EDITOR: Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

 

  • Font size:
  • Decrease
  • Reset
  • Increase

O crítico descolado

Próximo de completar 60 anos de vida, o crítico e curador de artes plásticas Paulo Klein já escolheu como festejar a data. Sob o selo PK60, pretende tirar do baú toda a sua produção crítica, jornalística, artística e cultural acumulada ao longo de quatro décadas voltados às artes. Com o material levantado e organizado, que provavelmente exigirá fôlego de maratonista, vai articular uma gorda agenda de publicações e eventos. Um deles resgatará dois marcos importantes que pontuaram a abertura política no País trinta anos atrás - Encontro de Arte Independente e Procopiarte – e a partir daí estabelecer um diálogo com o atual momento brasileiro. “Meu acervo tem contribuições importantes para a cultura do País nesse período e vou mostrá-lo de forma coerente e dinâmica”, adianta.

 

Certamente não faltarão histórias para contar ao mergulhar neste universo multifacetado. Aos 16 anos, em São Paulo, ele assinava artigos ao lado de nomes como Jorge Amado e José Condé. Nos anos 1960 militou no movimento estudantil, ainda que discretamente, e montou peças de teatro e shows. Na década seguinte, fez capas famosas de discos de artistas então pouco conhecidos, além de produzir shows e divulgar discos de nomes como Alceu Valença, Fagner e Zé Ramalho. Também fumou maconha, provou LSD e quase foi preso. “Eu tinha em mente ser um artista como tantos outros, múltiplo, literário e intelectual de ação, algo assim como um Ferreira Gullar”, revela.

 

Atualmente Klein é uma das figuras importantes no circuito nacional das artes plásticas, assinando críticas, executando curadorias, escrevendo livros, organizando eventos culturais. “É uma pena, mas no Brasil a crítica está omissa demais, sem denunciar inúmeras mazelas, sem romper com atitudes visivelmente corruptas”, avalia. Nesta entrevista, ele radiografa sua trajetória, faz um balanço do segmento, relembra episódios curiosos, como o encontro com o então sindicalista Lula, e detalha o projeto PK30.

 

Edgar Olimpio de Souza

 

Na adolescência, enquanto muitos amigos divertiam-se, você já pegava no pesado?

Eu me divertia também, claro, mas comecei minha vida profissional cedo. Antes dos 16 anos já escrevia para jornalecos e um dia desembarquei na redação paulistana do Jornal de Letras. Era uma sucursal coordenada por uma jornalista histórica, Maria de Lourdes Bernardes, que me adotou e publicou meus primeiros artigos. Convivia com Assis Brasil, Jorge Amado, Lindolf Bell e outras feras. Naqueles tempos havia um glamour diferente nos intelectuais undergrounds, na vida boêmia de São Paulo. Eu achava que só conseguiria trabalhar e viver se fosse com paixão. E estou aqui, tentando até hoje, eterno apaixonado pelo métier. 

 

De onde surgiu sua paixão pelas artes plásticas?

Minha mãe havia pintado na juventude, em seu papel de mulher prendada, e me ensinou a lidar com materiais, a ter paciência para pintar, colar, dobrar. Eu também vivenciei um mundo em que as pessoas tinham boas obras de arte em casa. Então, desde pequeno, eu já era despertado pelo trabalho de artistas estranhos como Leopoldo Lima, irmão de Antonio Bivar, e Waldomiro de Deus, artista baiano que se intitula artista autodidata contemporâneo. Pensava comigo: que mundo incrível é este, em que as pessoas têm passaportes para criarem seus próprios universos visuais!  

 

Daí para a crítica deve ter sido um pulo...

Ao longo do tempo, no início dos anos 1970, fui assumindo também este papel de crítico de arte e curador, mas sempre à minha maneira. Na verdade, eu tinha em mente ser artista, como tantos outros, múltiplo, literário, intelectual de ação, algo assim como um Ferreira Gullar ou um Jean Paul Sartre. Que pretensão a daquele rapaz!. Não me considero um crítico de arte convencional. Faço curadoria como quem escreve um poema. É o modo como vejo o curador, aquele que trabalha incansavelmente para dar alma a uma curadoria.

