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Dois Dias, Uma Noite

Uma Europa em crise econômica, atolada por oscilação dos empregos e baixos salários é o pano de fundo do novo filme dos cineastas Jean-Pierre e Luc Dardenne. Os irmãos belgas iluminam o caráter competitivo e selvagem do liberalismo econômico, responsável pelo desemprego que afeta o continente europeu, ambientando a história na cidade industrial de Liège, na Bélgica. É ali que a personagem Sandra (Marion Cottilard), uma jovem esposa e mãe, terá de enfrentar uma humilhante via-crúcis para tentar recuperar o seu trabalho em uma pequena fábrica de painéis solares.

Recuperada de um colapso nervoso, que a manteve temporariamente afastada por recomendação médica, ela descobre que os colegas, em uma atípica votação induzida pelos patrões, haviam trocado a sua vaga por um bônus individual de mil euros. Com exceção de dois votos contrários, os demais catorze funcionários optaram por sua demissão e a decisão será consagrada numa segunda-feira, quando de seu retorno. Há um fio de esperança, no entanto: a chefia decidiu realizar um novo escrutínio secreto nesta data. Ou seja, ela terá apenas o fim de semana para contatar os seus pares e tentar reverter o processo.

Começa a jornada de dois dias e uma noite, de casa em casa e cara a cara, de uma personagem arremessada para uma situação-limite. Nas breves visitas, Sandra irá perceber que os companheiros da empresa não são necessariamente criaturas egoístas e têm suas razões e urgências para negar o voto a ela. Eles precisam do abono para garantir o pagamento das contas domésticas, bancar os filhos na escola e iniciar reformas inadiáveis na casa. Alguns até encaram bico aos sábados e domingos para complementar a renda. No caso, ajudá-la significa transtornar o sustento das suas próprias famílias. Não votaram contra ela, mas a favor da gratificação extra e isso é dito sem rodeios. Mas quanto cada um deles está disposto a cooperar? Hábil e aguda, a trama evita fazer pré-julgamentos morais, não elege heróis e vilões. O conflito onde todos são vítimas é desfiado sem maniqueísmos e estereótipos. E ganha peso político porque os verdadeiros responsáveis pela decisão, os empregadores, estão ausentes.

Como é peculiar na obra da dupla de diretores, a câmera acompanha bem de perto o drama da protagonista em busca da persuasão da maioria e o resgate de sua autoestima.  Aos poucos, vai se compondo um retrato neo-realista com notas de suspense de uma classe social marginalizada pela brutalidade capitalista, referenciada na pele de uma personagem que corre contra o relógio e enfrenta a indiferença de alguns, a omissão de outros e colhe aqui e ali nacos de solidariedade. Até uma briga, em certo momento, irrompe. Se o périplo de uma vulnerável Sandra provoca mudanças interiores, a fricção com os demais personagens deixa entrever a complexidade da natureza humana em condição extrema. O enredo trata de um assunto pungente jamais descambando para o melodrama.

Grande parte do mérito da obra reside na acurada performance da atriz francesa Marion Cottilard. Sem maquiagem e dona de olhar expressivo, seu semblante filtra com sutileza e naturalidade desconcertante sentimentos como o de empolgação, desolação, desespero, resignação, angústia, dúvida, medo. Sua depressão flui e reflui ao reboque das reações dos colegas. É uma gama inflada de emoções que emana de forma minimalista, sem gestos ruidosos. Quase tudo em silêncio. Ela precisa dar vida a uma pessoa em condição “invisível”, que implora por dignidade e se vê obrigada a passar por cima do orgulho para defender o seu emprego.

O longa é um exemplo de que uma história aparentemente simples pode revelar um estudo afiado sobre dramas humanos e sociais. Espécie de parábola humanista, a obra dirige seu olhar para o capitalismo predador, aqui simbolizado em corporações que desumanizam as relações no trabalho e transformam funcionários em inimigos entre si. Sem emprego e renda ninguém existe, é o que emerge no filme. O diretor Jean Pierre é autor de um livro, Atrás das nossas imagens, que reflete sobre esse estado de coisas. Ele preconiza que o trabalhador se tornou hoje membro de uma casta em extinção. “Será que seu desaparecimento deixará algum legado?”, ele pergunta. Seja qual for a resposta, a questão incomoda.

(Edgar Olimpio de Souza - O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )  

(Foto Divulgação)

 

Avaliação: Ótimo

 

Dois Dias, Uma Noite

Título Original: Deux Jours, Une Nuit (Bélgica / França / Itália, 2014)                                    

Gênero: Drama, 95 min                                                                                                        

Direção: Jean-Pierre Dardenne  e Luc Dardenne                                                              

Elenco: Marion Cottilard, Fabrizio Rongione, Catherine Salée e outros.                  

Estreou: 05/02/2015

 

Veja trailer do filme:

 

Ninfomaníaca - Volumes 1 e 2

O cineasta dinamarquês Lars Von Trier gosta de provocar, aprecia um escândalo e está sempre impondo desafios ao espectador. Nesse longa metragem, protagonizado por uma personagem compulsiva, refém da solidão e da angústia, o tom de desconforto não é diferente comparado às outras obras de sua controvertida filmografia. Dividido em duas partes, não transmite a crueza de Anticristo (2009), o desespero de Melancolia (2011) ou o cinismo de Dogville (2003), mas a visão pessimista da humanidade, seu espírito predador e sua decadência moral estão ali. Escorado no marketing de que conteria um volume imenso de cenas de sexo explícito, o filme como foi editado não chega a abusar desse recurso, embora mostre algumas imagens de penetração, sexo oral e ângulos ginecológicos.

Polêmica à parte, o novo trabalho do diretor é outra vez instigante. Na hipnótica abertura, uma sinfonia de chuva reverberando nos telhados, entrecortada pelo rock industrial da banda Metallers, um homem maduro (Stellan Skarsgard) socorre, num beco escuro, uma mulher de meia idade desacordada e ferida (Charlotte Gainsbourg). Como ela recusa o auxílio da polícia ou o chamado da assistência médica, ele a leva para o seu apartamento, onde oferece um chá e iniciam uma conversa com ares de uma sessão psicanalítica.

A partir desse inusitado encontro, Joe vai desfiar para Seligman a história picante de sua vida sexual, desdobrada em oito capítulos, divertidos, exasperantes e pitorescos. Logo de cara, ela informa que se julga uma pessoa ruim, adjetivo prontamente questionado pelo seu interlocutor. Tudo por conta de seu comportamento devasso. Seu relato em flashbacks começa no momento em que sentiu prazer erótico pela primeira vez, aos sete anos de idade, ao lado de sua melhor amiga, no chão do banheiro de sua casa. Depois, o formigamento que experimentou entre as pernas durante uma aula de educação física na escola primária. Em seguida, relembra a perda da virgindade aos 15 anos numa oficina suja, para um adolescente que parecia mais atento à sua moto que ao ato em si. Este personagem (Shia La Beouf), aliás, será o único a surgir com regularidade nas suas memórias. A presença do pai também é forte – é o único com quem ela mantém uma relação preenchida de afeto.

Para a então adolescente Joe (Stacy Martin, nessa primeira parte), o sexo não passa de um jogo, uma forma de rebeldia que a põe a seduzir tantos homens quanto possível – eles são como peças num tabuleiro. Efetivamente, ela acredita em sexo sem amor, paixão e desejo. Basta observar a disputa que trava com uma amiga em uma viagem de trem: quem conseguir fazer sexo com mais homens ganhará uma caixa de bombons. Vestidas como periguetes, ambas são bastante diretas na abordagem. O paradoxo de suas incursões sexuais é que não há evidência alguma de que a quantidade de transas a faça feliz. Não existe senso de diversão, talvez alguma satisfação derivada do poder de manipulação. Joe, inclusive, boicota qualquer chance de se apaixonar e vive a reboque do acaso. Há uma cena reveladora dessa aparente frieza. Um confronto cáustico entre ela e a esposa descompensada (Uma Thurman, em rápida performance arrebatadora) de um de seus amantes. Traída, a mulher insiste em mostrar a seus filhos pequenos a cama onde o pai comete a infidelidade. A sequência é divertidamente potencializada com a chegada de outros homens ao apartamento.

