beber cerveja com mulheres seminuas em seu entorno desvia a atenção quanto à qualidade da cerveja, mas é compreensível que alguns prefiram esta situação.

 

 

 

 

 

 

 

"Ser vegetariano não é comer saladinha"

Quem afirma isso, de forma irônica, é o chef de cozinha Augusto Pinto, que pilota o Goa Gourmet Vegetariano, um descolado e bem freqüentado restaurante no bairro de Pinheiros que subverteu o clichê da culinária vegetariana ao servir pratos que fogem da surrada receita natureba, popularizada na época hippie, de arroz com lentilhas e soja. Ou da trivial saladinha, como muitos imaginam. Nem os garçons do lugar se vestem com o visual de um típico bicho-grilo. “Ser vegetariano hoje é mais do que um estado de espírito, significa incorporar outros conceitos, como o compromisso com a sustentabilidade, por exemplo”, ensina ele.

 

No Goa, o preço único do almoço dá direito a entrada, prato principal (se o cliente quiser, pode pedir mais meio prato), suco natural e sobremesa. As opções vão de uma deliciosa feijoada vegetariana (ensopado de feijão com legumes, proteínas vegetais, tofu e seitam) a uma lasanha vegetariana de dar água na boca. “O cozinheiro trabalha com a memória degustativa, para se lembrar do sabor e da textura do alimento”, explica o paulistano Augusto, 47 anos, que volta e meia vai para a cozinha também. “Um prato é como uma aquarela de ingredientes, uma tela para se pintar. A comida tem o condão de produzir ótimas relações afetivas”.

 

Dá para afirmar, sem medo de errar, que o sucesso da casa e seu menu inventivo e bem contemporâneo é resultado não só da vocação para a gastronomia de Augusto como de uma trajetória de vida cheia de experiências. No início dos anos 1980, então adolescente cheio de dúvidas, passou no concorridíssimo vestibular da Escola Preparatória de Cadetes do Ar, na cidade mineira de Barbacena, classificando-se entre os trezentos aprovados em meio a trinta mil candidatos.

 

Durante os três anos do curso, ele se diferenciava dos colegas nem tanto pela facilidade com que dedilhava um violão ou cantava MPB, mas pela habilidade que exibia na cozinha. Sua família tinha tradição na área de gastronomia. O avô havia sido um inveterado boêmio no Rio de Janeiro dos anos 1930 e seu pai chegou a comandar uma churrascaria nas décadas de 1960 a 80.

 

Logo após abandonar a incipiente carreira militar, estudar publicidade por um ano na ESPM – Escola Superior de Propaganda e Marketing e trabalhar como contato publicitário, decidiu fazer as malas e desembarcar na Europa, onde permaneceu por três anos. O quartel general era Londres, mas, sempre que possível, escapulia para Marrocos, Portugal, Holanda, França, Espanha e outros países vizinhos.

 

Para sobreviver, depois de perceber que seu inglês não era suficiente até para a prosaica função de lavar pratos em restaurantes, arriscou-se a tocar violão nas escadarias do metrô londrino. Foi quando descobriu, pela indiferença dos transeuntes que mal o percebiam em Picadilly Circus, que havia um esquema clandestino montado para os músicos de rua. Não era qualquer ponto que funcionava. Só conseguiu furar o bloqueio ao conhecer outro músico brasileiro, que ensinou o caminho das pedras.

 

No divã. A virada, no entanto, aconteceu ao conhecer o maestro Carlos Galvão, que estava recrutando músicos para compor um grupo brasileiro naquele país. “Nós nos apresentamos no Royal Festival Hall, em uma das mais importantes salas de concertos de Londres na época”, recorda. Galvão, porém, acabou convocado pelo então presidente Sarney para voltar ao Brasil e dirigir a Universidade de Música de Brasília. Sem outra opção, Augusto juntou-se a uma banda colombiana de salsa. “Chegamos a tocar num hospital de Amsterdã, ficamos no pátio e os doentes acompanhavam das janelas de seus quartos”, conta. Alguns imprevistos depois, se viu sozinho em Amsterdã, quando chegou a passar fome e dividir apartamento com um chileno viciado em heroína.

 

Em 1987, após conhecer a primeira mulher, uma pernambucana de passagem por Londres, mudou-se com ela para Tenerife, nas Ilhas Canárias. No arquipélago espanhol, por quase um ano, tocou bossa nova em hotéis para turistas ingleses. Então retornou para o Brasil e casou-se formalmente. Teve um filho, atualmente com 18 anos, apaixonado por literatura russa. Sem espaço para tocar em bares, no complicado final do governo Sarney, passou a vender sanduíche natural e outros quitutes, durante a semana em escritórios comerciais em São Paulo, e no litoral paulista, aos sábados e domingos. Quem o acompanhava era o fotógrafo e artista plástico espanhol David Dalmau, hoje nome conhecido no circuito das artes visuais e seu sócio no Goa. 