 

E como se enxerga na pele de crítico?

Tenho convicção de que o papel do crítico de arte vai muito mais longe do que supõe a vã filosofia de que “crítico só serve para encher lingüiça e dizer se gostou ou não gostou”. Creio que há um momento da crítica em que a profundidade da discussão é o que permeia o sucesso de um artista, seja comercial ou um sucesso de crítica. Isso, no entanto, fica cada vez mais complexo no mundo de hoje, com a velocidade e agilidade da informação, quando o crítico de arte, e conseqüentemente o curador, tem papéis nobres como o de tentar decodificar uma determinada obra. Ou separar o joio do trigo de uma produção ou escrever um livro ou plantar uma árvore.

 

Você viveu intensamente os ´loucos anos 1960´, como se diz daquela época?

Em 1960 eu tinha exatamente 10 anos. Ao longo da década militei na política estudantil, mesmo que discretamente, participei de passeatas, ações relâmpagos, panfletagem. Era inadmissível não se engajar contra a ditadura, embora houvesse pressão grande das famílias para a gente não se envolver, para não correr o risco de desaparecer como tantos. Já nos anos 1970 fumei maconha e tomei LSD. Eu e minha turma barbarizávamos nos modos e nos costumes. Depois ficou todo mundo careta. Alguns piraram pelo caminho. Certa vez fui preso por conta de uma suspeita de consumo e tráfico. Mas acabei liberado, porque não provaram nada.

 

Só ficava nessa toada de paz e amor, movimento estudantil, maconha...

Claro que não. Lembro que por volta de 1964 eu freqüentava, com meu amigo Ari Costa Pinto, os bastidores do Paramount, aquele velho teatro da Rua Brigadeiro Luis Antônio, onde aconteciam shows como Paramount - o Templo da Bossa, hoje históricos. Conheci no papel de tiete gente como Luiz Bonfá, Gilberto Gil, Alaíde Costa, Elis Regina, Maria Odete e outros pesos-pesados da música popular brasileira. E paralelamente ao Jornal de Letras, em 1968/69, comecei a colaborar na revista Artes, publicação de periodicidade variável assinada e quase totalmente escrita por Carlos Von Schmitd, famoso curador e crítico de artes.

 

Que tipos de artigos você escrevia?

Sobre música. Naquela época eu me encantava com o rock internacional em todas as suas vertentes. Um dos meus orgulhos foi ter emplacado no Artes um artigo quando da morte de Jim Morrison, do The Doors. Lembro que o Von Schmidt não conhecia os caras, mas frente aos meus argumentos, reforçados pelos textos do Ezequiel Neves no Jornal da Tarde, autorizou a minha estréia em seu editorial que, segundo a crítica Araci Amaral, tinha um quê de jornal dadaísta. 

 

Música e artes plásticas eram o que garantiam o seu sustento?

Não. Como eu sempre fui curioso e atrevido, arrisquei outras atividades. No final da década de 1960 me associei a Luiz Adelmo, aspirante a produtor teatral, para montar as peças Cordélia Brasil e O Cão Siamês de Alzira Power, textos de Antonio Bivar e direção de Emílio Di Biasi. Montamos ainda o show Que Maravilha, dirigido por Fernando Faro, com JorgeBen Jor, Araci de Almeida, Paulinho da Viola, Toquinho, Trio Mocotó e Quinteto de Luiz Loy. Como se tratava de um espetáculo avançado demais para a época, acabou sendo um fracasso de público.

 

Você não enveredou pela fotografia também?

Na virada de 1960 para 1970 estudei na Enfoco Escola de Fotografia, de Claude Kubrusly, freqüentada por uma turma de ponta da fotografia, entre eles, Maureen Bisilliat, Bina Fonyat e Cristiano Mascaro. Enxerguei ali perspectivas humanísticas e até artísticas. Aí montei um estúdio fotográfico na Rua Augusta, com fundo infinito e laboratório. Eu trabalhava principalmente com fotos para o meio artístico. Mas sempre desenvolvi minhas propostas autorais.