Seligman escuta atentamente as histórias. Intelectual solitário, ele interrompe eventualmente os relatos desatando comentários inusitados sobre arte, literatura, música clássica e a natureza do desejo sexual. Até mesmo o esporte da pesca serve de objeto de comparação. No fundo, ele tenta encontrar uma lógica no que ouve. Por exemplo: quando ela é penetrada oito vezes pelo colega da moto, ele identifica ali um padrão de números de Fibonacci (matemático italiano da Idade Média). Em outro momento, a vagina é comparada a uma isca e os homens que a estariam procurando se comparariam a um pescador em busca do peixe. Em sua avaliação, o comportamento dela não é tão abominável assim. Muitos enxergam nesse personagem erudito uma crítica do diretor à interpretação crítica de tudo. É possível.

Se o primeiro capítulo se concentra na promiscuidade de uma jovem obcecada por sexo, nesta sequência, a madura Joe (Charlotte Gainsbourg) envereda por um  caminho sem volta. Ela perdeu a capacidade de alcançar o orgasmo e acredita agora que o prazer pode ser obtido por meio da dor. Ao conhecer o fetichista K (Jamie Bell), perito na arte da dominação das mulheres, ela vivencia outros prazeres amarrada a cordas e recebendo chicotadas. Curiosamente, não existe sexo entre eles, apenas um exercício declarado de poder e submissão. O diretor adiciona uma subtrama ao enredo. Nela, o agiota L (Willem Dafoe) contrata a ninfomaníaca para pressionar e coagir os caloteiros. Também uma série de revelações, muitas sombrias, eclode. Há uma cena em que ela está num quarto com dois homens negros que, de forma competitiva, discutem detalhes sobre a relação sexual. 

Em ambos os volumes, o sexo é visto mais como quadro contemplativo do que motor de excitação. Trata-se de uma obra fincada ainda no contraste entre um homem dotado de teorias e uma mulher que extrai conhecimento pelo uso do corpo. Diz muito sobre as pulsões anárquicas e radicais típicas nos trabalhos do cineasta, que se equilibra entre a provocação, a ironia, a sordidez e a filosofia. Num filme protagonizado por uma ninfomaníaca, a espinha dorsal não é o sexo explícito, mas como a sexualidade pode ser compreendida e dissecada.    

(Edgar Olimpio de Souza)

(Foto Divulgação)

 

Avaliação: Ótimo

 

Ninfomaníaca – Volumes 1 e 2

Título Original: Nymphomaniac (Dinamarca / Alemanha / França / Bélgica, 2013)

Gênero: Drama, 118 min (parte 1) e 124 min (parte 2)

Direção: Lars Von Trier

Elenco: Charlotte Gainsbourg, Stellan Skarsgard, Shia LaBeouf, Stacy Martin e outros.

Estreou: 10/01/2014

 

Veja trailer do filme:

 

 

 

 

 

Leviatã

A obra do cineasta russo Andrey Zvyagintsev mira o atual estado das coisas numa Rússia pós-soviética convulsionada pela corrupção e pelos pequenos poderes. Não é um panfleto de acusação contra o país, mas uma crítica à sua longa história de opressão – em cena hilária, uma brincadeira de tiro ao alvo à beira de um rio, alguns dos alvejados são retratos de antigos líderes soviéticos, como Stálin, Gorbachev e Yeltsin, entre outras figuras emblemáticas. Chega a ser curioso como o nome do atual presidente Vladimir Putin nunca é citado na trama, embora sua imagem decore a parede do gabinete de uma prefeitura municipal. O longa incomodou líderes civis, políticos e religiosos russos, faturou o prêmio de melhor filme estrangeiro no Globo de Ouro e é forte candidato a bisar o feito no Oscar desse ano.

O enredo tem como personagem central o temperamental mecânico Kolya (Alexei Serebriakov), que dirige uma pequena oficina ao lado de sua casa em uma pequena e pitoresca vila de pescadores no norte da Rússia. Ali, vive com o seu filho adolescente rebelde do primeiro casamento (Sergey Pokhodaev) e a atual esposa mais jovem (Elena Lyadova). Logo nos primeiros minutos, ele vai apanhar Dmitri (Vladimir Vdovichenkov) na estação de trem, um ex-companheiro do exército que se tornou advogado de prestígio em Moscou. Ele chegou da capital para ajudar o amigo na luta contra o implacável e venal prefeito local, um tipo bufão e vingativo disposto a desapropriar por valor irrisório a terra de Kolya, que construiu a moradia com suas próprias mãos e cuja família vive neste lugar há várias gerações.   

O que existe é a luta de um homem contra moinhos de ventos, juízes parciais prontamente dispostos a descartar seus apelos, policiais indecentes, religiosos pusilânimes. O gestor se vale de todas as brechas da lei para impor sua vontade, até mesmo solapando meios legais para resolver a questão com medidas mais drásticas, o que empurra o conflito para uma zona cada vez mais tensa e perigosa. 

O esperto advogado Dmitri percebe o jogo e sabe que o estado de direito virou uma peça de ficção. Ele deposita na mesa da prefeitura um dossiê com documentos e fotos comprometedores. Receoso de que o explosivo material poderá estraçalhar a sua carreira política, o prefeito acaba cedendo em sua cobiça ou finge matreiramente fazê-lo. É outra ponta de humor em um enredo em que o vilão óbvio freqüenta regularmente a igreja e recebe a benção do padre ortodoxo, que o apóia em sua obsessão pela tomada do que pertence a Kolya.

Mais do que a busca por justiça, o filme faz o inventário de uma tragédia ao som da música sombria de Philip Glass. A sensação de que algo de ruim está prestes a acontecer é permanente. Basta observar a imagem sinistra do esqueleto em decomposição de uma baleia encalhada e restos de barcos de pesca abandonados na costa. Na clara referência à história bíblica de Jó, a quem tiram casa, mulher e saúde, Kolya é testado em sua paciência e fé e assume o papel do sujeito manipulado por Deus e o diabo. A ironia reside no fato de que naquela província parece que Deus morreu, foi esquecido ou nada vê. Em determinado momento, um padre cínico se refere ao livro do matemático e filósofo inglês Thomas Hobbes, autor de Leviatã (1651), para reforçar o argumento de que os desejos e as liberdades individuais do homem devem se subordinar a uma lei soberana para se evitar a carnificina social.

Não bastasse a jornada kafkiana de enfrentamentos, Kolya também se vê ameaçado por outros fantasmas que, aos poucos, arruínam sua vida.  Ele está bebendo vodka demais, seu filho despreza a escola e sua esposa parece um tanto distante dele, mesmo na iminência de perder tudo. Simultaneamente, os vínculos de amizade entre marido, mulher e advogado começam a se fragilizar, especialmente em um piquenique, quando uma reviravolta irá provocar dor e fratura irremediáveis.

Além de parábola assustadora sobre a maneira como o poder absoluto tritura aqueles que tentam opor-se a ele, o filme ecoa ainda o desmoronamento de uma cultura secular. Símbolo dessa derrocada é a sequência em que adultos, na presença de crianças, se inundam de álcool e disparam armas. O painel é amargo de um país em que o Estado foi corrompido, a engrenagem do poder é intencionalmente burocrática, o consumo etílico se potencializou e o povo se encontra à mercê de uma religião que se presta a ser signatária do arbítrio. Não cabem aqui maniqueísmos fáceis. Kolya é do bem, mas é capaz de agredir pessoas que o incomodam, como seu filho. Sua mulher revela ausência de pruridos e o advogado não se furta a agir pelas costas. O comentário de que a vida não está fácil na Rússia não deve ser individualizado. Vive-se hoje no mundo globalizado uma dura realidade: a cotação de qualquer pedaço de terra é levantada a partir de seu custo por hectare. Ninguém se importa com o valor sentimental ou histórico que, por ventura, pode estar nele impregnado.

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto Divulgação)

 

Avaliação: Ótimo

 

Leviatã

Título Original: Leviathan (Rússia, 2014)

Gênero: Drama, 141 min

Diretor: Andrey Zvyagintsev

Elenco: Alexey Serebryakov, Roman Madyanov, Vladimir Vdovichenkov e outros.

Estreou: 15/01/2015

 

Veja trailer do filme: 

 

As mil faces de Maria

A atriz, cantora, compositora e diretora portuguesa Maria de Medeiros, 48 anos, parece ter virado brasileira, mesmo residindo em Paris há 25 anos. Desde março está em turnê nacional com a peça Aos Nossos Filhos, de Laura Castro, que deve estender a temporada por outras cidades durante mais algumas semanas. O papel de ex-revolucionária em conflito com a filha lhe rendeu indicação à melhor atriz pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA). A distinção se soma a outro. Há pouco o seu documentário Repare Bem, sobre a trajetória de mulheres vítimas da ditadura brasileira, faturou o prêmio de melhor longa estrangeiro no prestigiado Festival de Cinema de Gramado (RS).