 

Foi nessa ocasião que uma amiga o apresentou para o consultor cultural Yacoff Sarkovas, dono da Articultura, que o contratou para ser produtor executivo da empresa. Augusto estreou no espetáculo Elsinore, um concerto cênico dirigido por William Pereira. “Nunca mais vou me esquecer das montagens e desmontagens do cenário, era coisa de gente maluca”, diverte-se. Após breve período na nova atividade, preferiu trabalhar por conta própria e abriu a sua produtora, a APPART. Um de seus feitos foi pilotar a elogiada restauração do Páteo do Colégio, além de ter coordenado turnês e apresentações internacionais de músicos como Sérgio Mendes (1993, em Porto Rico) e Toquinho (1994, na Alemanha).

 

Em 2001, separou-se e demorou alguns meses para reorganizar a vida. Enjoado de depender de terceiros para tocar seus negócios, sonhou abrir um restaurante, seguindo o histórico familiar. Com Dalmau e um amigo inglês, inaugurou o Eugênia Restaurant & Music Bar, de cozinha internacional, fechado dois anos após por falta de clientes. Aí Augusto, no intuito de reciclar seu malsucedido negócio, transformou o ponto no Gaia, já com culinária vegetariana, que no final de 2007 virou Goa. O nome homenageia uma região do oeste da Índia, ponto de encontro dos hippies nos anos 1960.

 

Um dos fatores que o impulsionaram nessa mudança foi a psicanálise lacaniana, apresentada pela sua atual mulher, Rejane Arruda, atriz e doutoranda em artes cênicas pela USP. “A psicanálise me ensinou a enxergar as coisas com mais profundidade, a eliminar o péssimo hábito de responsabilizar os outros pelos nossos fracassos, a evitar a repetição de um padrão”, resume ele, que desde 2002 reserva ao menos um dia da semana para deitar-se no divã.

 

Respeito à natureza. Neste mês de abril Augusto abrirá outro restaurante, o Yam, na Vila Madalena, cujo nome vem do mantra do chakra do coração e que servirá comida vegetariana em regime fast-food. A decoração terá como base o reaproveitamento de materiais reciclados, como uma luminária feita com latas de ervilhas e garrafas de coca-cola. Outra novidade será um estacionamento móvel, feito a partir de uma carcaça de automóvel, com capacidade para guardar até dez bicicletas.  

 

A psicanálise e o segundo casamento, aliás, não foram os únicos responsáveis pela reviravolta que motivou Augusto a abraçar de vez a gastronomia vegetariana. Em 2004, numa comunidade mineira formada por remanescentes hippies seguidores do Mestre Saint Germain, ele passou 21 dias meditando e sem se alimentar. A experiência foi tão transformadora que ele borrifou todo o conhecimento acumulado na criação e nos princípios que regem a administração do Goa.

 

Na casa trabalha-se com o conceito da sustentabilidade – tudo o que gera lixo, como garrafas de refrigerante e materiais descartáveis, é banido do cardápio. Portanto, quem gosta de coca-cola, por exemplo, deve correr para o bar da esquina. O menu segue a risca a doutrina. “Podem me chamar para ser cozinheiro no Greenpeace pelo Amazonas, mas não para ir ao mercadão comprar carne para churrasco”, avisa ele, que também atende a domicílio e pode preparar, por exemplo, um coquetel à base de canapés vietnamitas.

 

O que Augusto não digere é o que chama de processo de produção predatório, aquilo que implica maltratar animais e interferir na saúde e bem estar do meio ambiente. “Você sabia que a população suína em Santa Catarina é maior que a população brasileira? Para se produzir 1 kg de carne são necessários vinte mil litros de água, enquanto a produção de grãos requer só quatro mil litros”, compara.

 

Em relação aos refrigerantes, é taxativo. “O elemento mais poluidor dos rios do planeta são as garrafas pet de refrigerantes e as sacolas plásticas”, sentencia ele, que não se julga um militante ecológico chato nem ambientalista xiita, mas afirma ter uma visão de responsabilidade do negócio que comanda. “Não acho que as pessoas deveriam virar vegetarianas, mas se a maioria preferisse comer em lugares com responsabilidade ambiental já seria uma vitória”, acredita.

 

A filosofia que orienta o cardápio do Goa é largo o suficiente para permitir a inclusão de elementos das culinárias baiana, vietnamita, tailandesa, judaica e de várias outras culturas, fruto de pesquisas e das viagens de Augusto pelo mundo atrás de novidades. “Quando me perguntam qual é o estilo da comida que sirvo, eu simplesmente respondo que é a comida que eu gosto”, assinala. Ele avalia que os freqüentadores da casa são, em sua maioria, pessoas especiais. “São aqueles que buscam qualidade de vida, exercitam a generosidade, ligam-se em ecologia e defendem projetos pacifistas.”

(Fotos da fachada e do interior do restaurante: Gladstone Campos)     

 

Goa Gourmet Vegetariano. Rua Cônego Eugênio Leite, 1152, Pinheiros. Fone: 3031-0680. Funciona de terça a sexta, das 12h às 15h30; sábados, domingos e feriados, das 12h às 16h30. R$ 21 (terça a sexta) e R$ 26 (sábado e domingo).

www.goavegetariano.com.br  

 

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