Sonhos de noviça

Nos três painéis que formam a exposição Samsara dos Sonhos, em cartaz em São Paulo, noviças sentadas nos centros dos quadros, com olhares frágeis e gestos delicados, são representadas em ambientes sombrios, cheios de criaturas fantásticas, envolvidas por uma natureza peculiar com plantas contorcidas. A obra do mineiro Danilo Kato, com um pé no surreal, costuma transitar entre a inocência e a perversidade e pode ser interpretada à luz da psicanálise. Sigmund Freud afirmava que um sonho inocente pode ser uma máscara criada pela consciência para esconder atos considerados pervertidos. Conceitualmente, é assim que o trabalho deste inquieto artista de 22 anos pode ser identificado. O mais perturbador em Kato é que animais que aparentam ser perigosos, como o dragão e a serpente, vistos em algumas de suas criações, talvez sejam os inocentes. Na contramão, por exemplo, destas noviças sensíveis e frágeis que nos transmitem uma tensão. Como existe tanta pureza em um ser? É de se desconfiar. Lembremos mais uma vez do Pai da Psicanálise, quando ele diz que há mais verdade em um ato inconsciente do que em um consciente. A qualquer momento, as jovens que ilustram os quadros podem revelar o que a consciência interdita.

Vida e morte. A principal curiosidade na obra deste artesão (foto ao lado) é que suas principais influências não vieram do lado ocidental, mas do Japão, onde viveu por longo tempo. Ele incorporou fortes referências das artes orientais tradicionais e a estética dos traçados dos mangás, as histórias em quadrinhos no estilo japonês. Não bastasse, apoderou-se ainda de elementos da natureza típicos da cultura oriental – animais, vegetais, astros, terra, água. Então, valendo-se de técnicas do nanquim, grafite e, às vezes, da acrílica e da aquarela, desenvolve criações que embaçam as fronteiras daquilo que é visto como ingênuo e do que é encarado como desregramento. No seu universo artístico, afloram tempestades, desejos incompletos, olhares perdidos e um pouco de veneno, como ele mesmo define. Em sua volta ao País, e agora radicado em São Paulo, Kato foi convidado para desenvolver uma intervenção e compôs estes instigantes painéis - só um deles foi batizado, The Birth (foto de abertura), que, traduzido, significa nascimento ou origem.  Samsara significa um fluxo constante de vida, morte e renascimento presente nas filosofias orientais, como no hinduísmo e budismo. “Decidi denominar assim a exposição porque no Japão esse fluxo infinito de vida e morte simboliza os desejos humanos. Sabe aquele sonho que fracassamos e desistimos, mas que, no fundo, ainda continua existindo e, com o tempo, ressurge e você volta a desejar de novo da mesma maneira? Esse é o tom da mostra. Acho que todo mundo já passou por isso”, explica o jovem autor. Cada painel representa o nascimento, a vida e a morte, a partir de um olhar metafísico. O artista convida o espectador a circular pela sala e apreciar esses três estágios de Samsara. “Se você der uma volta pelo local, acabará voltando para o primeiro desenho, compondo um ciclo infinito”, assinala.

Criaturinha branca. Suas criações, ao longo de sua curta trajetória artística, deixam-se impregnar por essas obsessões. Em As Gêmeas (2010) (foto ao lado), duas moças estão sentadas e viradas em posições opostas. Elas se tocam pelas mãos e nos miram com olhares suspeitos. O vestido de uma das irmãs está caindo. Da outra, o espartilho é que se abre. Ao fundo, há objetos enigmáticos, como espelhos e chaves estruturados em ornamentação barroca e art nouveau. Os motivos florais também denunciam a referência desse estilo estético que influenciou o mundo das artes plásticas. Um ambiente tenebroso foi construído acima das meninas. Nele, existem dois crânios, direcionados para elas. Abaixo, contrapondo a simbologia da morte, há uma criaturinha branca, de aparência inofensiva, situada entre as garotas. A pequena figura também mantém os olhos voltados ao espectador. O perigo, talvez, não resida nos crânios – estes já nos foram revelados enquanto simbologia da morte. O silêncio, a ação congelada das figuras vivas e os olhares apontados em nossa direção parecem aguardar o momento certo para uma reação. O clima taciturno e a inocência chegam a dar medo. O título deste painel nos leva a uma incógnita – as gêmeas não deveriam ser representadas como idênticas? “Justamente pela fuga de sempre serem vistas como iguais, elas começaram a mudar, porém continuam sendo as mesmas irmãs”, explica Kato. Elas não são gêmeas por terem aparências semelhantes, mas pela cumplicidade dos desejos e intenções.

Venenos. Outra obra do artista, também tingida por sensações pervertidas, é Garota Veneno (2011) (foto ao lado). Uma menina se deleita com os fluídos venenosos de uma serpente e de um escorpião. Não são os animais peçonhentos que a dominam. Ao contrário, ambos estão servindo a ela. Kato busca instigar e provocar desconforto, utilizando-se do registro do mal estar puro. “Algumas pessoas já me confessaram que não conseguem olhar direito para aquela imagem enquanto outras enxergam conotações sexuais. Por mais que, às vezes, não se entenda a mensagem de entrega e de devoção ao veneno que ela não consegue se livrar (o amor), se no final consegue despertar reações com algum nível de força, já valeu a pena”, destaca o autor.

A fina barreira entre a inocência e a perversidade foi explorada de outras formas em trabalhos anteriores. Em Despertar (2009) (foto abaixo), mesmo com a utilização de cores, existe uma atmosfera soturna que alude a uma representação típica de bruxismo. Não há a figura da noviça, mas existe a mesma criaturinha presente em As Gêmeas. Essa personagem, também de aspecto nada ofensivo, foi retratada como se estivesse fazendo feitiço em uma caldeira orgânica, que germina vegetais diversos. Nas laterais há dois caldeirões orgânicos com plantas já desenvolvidas.

O que podemos visualizar é que eles têm corações, estão vivos, que geram a energia vital para o nascimento das espécies, como se fossem instrumentos para uma Alquimia Elemental. O sentido é paradoxal. As plantas nascidas dessas duas caldeiras maiores alcançam grandes extensões e aparentam continuar crescendo. A pequena figura fica em uma situação de fragilidade, de opressão diante da natureza monumental que ela ajudou a criar e que agora não a controla mais. Além das obras autorais, Kato também desenvolve ilustrações comerciais para serem aplicadas em produtos de empresas. Essa idéia conhecida como Art Brand faz parte da cultura artística oriental há tempos – ele já realizou projetos para diversas empresas, como Havaianas, Oi Modas e Camiseteria.  A sua linguagem estética se estende ainda aos trabalhos de ilustração comercial, tanto no aspecto formal, com o uso de flores e figuras imaginárias, como conceitualmente, quando sintetiza forças opostas que se complementam na criação de seu mundo metafísico. Kato é um artista provocador.

Ivan Ferrer Maia (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. /Twitter: @ivanfm1)

(Foto de abertura: The Birth)

 

Samsara dos Sonhos

Sesc Santana (Av. Luiz Dumont Villares, 579, Santana. Fone.: 2971-8700). Terça a sábado, das 10h às 20h; domingo, das 10h às 17h. Grátis. Em cartaz até 7 de agosto.

 

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