Em cartaz no País, depois de rodar por vários festivais, o filme foi uma proposta da Comissão de Anistia. “Pedir desculpas públicas em nome do Estado às pessoas que foram vítimas da violência política é uma forma de oferecer a elas a possibilidade de reconstruírem a sua identidade perdida na clandestinidade”, avalia. A artista também tem exibido desenvoltura como cantora e compositora em shows pontuais, onde apresenta o repertório de Pássaros Eternos, o terceiro álbum de sua carreira musical. O disco reúne composições próprias e colheu elogios da crítica especializada.  

Maria se tornou conhecida do grande público em Pulp Fiction – Tempo de Violência (1994), do diretor cult Quentin Tarantino, no qual encarnou uma mulher insegura. Um pouco antes, deu vida à transgressora escritora Anais Nin em Henry & June (1990), de Phillip Kauffmann. Ela também atuou no cinema nacional, em O Xangô de Baker Street (2001), de Miguel Faria Jr., e O Contador de Histórias (2009), de Luiz Villaça. Como diretora, assinou o prestigiado longa metragem Capitães de Abril (2000), contundente leitura sobre a revolução que dinamitou a ditadura de quase meio século de Salazar em Portugal.

Nesta entrevista, a atriz passeia pela carreira, promove um balanço da Revolução dos Cravos, fala de sua incursão pela música e das coincidências que têm cercado seus trabalhos. “Escolhi uma profissão que me possibilita viajar e a estar em contato com várias culturas. Tenho a convicção de que um artista pode se expressar em diferentes linguagens.”

 

Por Edgar Olimpio de Souza

 

Por ser a mais internacional das atrizes portuguesas, isso gera algum tipo de responsabilidade?

Como eu adoro viajar pelo mundo e tenho feito cinema em alguns países, acabo sendo indiretamente uma representante da cultura portuguesa. Mas isso não quer dizer que eu tenha assumido esse papel.

 

O seu primeiro longa metragem como diretora, Capitães de Abril, tratava da Revolução dos Cravos. Como você acompanhou todo aquele episódio?

Eu queria muito fazer esse filme porque me dei conta do privilégio de ter vivido de perto a chegada da democracia em Portugal depois de 48 anos de ditadura salazarista, a mais longa da Europa. O que aconteceu em 1974 foi extraordinário, atípico, um exemplo a ser seguido. Militares profissionais, participantes na guerra colonial na África, iniciaram um movimento que acabou depondo o regime ditatorial. Não usaram da violência e abriram mão do poder conquistado. Conheci grande parte dos protagonistas dessa revolução e tive acesso aos livros que eles escreveram. Por causa do filme, fui muito atacada e ganhei inimigos, especialmente por ser atriz, o que era visto como uma atividade fútil. Eu assumi o ponto de vista dos capitães de abril. 

 

Quatro décadas depois, que balanço você faz daquele acontecimento político?

A revolução portuguesa mudou o destino de nosso país e a vida pessoal de muitos portugueses. Minha família vivia em Viena, meus pais eram exilados voluntários. Quando regressamos, eu tinha nove anos, experimentamos um choque cultural. A Áustria era limpa e organizada, bem diferente de Portugal. O país vivia um momento único em sua história. Quanto mais o tempo passa, mais me interessa o espírito humanista e pacifista que norteou aquele período. A instauração da democracia civil marcou a minha geração. Na escola, na hora de brigar ou discutir com um colega, a gente o xingava de “capitalista”

 

De alguma forma, o documentário Repare Bem, que você dirigiu, poderia ser visto como uma espécie de continuação de Capitães de Abril?

Eu acredito que sim. Capitães de Abril mostrava a chegada da democracia a Portugal. Repare Bem reforça a democracia no Brasil. Pedir desculpas públicas em nome do Estado às pessoas que foram vítimas da violência política é uma forma de oferecer a elas a possibilidade de reconstruírem a sua identidade perdida na clandestinidade. O documentário nasceu como uma proposta da Comissão de Anistia e Reparação do Ministério da Justiça.

 

Como foi lidar com um tema tão dolorido?

Complicado, porque eu e a equipe tínhamos de nos policiar para não chorar e atrapalhar as filmagens. O filme recupera a história da ex-guerrilheira Denise Crispim e de sua filha Eduarda. O depoimento da Denise foi intenso. Ela reviveu sua experiência brutal nos porões da ditadura militar. Falou do companheiro Eduardo Leite, o Bacuri, que foi torturado barbaramente e morto com um golpe na cabeça pelos militares. Denise fugiu para o Chile e foi apanhada pelo golpe militar de Pinochet. Então foi parar na Itália. Histórias de luta contra os autoritarismos de Estado me interessam muito porque nasci em uma família libertária. 

 

A arte deve produzir reflexão ou tem a função de entretenimento?                     

Enquanto entretenimento não me interessa, fico com o sentimento de que perdi ou me roubaram tempo. Se uma pessoa sai de um cinema ou teatro, por exemplo, do mesmo jeito que entrou, era preferível ter lido um livro no lugar. Gosto da arte que desperta, transforma, enriquece, que reflete a nossa realidade. Não acredito na arte produzida para distrair. Acho também que a arte está simbolizada na figura do bufão nas peças de Shakespeare, aquela criatura que, estando ao lado do rei, diz que ele é vil, mal, injusto.

 

Sua relação com a crítica é cordial?

Eu dirigi um documentário despretensioso, Je t'aime...moi non plus: Artistes et critiques (2003), que aborda a relação sempre tumultuada entre os cineastas e os críticos. Já participei de juris de festivais de cinema ao lado de críticos que assistem milhares de filmes por ano e continuam sentindo a mesma paixão pelo ofício. É sempre um mistério para mim como pessoas com gostos iguais veem um mesmo longa e o analisam de maneiras completamente diferentes. Concorde-se ou não com a crítica, o espaço de discussão é sempre importante, produtivo e construtivo.  

 

O que acha da mídia de celebridades? Já foi perseguida por paparazzis?    

Sempre fui fascinada pelas belas artes e o cinema entrou na minha vida de forma inesperada. Eu era adolescente quando estreei no filme Silvestre (1982), do diretor português João César Monteiro. Ou seja, eu me atraí por um cinema de autor, pela escrita, nunca me liguei em glamour. Sou uma atriz, não uma estrela, daí que nunca tive problemas com paparazzis. Além disso, sou muito clara e transparente na vida, o que diminui bastante a possibilidade de ser vítima, por exemplo, de reportagens distorcidas sobre algo que falei ou fiz. Minha carreira é impermeável a isso.

 

O que tem mais chamado a sua atenção no cinema feito atualmente pelo mundo?

Se você freqüenta uma mostra de cinema descobre produções interessantes de países bem diferentes, que muitas vezes não chegam ou passam rapidamente pelo circuito comercial. Na Europa, a crise econômica está oprimindo a produção artística. Tenho acompanhado com atenção o que vem da Romênia. Achei fantástico Além das Montanhas, de Cristian Mungiu, que já havia feito outra obra prima, 4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias. É incrível como ele conseguiu se superar. Gosto também da quadrinista iraniana Majarie Satrapi, que dirigiu a animação Persépolis. Trabalhei com ela em Galinha com Ameixas. Os diretores que vieram do universo das histórias em quadrinhos são muito criativos. Eles oferecem novos olhares e perspectivas ao cinema.

  

A peça Aos Nossos Filhos trata de um casal de mães lésbicas. Por que as relações homoafetivas ainda geram polêmica?

A democracia deveria valer para todas as instâncias da vida. Temos de aceitar que as pessoas queiram viver de seu jeito. A peça da Laura Castro fala das divergências entre mãe e filha em relação à política, sexo e maternidade. Eu faço uma ex-revolucionária que se considera “cabeça aberta”, mas não compreende a filha homossexual, vivida pela Laura, disposta a ser mãe de uma criança gestada no ventre da companheira.

 

As convicções da mãe desmoronam diante da decisão da filha...

Exatamente. O texto põe o dedo na ferida, apresenta argumentos convincentes de ambos os lados. Eu estou aprendendo muito. O curioso é a reação do público. Tem sessões em que eles se identificam mais com o meu personagem, em outras se dá o contrário. Há vezes em que a platéia ri nos momentos trágicos. A peça tem muito em comum com o documentário Repare Bem. Ambos abordam as consequências da ditadura. 