 

O que você fez de interessante nesse segmento?

Fiz a capa do último elepê dos Mutantes (Mutantes e Seus Cometas no País dos Bauretes), do Nelson Gonçalves e de algumas bandas pioneiras. Depois trabalhei com Belchior, Fagner, Alceu Valença, Amelinha e Zé Ramalho. Fiz capas de discos, produzi shows e atuei como assessor de imprensa deles, o que também tive o prazer de fazer para Egberto Gismonti, Hermeto Paschoal, Nana Caymmi e Ângela Ro Ro. Em São Paulo e no Grande ABC realizei várias exposições fotográficas, individuais e coletivas.

 

É verdade que você foi um dos responsáveis por aproximar Lula dos intelectuais?

Em 1974 eu trabalhava no Diário do Grande ABC, em Santo André, por sinal um celeiro de bons jornalistas na época. Certa vez recebi ligação do escritor João Antonio, dizendo que se falava muito de uma liderança que surgia no ABC. Ele e outros escritores queriam fazer contato com o tal líder. Eu articulei então, através do Sindicato dos Metalúrgicos, um encontro do Lula com o pessoal. Compareceram o Antonio Torres, o João Antonio e o Wander Pirolli. Lembro que na mesa do sindicato tinha uma garrafa de cachaça, que iria marcar o encontro entre as partes. Conversou-se muito sobre política, Getúlio Vargas e os benefícios que ele concedeu para os trabalhadores. Acabamos comendo frango com polenta num daqueles restaurantes da região.

 

Para quem vivenciou uma época marcada pelo espírito coletivo, acha que as gerações de hoje estão mais individualistas? 

Sinto que há certa dificuldade para se trabalhar coletivamente. No entanto, quando engrena e dá liga, é invencível. Tenho convivido com as experiências dos coletivos de arte, que tiveram impulso nos últimos cinco a dez anos. Os processos se repetem e os grupos artísticos acabam se articulando entre seus iguais, criando um circuito, uma rede. Mas, regra geral, o mundo de hoje está mais individualista, cada um querendo mais é cuidar de seu próprio umbigo.

 

No final das contas, em meio à profusão de atividades, sobressaiu a de crítico de artes plásticas...

A partir de 1980 eu achei que tinha que dar mais visibilidade ao trabalho de crítico do que ao de artista, fotógrafo ou jornalista. Foi uma opção consciente porque acho que a crítica de arte de qualidade contribui para fortalecer e valorizar o circuito. Hoje a atividade da crítica em artes, em cultura, em designer, moda, música, cinema é ultra-recorrente. Você continua tendo ótimos profissionais, jovens até, como também tem os irresponsáveis, incompetentes e vacilantes.

 

A crítica de artes plásticas é valorizada no Brasil?

Meu pai sempre disse: “Só se atira pedra em árvore que tem fruta”. Vive-se um momento de muito afunilamento no competitivo corredor das curadorias, por exemplo. As oportunidades editoriais de livros de arte são para poucos profissionais. As curadorias são possíveis em reduzidos espaços idôneos. Acho que a crítica de artes plásticas é um componente necessário da engrenagem. Pena que no Brasil de hoje ela esteja omissa demais, sem denunciar inúmeras mazelas, sem romper com atitudes visivelmente corruptas.

 

Perdeu a força?

Infelizmente, é uma atividade subvalorizada no País, assim como as de escritor e intelectual. Mesmo assim, temos nomes atuantes como Paulo Herkenhoff, Tadeu Chiarelli, Paulo Sergio Duarte, Ivo Mesquita e Lisete Lagnado. Só a nossa Associação Brasileira de Críticos de Arte, filiada à Associação Internacional, criada entre outros pelo Mario Pedrosa, tem hoje mais de duzentos associados. 

 

Como curador, quais foram os seus principais trabalhos?