 

Você já gravou três álbuns como cantora, embora não tenha formação específica. Como foi incorporar a música em sua carreira? 

Estou ganhando confiança a cada disco desde a primeira gravação, mas tenho consciência de que sou uma atriz cantando. Já atuei em vários musicais na França, cheguei a trabalhar em um espetáculo de rock & roll acrobático, que é possível fazer quando se tem vinte anos de idade. O que me ajuda é que estou cercado de ótimos músicos. O processo foi difícil porque eu me intimidava diante de meu pai, músico clássico, pianista e maestro, e de minha irmã caçula, ótima violinista. Eu achava que era uma arte que só eles dominavam, que eu não teria nível para tanto. Depois perdi a vergonha.

 

Em Pássaros Eternos, pela primeira vez você gravou composições próprias... 

Só duas composições não são minhas. Busquei os gêneros que mais me impactam: samba, fado, blues, alguma coisa de flamenco. Aliás, cresci ouvindo MPB, a melhor música do mundo. No primeiro álbum, A Little More Blue (2007), prestei homenagem a artistas brasileiros como Chico Buarque e Caetano Veloso. No segundo, Penínsulas & Continentes (2010), explorei outras influências. Pássaros Eternos cruza fronteiras musicais e tem vários sotaques.  

 

Onde se sente mais à vontade: cinema, teatro ou música?

Penso que as três artes estão interligadas. Eu me inspirei nos relatos de Denise Crispim em Repare Bem para gravar, em Pássaros Eternos, a canção Aos Nossos Filhos, de Ivan Lins e Victor Martins. Na peça Aos Nossos Filhos, eu interpreto uma mulher que lutou contra a ditadura militar brasileira. Essas coincidências indicam um diálogo muito estreito entre cinema, teatro e música. Há coisas que descubro no teatro que vou usar no cinema, coisas que aprendo na música que levo para o teatro, coisas que experimento no cinema que transporto para a música.

 

É verdade essa história de que você tem planos de atuar em telenovela brasileira?

Em uma entrevista me perguntaram se eu aceitaria trabalhar em novelas. Como a minha vida é cheia de surpresas, se surgisse um personagem ou situação interessante, até poderia experimentar. Sou super fã da técnica de interpretação dos atores brasileiros. Muitos são egressos da escola teatral e incorporam ainda a conhecida pujança tropical, o espírito de desbunde. Outro dia vi o Marco Nanini e a Marieta Severo na televisão e fiquei encantada. Eles são geniais. 

 

Morar nos Estados Unidos é um sonho de muitos atores, mas você não arreda pé da França...  

Eu vivo em Paris há 25 anos, tenho dupla nacionalidade. Adoro trabalhar nos Estados Unidos, lá também tem diretores que buscam uma estética autoral, uma linguagem própria, uma percepção artística do mundo. No ano passado, estive em Nova York filmando Encontros com um jovem poeta, de Rudy Barichello, sobre o dramaturgo irlandês Samuel Beckett. Tem atores europeus que se dão muito bem em Hollywood. O Javier Bardem mostrou toda a sua arte e talento lá. Só é preciso ter cuidado para não virar um estereótipo. Escolhi uma profissão que me possibilita viajar e estar em contato com várias culturas. Um artista pode se expressar em diferentes linguagens. Quanto mais o tempo avança, menos nacionalista eu sou e mais estrangeira me sinto.

 

Tem alguma coisa que a irrita em Paris?                                                                              

Muitas. Virei uma típica francesa, até aprendi a xingar em francês. Eles adoram uma boa guerra cotidiana, são racionais e passionais ao mesmo tempo, arrumam briga só pelo prazer da reconciliação. Também tenho o estilo quadrado do austríaco na hora de trabalhar. E sou meio contemplativa e às vezes melancólica, como uma boa portuguesa.

 

Daqui a dois anos você completa meio século de vida. Alguma crise em vista?

Só estou um pouco resignada. Aos vinte, trinta anos, é tudo muito divertido, até o aparecimento de uma pequena ruguinha. Depois, você não acha tanta graça assim. Mas o que eu posso fazer?

 

Veja trecho do show Pássaros Eternos:

 

O Abutre

Nada mais enganoso do que a imagem perfeita. Ela pode estar eivada de edições que distorcem sua veracidade. Nesta produção, o cineasta estadunidense Dan Gilroy percorre o submundo dos cinegrafistas independentes e a ilha de edição de noticiário mundo cão para mostrar como ela é construída. O que se vê faz jus à máxima de Nina (Rene Russo), editora do jornal da noite da fictícia KWLA: “Nosso telespectador gosta de ver o que acontece aos ricos caucasianos”, ou seja corpos estraçalhados.

Gilroy centra a narrativa no câmera Louis Bloom (Jake Gyllenhaal), valendo-se das construções do filme noir: sombras, solidão, carência afetiva, decadência, morbidez. O cenário é a Los Angeles povoada de seres furtivos, choque de veículos, quedas de avião, acerto de contas entre traficantes. Mas ao invés do detetive particular e a mocinha de vida dupla, os personagens pertencem ao universo dos noticiários mundo cão.

Através de pequenos golpes, o obsessivo Bloom salta para o mundo das imagens, captadas pela pequena filmadora, que manuseia sem técnica alguma. Mas é o bastante para obter as graças de Nina e a ojeriza do concorrente (Bill Paxton), acostumado a disputar com a grande mídia a primazia da cobertura dos grandes acidentes. E logo percebe o que fazer para sobreviver num meio de feroz e desleal concorrência.

Aos poucos, ele refina sua técnica, a ponto de cunhar, perante Nina, sua teoria da imagem perfeita: “Um enquadramento adequado não só cativa a nossa visão, como a faz permanecer mais tempo nessa imagem, dissolvendo a barreira entre o sujeito e a realidade”. Parece frase de teórico, mas Bloom transforma seu trabalho em negócio lucrativo. O faz pressionando e chantageando Nina, até criar a agência Vídeo Prodution News e contratar como assistente o aturdido Eric (Riz Ahmed).

Quando, na intrigante sequência do restaurante, ele a convence a tornar-se sua parceira, ela sente que está diante de quem busca escapar às sombras. Ele é incisivo ao apontar os pontos fracos e negligenciar as virtudes dela. Embora ela adiante tente escapar, ele lhe mostra o quanto se tornou dependente dele. “Você trabalha numa emissora que é a última em audiência e seu contrato de dois anos está para acabar. Sou a sua única salvação”. Eles se tornam mais que parceiros, são cúmplices em tudo.

Nina, porém, foge ao estereótipo da jornalista espertalhona, dividida entre paixões e carreira. Introvertida, não permite intimidades ou que se desvende sua vida particular, Sua existência se resume à sala de edição, onde concentra poder através das imagens que vão ao ar. Bloom o percebe desde o início. O embate entre eles não é pela cama, o interesse está no que um tira, ao máximo, do outro: imagens fortes, dinheiro e influência.

No entanto, as disputas entre eles são consequências das construções que borram os limites entre o ilegal e o ético, o aceitável e o manipulável. Numa delas, Bloom chega atrasado ao assassinato de um rico casal e o concorrente faz troça dele. Sem imagens das vítimas, ele se vale de velhas fotos para fazer a matéria. Impossível usar tais imagens. Nina o salva ao editá-las como reflexo de tragédia familiar. O que só faz aumentar a cumplicidade deles.

Bloom aprende, assim, a trabalhar cenários para tornar o fato corriqueiro uma intrigante notícia. Seu ápice é o tiroteio entre traficantes numa mansão. Para tornar as imagens reais e o caso estarrecedor, ele muda as vítimas de lugar, influindo no trabalho dos peritos e dificultando a investigação dos detetives. Desta forma, Nina, a polícia e o telespectador se tornam reféns de sua obsessão por dinheiro e notoriedade.

Cabe a Nina, mais uma vez, atenuar a violência das imagens, para burlar a lei estadunidense que a impede mostrar cenas chocantes. Editadas, elas surgem maquiadas, com o cenário e as vítimas dissimuladas. Para completar a manipulação, ela orienta entonações e ênfases dos apresentadores do jornal. E a notícia, em si, forte, é repetida ao longo do dia, numa expansão do fato como espetáculo de grande audiência.

A dupla Bloom/Nina ao agir desta forma canibaliza os fatos e agride os telespectadores, que acreditam estar diante de fatos reais, não de técnicas só permitidas à ficção, ou seja, ao cinema, a filmes e séries televisivas e ao teatro. Tornam falsas imagens de vítimas de tiroteios, de assassinatos, de acidentes de trânsito e aéreos gravados in loco. Desta forma, acabam interferindo no fato e ditando suas indesejáveis consequências.

Mais do que isso, terminam criando imagens contaminadas pelos arranjos que atendem a interesses econômico-financeiros. Bloom, ao ser procurado em seu apartamento pela detetive Frontieri (Michal Hyatt) e o parceiro dela, o faz com largo sorriso pela notoriedade conquistada. Assim, imagens contaminadas só provocam catarse, sem revoltar o telespectador contra a violência e a impunidade, ou lutar por seu direito à informação sem retoques. Gilroy vai direto ao ponto.

(Cloves Geraldo, extraído do site Vermelho)

(Foto Divulgação)

 

O Abutre

Título Original: NightCrawler (EUA, 2014)

Gênero: Drama, 117 min

Direção: John Gilroy

Elenco: Jake Gyllenhaal, Rene Russo, Bill Paxton e outros

Estreou: 01/01/2015

 

Veja trailer do filme:

Quem tem medo de Norma Bengell?

A última vez em que ela apareceu publicamente foi na festa da 10ª edição do Grande Prêmio de Cinema Brasileiro, em junho passado no Rio de Janeiro. Sentada em uma cadeira de rodas, e homenageada por Marieta Severo, a atriz revelou que havia oito meses que não saía de casa e que precisava trabalhar. “Não posso mais atuar, mas dirigir seria muito importante para mim. Pode ser uma novela, um seriado, qualquer coisa”, desabafou. Projeto ela tem: um média-metragem sobre o cartunista e ilustrador carioca J. Carlos, que seria produzido pelo cineasta e documentarista Silvio Tendler. “Eu consigo trabalhar de cadeira de rodas, só preciso de alguém que me apóie”, garante.

Aos 76 anos, sem filhos e viúva, Norma Benguell está lutando para sair de uma crise financeira que começou na prestação de contas do filme O Guarani (1996) – como não tem uma fonte de renda fixa, já se desfez de jóias e quadros para amortizar as dívidas. Ao lado dela trabalha Vilma Gomes, sua acompanhante e amiga há duas décadas. Sua atual limitação física deve-se ao fato de no ano passado ter escorregado num tapete de casa, sofrido um tombo e precisar operar a coluna e o cotovelo. Por conta disso, passou muito tempo ora internada no hospital ora cumprindo uma extenuante jornada de fisioterapia.

Quase cinqüenta anos depois da estréia de Os Cafajestes (1962), de Ruy Guerra, clássico do Cinema Novo protagonizado por Jece Valadão e Hugo Carvana, até hoje a figura mítica da atriz e cineasta continua associada à da mulher que ousou desafiar os costumes numa época de acentuado conservadorismo. O que mais chamou a atenção neste cultuado longa-metragem foi uma “escandalosa” sequência de quatro minutos em que a atriz, então com 27 anos, aparece completamente despida correndo na praia. Foi o primeiro nu escancarado do cinema nacional. “O Celso Amorim (N.R.: ex-ministro do Governo Lula) era assistente de direção e escondeu o rosto atrás de um livro vermelho do Mao Tse-Tung”, diverte-se ela, que dois anos depois estrelaria outra produção controvertida, Noite Vazia, de Walter Hugo Khouri.

Uma das intérpretes mais bonitas e sensuais do cinema nacional, que chegou a ser comparada à musa francesa Brigitte Bardot, Norma ainda é uma referência. Sua trajetória é uma colcha de eventos marcantes. Depois de fazer sucesso como vedete nos espetáculos de Carlos Machado, estreou na tela grande em 1959, contracenando com Oscarito em O Homem do Sputnik (foto ao lado), de Carlos Manga. Gravou um disco de sotaque bossa nova, Ooooooh! Norma (1959), em que aparecia seminua na capa. Viveu e trabalhou no cinema na Europa, namorou homens belíssimos, como o ator francês Alain Delon, e foi seqüestrada durante o regime militar brasileiro. Pregou o ideário feminista no Brasil e foi chamada de sapatona.

“Nunca fico fora de moda porque sou atriz e não um corpo”, costumava dizer, ironizando as mulheres que se diziam atrizes, mas cuja fama se reduzia às curvas e não sobreviviam além de um verão. Quatro anos atrás, abalada emocionalmente, abandonou uma montagem teatral que mal tinha estreado. “O médico me obrigou a voltar para o Rio de Janeiro”, justificou, na ocasião. Na televisão, seu último trabalho foi no seriado Toma Lá, Dá Cá (2009, na Globo), na qual interpretava a personagem Deise Coturno. Em 2010, subiu aos palcos em São Paulo com a peça Dias Felizes, de Samuel Beckett, dirigida pelo amigo Emílio Di Biasi. Nesta entrevista, realizada pouco antes do acidente doméstico, ela repassa momentos importantes da sua vida. 

 

Edgar Olimpio de Souza     

 

Os Cafajestes vai completar meio século no próximo ano. Você imaginava que a cena de nudez na praia fosse gerar tanta polêmica?                                                                  

No fundo, pegou todo mundo de surpresa. O diretor Ruy Guerra avisou que, se não gostasse do resultado, cortaria a sequência. Ele me pediu para entrar na água, tirar o maiô dentro do mar e depois correr pela praia. O Ruy botou a câmera em cima de um jipe e filmamos de uma vez só. O Celso Amorim era o primeiro assistente de direção e escondeu o rosto atrás de um livro vermelho do MaoTse-Tung (risos). Como ninguém tinha dinheiro, quem produziu foi o bicheiro Castor de Andrade.

 

O filme despertou a ira dos setores reacionários, que não gostaram nada do que viram...                                                        

A TFP (a organização Tradição Família e Propriedade) exigia que meu nome fosse removido de todos os cartazes e chegou a promover uma passeata contra mim.Avisaram que se eu fosse para Belo Horizonte iria morrer a pauladas. Alguns cinemas no Rio de Janeiro foram fechados, o que afetava a nossa sobrevivência porque vivíamos das bilheterias e não do dinheiro do Estado. Havia pressão para que o filme (foto ao lado) tivesse cortes. Até cortaram as cenas mais fortes. Aproveitei que o clima político estava começando a pesar, e que eu acabara de filmar O Pagador de Promessas, e me mandei para a Itália.

 

Os tempos mudaram mesmo e hoje a nudez é até incentivada...                                     

Eu prefiro dizer que hoje em dia o nu feminino virou um artigo vulgar. Não tem mais peso político, apelo transgressivo, perdeu completamente o sentido de contestação. Virou mera exibição do corpo. Mas não tenho nada contra, cada um faz o que bem entende com o seu. Só me reservo o direito de achar feio ou não. Por exemplo: o fio dental é um horror, deixa aquelas duas bolotas de fora. Isso não quer dizer que a alternativa seria vestir um maiô do tipo daquele usado pela Esther Williams (atriz e nadadora americana famosa nos anos 1940 e 50). Eu prefiro um biquíni normal, que exibe o corpo da mulher sem exagerar. 

 

Por que a temporada italiana não deu muito certo?                                                     

Quem disse que não deu? Eu entrei e saí pela porta da frente. Por causa do sucesso do filme O Pagador de Promessas, que ganhou o Festival de Cannes em 1962, o Dino de Laurentis (produtor de cinema italiano) me convidou para trabalhar no cinema italiano. Eu atuei ao lado de artistas importantes como Renato Salvatore, Alberto Sordi, Jean-Louis Trintignant e Catherine Deneuve. Convivi com os diretores Visconti, Fellini, Monicelli, Pasolini. O prédio em que eu morava com o meu marido era uma referência e os paparazzi subiam nos telhados. Só fui embora porque o meu casamento havia acabado. 

 

O fato de ter namorado o ator Alain Delon deve dar inveja em muitas mulheres...

A gente se conheceu quando eu filmava Mafioso e ele O Leopardo. Estávamos hospedados no mesmo hotel, em Palermo. Foi uma relação forte, intensa, mas não casei porque não o amava o suficiente. Ele se apaixonou loucamente por mim, mas era muito mulherengo e ambíguo, cada dia estava com uma pessoa diferente. Não era homem para mim. Várias vezes ameacei de ir embora. Aí, na hora de eu dormir, ele tocava Rachmaninoff (compositor russo) e me acordava com Ne me quitte pas. Até hoje somos amigos. Como amante, Alain Delon (foto acima) era o máximo.