Em 1973 assinei a exposição multimídia Fiesta em Oh! Linda, no Museu de Arte Contemporânea de Pernambuco, em Olinda. Em 2000 realizei no Centro Cultural Banco do Brasil, em São Paulo, a curadoria de Pop Brasil, que tratou daArte Popular e do Popular na Arte Contemporânea e recebeu o Prêmio Maria Eugênia Franco para Melhor Curadoria do Ano. Em 2002 fui o primeiro curador convidado para a Bienal de Arte Naîf, no Sesc Piracicaba. No ano passado montei Helium2, individual do artista japonês Hélio Nomura, na Galeria Berenice Arvani. Também realizei recentemente curadorias para a Judith Lauand, em Araraquara, e para o artista multimídia Cacau Brasil, no Museu da Língua Portuguesa, na Estação da Luz.  

 

O que tem de mais interessante acontecendo nesta área atualmente no Brasil?

Perguntinha danada. A rigor, o que é bom costuma ficar. Casos de João Câmara, Samico, Mario Gruber e Waltercio Caldas, para citar apenas alguns importantes artistas vivos. Mas há ainda os órfãos de Oiticica e de Lygia, como Cildo Meireles e até Vik Muniz. Não dá para ignorar OsGemeos, a dupla de street art que atrai a garotada e o mundo. Posso arriscar outros que se destacam em seus segmentos, mais atuais, como Marcelo Moscheta, Laura Lima, Aguilar, Marcio Pannunzio, Cássio Vasconcellos, Gal Oppido e Lucas Bambozi, entre muitos outros que não caberiam aqui.

 

Como é trabalhar com arte e cultura no Brasil desde os anos 1960 até hoje?

Uma grande ilusão. Como canta Gilberto Gil, ´um dia mandarim, outro sem comer´. Vive-se um pouco da sorte, de marés, de patrocínios periódicos. O que ajudou um pouco nos últimos anos foi o acesso a recursos através das leis de incentivo. Porém, em termos de políticas nacionais generosas para com os segmentos de pesquisa, crítica, curadoria, além da própria atividade artística, ainda se deixa muito a desejar. A política cultural brasileira, em harmonia com outras políticas, é pífia e injusta, paternalista e não competente num sentido amplo.

 

À beira de se tornar sexagenário, você pretende puxar o freio e trabalhar menos?

Que nada! Quero comemorar meus 60 anos de vida com o projeto PK60. É uma idéia ambiciosa. A intenção é fazer o resgate de minha produção como escritor, fotógrafo, jornalista, compositor popular, crítico de arte e agitador cultural. Vai incluir também a reedição de alguns documentários em cinema, com material já editado e outro ainda bruto, sobre Raphael Galvez, Judith Lauand e Arte de Rua. Vou buscar recursos para pesquisar, restaurar e reeditar isso. Acredito que nesse baú deve haver contribuições e referências importantes para a cultura em São Paulo e no Brasil nesse período. Tem ainda o workshop de curadoria de exposições e livros de arte e de fotografia que irei ministrar neste ano na Imã Foto Galeria, do casal Carla e Egberto Nogueira.

 

Pelo jeito, vai ser difícil a seleção...

Neste ano completam-se três décadas de dois eventos que marcaram a abertura política em São Paulo, nos quais fui um dos coordenadores. O Encontro de Arte Independente, realizado no Sesc Vila Nova, reuniu talentos de todos os segmentos que haviam ficado represados durante a ditadura. O Procopiarte, no Teatro Procópio Ferreira, foi definido por um jornalista como um evento anarco-triunfalista que misturava Poesia com Música, Teatro e Artes Visuais. Alceu Valença, Zé Ramalho, Zé do Caixão, Teatro Ornitorrinco, Ismael Ivo, Hermeto Paschoal e Almir Sater foram alguns dos que participaram. O selo PK60 pretende estabelecer um nexo entre aquele momento e os dias de hoje, ligar as pontas deste quebra-cabeça. Em breve as informações estarão disponibilizadas no site www.pauloklein.art.br e nos canais culturais viáveis. 

(Fotos da página inicial e em sépia: Bebeto Alves)

(Foto estilizada: Iatã Cannabrava / Arte: Cláudia Furlani)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Comente este artigo!

Modo de visualização:

Style Sitting

Fonts

Layouts

Direction

Template Widths

px  %

px  %