 

Você era muito namoradeira?                                                                                          

Não me escapou ninguém, namorei todo mundo: o Renato Salvatori (ator italiano), o Jean Sorel (ator francês), o Vianinha (ator, dramaturgo e diretor brasileiro). É bom citar ao menos um brasileiro para não me acusarem de entreguista! Eu e a Odete Lara (atriz e cantora) aprontamos muito na Itália. Eu só namorava homens bonitos. Fui casada com o ator Gabriele Tinti, que era considerado o homem mais bonito do mundo. Casamos nos Estúdios Vera Cruz e meus padrinhos foram os técnicos que trabalhavam lá. A gente se separou anos depois porque ele era o típico marido italiano, que acha que a mulher, depois de casar, deve engordar e ficar em casa. Impossível, eu era completamente famosa. 

 

Ter sido comparada à atriz francesa Brigitte Bardot prejudicou a sua carreira?

De maneira alguma. Eu não levava isso a sério, sou meio anárquica. Na verdade, era ela quem se parecia comigo. E mal parecida, porque bebe e está toda encarquilhada (risos). Mas eu a admiro. Nos últimos anos ela tem desenvolvido um trabalho que julgo bem interessante e nobre, o de defender os animais. Esse título de Brigitte Bardot brasileira me persegue até hoje e acho uma grande injustiça porque tenho uma carreira nacional e internacional consolidadas. Tenho um trabalho a mostrar.

 

A sua beleza sobressaiu mais do que o seu talento? Um rótulo incomoda?

Sou uma mulher que nunca fica fora de moda porque sou atriz e não um corpo. Na época do filme Os Cafajestes tentaram colar uma aura libertária à minha carreira e me transformar em musa do Cinema Novo. Mas eu estava preocupada com outras coisas. Nunca fiz Playboy, por exemplo, por absoluta falta de tempo. Eu era bonita, levava muitas cantadas, era assediada na rua. Uma vez, aqui em São Paulo, tive de me esconder num hotel para fugir de um bando de homens. A beleza ajudou, abriu portas, não nego. No amor, alguns homens observavam mais a minha forma física que a minha pessoa. Mesmo assim, eu aproveitava. Quer? Toma lá, dá cá. Nunca fiz análise. Na única vez que tentei deitar no divã, me apaixonei pelo analista. 

 

Aproveitando a frase: no seriado Toma Lá, Dá Cá, exibido pela Rede Globo até 2009, a sua personagem Deise Coturno deu o que falar...

Era uma personagem masculinizada, que vivia sendo chamada de sapatona e não contestava. Isso acabou incomodando a muita gente. Diziam que o comportamento dela prestava um desserviço ao movimento gay. Que bobagem! A Arlete Salles interpretava uma avó que dava para todo mundo, ninguém escapava. Não vi preconceito algum nesse caso. Era uma brincadeira do autor Miguel Falabella. Se algumas pessoas levaram para o lado da maldade, é porque não entenderam o humor do programa.

 

Esse tipo de polêmica chegou a te aborrecer?

Para falar a verdade, eu só soube da repercussão pela imprensa. Na minha frente ninguém jamais condenou a personagem. Ao contrário até, ela era vista como engraçada. Conheço moças assim, tenho uma amiga no teatro com esse jeito masculino. Qual o problema? Mesmo sofrendo preconceito, a Deise Coturno (foto acima) fazia bastante sucesso entre os moradores do condomínio. Essa polêmica pode ter sido forjada.

 

Por que em certos momentos da sua vida algumas pessoas gostavam de especular sobre a sua sexualidade?

Quando voltei da França, na década de 1970, cheguei pregando um discurso feminista.  Comecei a lutar pela libertação da mulher, pela liberação da sexualidade. Eu estava sendo coerente com a minha vida e trajetória. Então me deparei com um Brasil atrasado e conservador. Fui chamada de sapatona, sapatilha. Uma mulher não podia ser livre e transar com quem quisesse. Era proibido defender o uso de pílula anticoncepcional. Alguns padres me impediram de cantar em um show na PUC do Rio de Janeiro.

 

Pelo jeito, você tinha a sensação de estar pregando no deserto...

Tanto que achei melhor desistir dessa história de feminismo. Vi que não valia a pena me queimar num país onde ninguém me entendia. Na França eu convivi com a Simone de Beauvoir, que me ensinou muito sobre a condição feminina. Eu guardo ótimas lembranças dela. Um dia ela interrompeu o nosso papo porque o Sartre ficava numa esquina vendendo o seu jornal e ela temia que ele pudesse ser atropelado! 

 

No auge do regime militar, você não chegou a ser vítima de seqüestro?                         

Fui sequestrada na Rua Xavier de Toledo, em 1968, durante a temporada da peça Cordélia Brasil no Teatro de Arena. Uma noite, na saída do hotel, eu e o diretor Emílio Di Biasi fomos abordados por quatro homens. O Emílio tentou me defender, foi golpeado e caiu no chão. Eu fui jogada violentamente para dentro de um fusca. Enquanto o Emílio acionou a Cacilda Becker, que tinha muitos contatos políticos, eu fui parar no Rio de Janeiro.

 

O que aconteceu lá?                                                                                                     

Permaneci presa durante dois dias. Eles queriam que eu denunciasse os supostos comunistas infiltrados no teatro. Acabei sendo liberada sem denunciar ninguém. Como nessa época os artistas viviam ameaçados, decidi me exilar na França em 1971. Numa entrevista a jornalistas franceses chamei o presidente Médici de urubu-rei. Cancelaram o meu passaporte. A sorte é que eu tinha passaporte italiano.

 

O filme O Guarani, que você produziu e dirigiu em 1996, até hoje rende processos na Justiça. Na prestação de contas, você foi acusada de ter desviado dinheiro público. Encara isso como perseguição política ou aconteceu, de fato, um equívoco contábil?

Tem gente que jura que fiquei milionária! Antes tivesse porque o filme alcançou doze milhões de espectadores na Rede Globo, foi exibido na China, Inglaterra, Portugal e Estados Unidos e lançado em DVD. Cadê a fortuna que eu teria roubado? Não vou me eximir de culpa. Levei dez anos nesse trabalho e quando finalizei a obra, olhei a minha conta bancária e vi que só tinha ganhado dezessete mil reais. Não acreditei.

 

O valor estava errado?

Um produtor executivo me disse que um diretor faturava de 400 a 500 mil reais em produções de grande porte. Aí eu acrescentei esse valor, cobrei e não avisei ao Ministério da Cultura. Pronto, começou a confusão. Fui indiciada por evasão de divisas, lavagem de dinheiro e apropriação indébita. O processo criminal foi arquivado, sobrou o tributário. Toda essa história me magoou muito.

 

O cinema feito atualmente no Brasil te agrada?                                                           

Temos uma produção qualificada, diretores e atores talentosos, filmes preocupados em denunciar problemas atuais. Só não gosto da necessidade de se criar rótulos, como “cinema marginal”, “pornochanchada”, “cinema isso”, cinema aquilo”. Cinema é um só. Não sei se hoje tem espaço para filmes diferentes como A Idade da Terra, do Glauber Rocha, que eu fiz. É tão lindo quanto incompreendido, embora eu acredite que ainda será compreendido um dia.

 

Como foi trabalhar com o Glauber Rocha?                                                                 

Lembro que nos primeiros dias de filmagem eu cheguei com o texto na ponta da língua. Aí o Glauber pediu para eu esquecer tudo e acabei inventando uma mulata. Eu e ele éramos dois bicudos que não se beijavam, mas se amavam muito. Ele era alucinado. Queria que eu fizesse um outro filme no qual eu escalaria nua os Andes acompanhada de guerrilheiros. Recusei porque não sou louca. 

 

Quatro anos atrás você sofreu um colapso nervoso logo no início da temporada da peça O Relato Íntimo de Madame Shakespeare. Chegou a pensar que não tinha mais condições físicas e emocionais para atuar?

Eu estava afastada do teatro havia duas décadas e enfrentava problemas pessoais na ocasião. Eu esquecia as falas e a temporada da peça (foto ao lado) foi interrompida na primeira semana. A minha amiga Sônia Nercessian (fotógrafa e produtora), com quem morei vários anos, tinha morrido recentemente de câncer e a história me abalou emocionalmente. Não conseguia me concentrar em cena, sofria de pressão alta. No quarto dia desabei no palco e fui parar no hospital. O médico me obrigou a voltar para o Rio de Janeiro. Foi decepcionante porque o espetáculo era uma homenagem a ela.

 

Nunca quis ter filhos?

Nunca. Aprendi a viver só, embora faça questão de cultivar os amigos. Filho é um assunto delicado e a educação exige atenção especial, um corpo-a-corpo diário. Como vivia trabalhando, filmando, viajando, não tinha tempo de pensar em maternidade. Meu filho ia ficar com quem? Com minha mãe? Aí não seria o filho da mãe, mas da avó.

(Foto da capa: Norma Benguell na peça Dias Felizes / foto de Suzane Sabbag)

 

 

Veja cenas do filme Os Cafajestes:

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Relatos Selvagens

Na visão do roteirista e diretor argentino Damián Szifron, os personagens deste filme vivenciam uma espécie de pesadelo. Seis episódios reunidos tratam de sentimentos como vingança, rancor e inveja, gerados por uma fratricida luta de classes com direito a punições e conseqüências dolorosas. Um dos segmentos, por exemplo, acompanha um executivo que pilota seu automóvel de luxo por uma estrada vazia e, sem motivo aparente, é bloqueado por um carro velho dirigido por uma caipira. Após ultrapassá-lo, ele xinga o sujeito e segue viagem. Mais adiante um imprevisto irá fazê-los se encontrarem e ambos vão batalhar pela sobrevivência em meio a lutas e perseguições.  

Com diferentes graus de humor, matizes de drama e pitadas de suspense, os contos mostram pessoas empurradas para situações-limites, que perdem o controle emocional, se comportam de maneira rude e grosseira e beiram o ponto de ruptura. Apesar da comicidade e do absurdo subjacentes nas histórias, o que emerge ao longo delas é um jogo em que há sempre alguém destruindo outro de forma violenta. São predadores em um mundo capitalista que funciona à base de poderes econômicos e produz deserdados de variados tipos. Com desempenhos seguros e adequados, sem concessões a caricaturas e estereótipos, os atores Ricardo Darin, Dario Grandinetti e Leonardo Sbaraglia, entre outros, dão vida a esses seres que caminham pela corda bamba do horror. 

Não há desníveis e pontos fracos significativos no emaranhado de enredos. Todos são interessantes, coerentes e complementares, implicando desfechos que surpreendem por expressarem uma transtornada justiça pelas próprias mãos. A abertura extrai diversão de um conjunto de coincidências que acontecem a bordo de um avião. De repente, todos os passageiros descobrem ter conexões inesperadas. Ambientado num restaurante de beira de estrada, outro curta destaca uma cozinheira inconformada com a presença de um cliente mau caráter responsável por arruinar a vida da garçonete que trabalha ali. Há um episódio no qual um milionário, que precisa livrar o filho da cadeia após o mesmo atropelar uma mulher grávida e não prestar socorro, surta ao perceber estar cercado por advogado e investigador de polícia venais. Um engenheiro perito em demolições também se deixa enfurecer depois de ter seu carro repetidamente rebocado pelo departamento de trânsito de Buenos Aires. Ao tentar justificar a multa, cai na burocracia corrupta das autoridades do setor e, exaurido, arma uma explosiva vingança. Por último, uma festa de casamento que deveria levar os noivos ao céu, descamba para uma sucessão de barracos, abrindo fissuras num relacionamento enganosamente feliz.

Mesmo sem a contundência e transgressão esperadas, o filme é capaz de se infiltrar nas entranhas do país, capturar e expressar questões de conteúdo social e político. Como o fato de que proletários, burgueses e camadas médias travam duros embates para defenderem seus interesses e afirmarem suas convicções e valores de classe. Muitas vezes, nutrindo-se ódio, sangue nos olhos e assédios. O burguês no automóvel insulta aquele que, sem propósito visível, interditou por segundos sua passagem. Ao perder mulher e emprego, o engenheiro investe perigosamente contra o poder municipal. Um milionário oferece vultosa grana ao jardineiro, chantageando-o para assumir a culpa do filho imprudente. Em entrevistas, Szifron contou que imagina a sociedade capitalista como uma gaiola transparente que reduz a nossa sensibilidade e distorce nossos laços com os outros. A produção argentina escancara estes indivíduos que vivem dentro dessa gaiola sem ter consciência de sua existência. A fúria mal engarrafada que permeia as tramas é emblemática. Nas sociedades contemporâneas, muitos seres humanos estão se transformando em animais.

(Edgar Olimpio de Souza)

(Foto Divulgação)

 

Avaliação: Ótimo

 

Relatos Selvagens

Título Original: Relatos Salvajes (Argentina, 2014)

Gênero: Drama, Comédia, Suspense, 122 minutos

Direção: Damián Szifrón

Elenco: Ricardo Darín, Darío Grandinetti, Érica Rivas e outros.

Estreou: 23/10/2014

 

Veja trailer do filme:

 

 

Herói da resistência

O futebol francês pode ter perdido um jogador de futebol que, na definição do próprio personagem desta matéria, Jean Thomas Bernardini, mesclaria o comportamento intempestivo de Romário com o estilo clássico de Toninho Cerezzo, meio campista da Seleção Brasileira de 1982. Em compensação, o cinema brasileiro ganhou uma distribuidora importante, a Imovision, e o complexo de salas Reserva Cultural, na Avenida Paulista, habitualmente eleito pela crítica especializada como o de melhor programação cinematográfica da cidade de São Paulo. O que uma coisa se liga na outra? Simples: quem pilota ambos os empreendimentos é o “ex-boleiro” Bernardini, este francês que desembarcou no Brasil trinta anos atrás e nunca mais saiu.

Com a desativação em março passado do cultuado Belas Artes, o Reserva Cultural passou a ser um dos raros templos na cidade a exibir aquilo que se convencionou chamar de filme de arte - produções de conteúdo reflexivo, normalmente de baixo orçamento e quase sempre de público restrito. Um arco que vai do cinema iraniano a Woody Allen. “Os fechamentos dos cines Belas Artes, Gemini (2010) e Top Cine (2006) são notícias que entristecem qualquer um que valoriza a sétima arte”, lamenta ele, que inaugurou as suas quatro salas de exibição em 2005. Desde então, o público cinéfilo que marca presença ali cresce em média 12% ao ano.  

Bernardini, no fundo, não estranha a descontinuidade de espaços dedicados ao cinema alternativo. A cultura, observa, deixou de ser prioridade no mundo de hoje e o jovem tem preferido barzinhos e baladas. “Na distribuidora, eu adquiria filmes ousados e avançados que, ao serem lançados, permaneciam semanas em cartaz. Agora, não há demanda de público para longas temporadas”, compara. “Quem tem mais fôlego para resistir são as grandes produções. Até na França, de cultura cinematográfica mais consolidada, houve um rebaixamento cultural.”

Um dos segredos da situação estável do Reserva Cultural, que caminha na contramão do cinema hollywoodiano, é o combo qualidade da programação + cuidado com o público – há estacionamento, praça de alimentação (com vista para a Avenida Paulista, pela fachada envidraçada), boulangerie e livraria, ou seja, a mesma estrutura oferecida num shopping center para quem vai ao cinema.

No Reserva, nenhum filme entra em cartaz por política ou amizade. Até longas-metragens com o selo da Imovision, se não renderem o suficiente, são sumariamente removidos da grade antes do prazo imaginado. O critério é eminentemente profissional. Bem sucedido de público, Vincere, do diretor italiano Marco Bellocchio, foi um exemplo de produção que se estendeu além do prazo imaginado. Em contrapartida, 3 Homens e Uma Noite Fria,do cineasta finlandês Mika Kaurismaki, não agradou e foi rapidamente limado da grade.  

“O segredo é ser coerente com a proposta e o perfil da sala. Nossa lógica não é a comercial, como a do Cinemark, mais de olho na bilheteria do que nas virtudes artísticas do filme. Para nós, vale a fita que ganhou um festival relevante, contém uma linguagem inovadora, tem um diretor autoral”, explica Bernardini, habitualmente convidado para festivais de cinema pelo mundo, quando exercita seu faro aguçado para adquirir obras “diferentes”.     

A regra do jogo. Mesmo com a proposta afinada, Bernardini levou um susto no dia da inauguração do Reserva Cultural. Ele queria carimbar a programação de estréia como uma vitrine do cinema de arte realizado no mundo. O único diretor a aparecer, de uma ampla lista de convidados, foi o cineasta argentino Santiago Carlos Oves, do longa Conversando com a Mamãe (2004). Os demais refugaram de última hora. “O engraçado é que a fita emplacou oito meses em cartaz”, diverte-se Bernardini, que já recepcionou, entre outros, o diretor norte-americano Francis Ford Coppola e a atriz francesa Catherine Deneuve (foto ao lado).

“Hoje, o público que chega aqui pode até não conhecer os filmes em exibição, mas sabe que, se está na grade, é porque vale a pena”, orgulha-se ele, habituado a assistir em sua casa uma média de sete a dez longas por semana, no formato DVD. “Não tenho preferências de gêneros, não existe um diretor que eu acompanhe especificamente. O Luchino Visconti (O Leopardo / Rocco e Seus Irmãos) é um diretor clássico, fez grandes obras e porcarias também. Gosto de tudo, menos de terror e animação”, revela.

Diferentemente do menino do lacrimoso Cinema Paradiso, de Giuseppe Tornatore, que se fascinava pelas imagens projetadas na tela, Bernardini passou a sua infância e adolescência curtindo outras aventuras. No lugar das salas escuras de cinema, ele investia o seu tempo jogando bola. Chegou a atuar no time do Olympique de Marseille (símbolo ao lado), mas uma grave contusão o retirou dos gramados aos 21 anos.

Ele lembra que o rompimento dos ligamentos do joelho foi tão grave que os médicos cogitaram amputar a sua perna. Seu caso, inclusive, repercutiu no mundo europeu da bola, na ocasião. Foi salvo pela perseverança. A cirurgia durou onze horas, no primeiro dia, e mais nove na sequência. “Os médicos retiravam a gangrena com colher”, recorda-se. Durante um ano, cumpriu exaustivas oito horas diárias de fisioterapia.

O acidente só antecipou uma decisão que Bernardini, “indisciplinado e temperamental como Romário”, já havia tomado anteriormente - a de não seguir carreira nos campos de futebol. Já “aposentado da bola”, cursou Psicologia por coação do pai comerciante, contrário à idéia de que o filho não tivesse diploma universitário. Nas horas vagas, para faturar uns trocados, vendia band-aids. O negócio caminhou tão bem que ele formou uma equipe de setenta vendedores dispostos a bater de casa em casa ofertando o pequeno curativo. Na época, morava em Aix em Provence, cidade distante setecentos quilômetros de Paris.

O destino bate à sua porta. Sua vida mudou de vez quando, em 1978, um amigo lhe confidenciou que havia um hotel à beira mar à venda no Rio de Janeiro, a “preço de banana”. Bernardini fez as malas, despediu-se da família e dos amigos e embarcou no primeiro vôo para o Brasil. Na chegada, a surpresa desagradável: o amigo se equivocara absurdamente no valor do hotel, que custava vários dígitos a mais. “Como eu tinha avisado todo mundo, não podia voltar de mãos abanando”, confessa Bernardini, que decidiu permanecer mais um tempo na cidade.

Aí, vivenciou outro apuro. Sem conseguir reservar um cofre em bancos brasileiros por não ter CPF, e com medo de deixar toda a grana no apartamento alugado, disfarçava o volume de dinheiro numa bolsa que carregava para tudo quanto é lugar. Um dia, no entanto, esqueceu-a numa lanchonete e bateu o desespero. Voltou correndo quinze minutos depois e, felizmente, o balconista a havia guardado, “sem mexer em nada”.

Já habituado ao cotidiano carioca, investiu o que tinha em uma confecção. Ele ouvira falar que os brasileiros compravam jeans de baciada em Saint-Tropez, abriu uma fábrica e virou representante no País da marca McKeen. Chegou a negociar 120 mil peças em uma feira de moda. Um sucesso. “Em 1982, organizei o primeiro desfile internacional de moda no Brasil”, conta ele. O negócio durou pouco, até 1990, abalroado pelo confisco dos ativos financeiros promovido pelo então presidente Fernando Collor.

A sua sorte é que, simultaneamente à fábrica, ele havia estruturado a Distribuidora Imovision – sua experiência em cinema, até ali, tinha sido cuidar do cineclube na universidade, em Marselha. A inspiração para o empreendimento surgiu porque um amigo francês pediu-lhe para distribuir no Brasil o longa-metragem Inverno 54. Lançou-o em 1991 e a produção percorreu com sucesso o circuito alternativo da época.

A notícia do êxito do lançamento correu e Bernardini passou a atender telefonemas vindos da Europa, de gente interessada em exibir suas fitas por aqui. Na ocasião, distribuía em média três produções por ano, que permaneciam até meses em cartaz, mesmo com a existência de poucas salas de exibição. “Hoje, o filme virou produto. Até lanço uma quantidade maior de obras, mas logo saem da programação”, compara ele, que sentiu a necessidade de também virar exibidor em 2005 pelo simples fato de que era impossível ficar o tempo suficiente em cartaz apenas com produções independentes.

“Eu sabia que o Reserva Cultural ia funcionar porque, como distribuidor, eu conhecia o mercado”, assinala ele, enfatizando que não fez nada de revolucionário, apenas se guiou pela coerência. Para corroborar o raciocínio, cita o ex-presidente Lula que afirmou, certa vez, que fazer o óbvio é mais difícil do que se imagina. “Fiz uma pesquisa sobre pipoca e constatei que 72% não gostavam de comê-la durante a projeção do filme. Por que ia brigar com os números? Somos o único cinema no Brasil que não tem pipoca. Não sou maluco de contrariar a clientela.”

Dias de glória. Além da Imovision e do Reserva Cultural, Bernardini mantém desde 1995 a boulangerie Pain de France (foto ao lado), localizada no próprio espaço e em unidades nos Jardins e Pinheiros. Nos dois primeiros anos, dividia a sociedade com o sócio o padeiro Olivier Anquier. Depois, assumiu integralmente a empreitada. Outro negócio que até um ano atrás administrava era um barco-hotel em Santarém, no Pará, o Amazon Dream. Na impossibilidade de conciliar tantas atividades, decidiu vender a sua parte para o sócio. “Ele reclamava a minha presença a toda hora e eu não tinha como viajar sempre.” 

Casado há vinte anos com Denise Pompeu de Toledo, neta do Cícero, o dirigente esportivo que incentivou a construção do Estádio do Morumbi, o sãopaulino Bernardini é pai de um cientista político de 29 anos, fruto de seu casamento anterior com a ex-modelo Marilene Maggione. O rapaz trabalha na ONU e estava no terremoto que devastou o Haiti no início do ano passado.

Na época em Paris, Bernardini quase enfartou diante do noticiário. Só se tranqüilizou quando recebeu uma mensagem, via celular: “Pai, estou vivo”. Talvez tenha sido a frase mais importante que leu na vida. Dos nove funcionários que escaparam com vida do destruído prédio da ONU, o único que continua naquele país é o seu filho. “Acho que ele tem vocação para salvar o mundo”, brinca o pai.   

Definitivamente enturmado no Brasil, ele não se atrapalha mais como nos primeiros dias. Quando desembarcou no Rio de Janeiro, ansiava fixar residência no bairro do Flamengo por causa do time homônimo de futebol, o único que já ouvira falar em função da fama internacional de Zico. Ficou decepcionado, no entanto, ao saber que quem tinha estádio mais próximo dali era o “desconhecido” Fluminense. “Que país estranho!”, foi logo pensando. Com o tempo, aprendeu a gostar do jeito alegre do brasileiro, que compara com o estilo acolhedor e brincalhão dos franceses do Sul. “Na França, existe uma diferença entre a capital e o restante do país. O parisiense é um sujeito chato, pretensioso, invejoso e arrogante”, cutuca.

Mesmo com tantos anos de janela no Brasil, o sotaque francês ainda é marcante. A relativa dificuldade com o idioma local não o incomoda. Foi-se o tempo em que vivia se confundindo. No início, recorda-se, aprendeu o português que se fala na praia carioca, cheio de gírias e expressões peculiares. Certa vez, num jantar na residência carioca do cônsul brasileiro na França, a filha do anfitrião perguntou-lhe se conseguia se expressar em português. “Como eu só sabia gíria, fiquei envergonhado e quase desabei.”

Percebendo o sufoco do convidado, o cônsul arrumou-lhe um professor da área. “Desde que cheguei, não passo mais do que seis meses sem viajar para a França. Aí é difícil perder o sotaque mesmo”, justifica ele, que tem o hábito de comprar livros e não lê-los, “por absoluta falta de tempo”, e cultiva algumas manias, como a de não revelar a sua idade. “Escreva aí que eu já passei dos 40”, ri.  

Edgar Olimpio de Souza     

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