Teatro: Terremotos

Uma ministra de Estado pode estar prestes a trocar de lado. Uma grávida receia dar à luz. Uma jovem não encontra um propósito na vida. Um cientista se tornou profeta do apocalipse ambiental. Nesta operística peça escrita em 2010 pelo dramaturgo inglês Mike Bartlett, o chão treme e o mundo caminha para o precipício. Resultado de abuso e negligência irrecuperáveis, o planeta se encontra condenado pelas mudanças climáticas, aquecimento global, corrupção corporativa, embate entre meio ambiente e economia, relação despedaçada entre irmãos, pais e filhos, marido e mulher.  

A fábula de advertência é intencionalmente excessiva no palco, como pleiteado pelo autor, e o público acompanha a trajetória de três gerações de uma família problemática, com início no mítico ano de 1968 até um futuro longínquo. Não se engana quem pensou em Love, Love, Love, também de Bartlett, contundente crítica à geração baby boomer, aquela que teria substituído o futuro de seus descendentes por interesses de curto prazo.

A trama peculiar, assinada por Marco Antonio Pâmio, combina questões pessoais e públicas e é movimentada por criaturas açoitadas por traumas, medos, fraquezas e escapismos. O prestigiado intelectual Rubens Kramer, que despontou no meio acadêmico no final dos anos 1960 ao disparar vários alertas sobre a gravidade ambiental da emissão de carbono das aeronaves na atmosfera, acabou aliciado pela indústria aérea na década seguinte. Hoje residindo em outro país, virou uma espécie de porta-voz do armagedom, chamando a atenção para a crise climática e o excesso populacional da Terra. Ele também se afastou de suas três filhas, que continuaram vivendo na mesma metrópole após a morte da mãe.

O contraste entre as irmãs é claro, às vezes um pouco desajeitado e nauseante. A mais velha, Sara, atua no governo de coalizão e sofre assédio de tubarões de companhias aéreas - curiosamente, ela enfrenta tentações similares às de seu pai. Ao mesmo tempo, luta para manter seu casamento com um marido desempregado, que parece ter perdido o desejo pela vida após a demissão. A do meio é Maya, que espera um bebê e tem pulsões suicidas. Ela nutre sérias dúvidas sobre a conveniência de parir uma criança em uma época ecologicamente hostil. Solitária, perambula pela cidade acompanhada de um ser imaginário, enquanto o seu transtornado companheiro investiga o paradeiro do sogro. A caçula Yasmin, uma estudante hedonista que faz strip performático, distribui drogas e pratica sexo livremente, não sabe o que quer ser ou fazer.

O cardápio de temas, os grandes choques e o clima de suspense atraem o espectador, que deve se preparar para uma estrutura narrativa anárquica. Histórias simultâneas, uma multidão de tipos e piruetas no tempo oferecem um grau de dificuldade para a compreensão de todas as conexões do enredo. Em um momento estamos no contexto da realidade, em outro no interior da mente de alguém, de repente música e dança surreais irrompem no caminho. No desfecho pouco consistente, uma veia melodramática emerge, encarnada em um messias que surge para salvar a humanidade.  

A direção manipula com dinamismo o atulhado conteúdo e sua carcaça de cenas curtas, evitando que se torne um pastiche de estilos e assuntos. O texto teve sequências extraídas para não extrapolar em sua duração, mas a montagem não chegou a ser irreparavelmente afetada. A encenação segue um fluxo suave e o perfil dos principais personagens se revela bem delineado. Pâmio contorna de maneira satisfatória a barreira de sobrepor concomitantemente quatro planos da história, um para cada irmã e o pai. As passagens de devaneio são divertidas, incluindo a recriação de nado sincronizado e um balé protagonizado por uma trupe caracterizada de mães que carregam bebês envoltos em panos.

O copioso elenco reunido, trinta intérpretes, é uniforme e bem orquestrado para executar sem sobressaltos as mudanças de tempo, local e circunstâncias. Com pontuais exceções, os atores são verossímeis em seus papéis e evoluem de forma detectável.  Luiz Guilherme faz do cientista um sujeito de quem seria fácil não gostar, porém a impressão é desfeita mais à frente. Seu desempenho forte valoriza a figura desse homem racional e um tanto maçante. Na pele da arrogante Sara, que gosta de seu status ministerial e tem sua moralidade posta à prova, Virginia Cavendish traz calor para um papel complicado, equilibrando-se entre o pragmatismo de precisar tomar decisões importantes e as pelejas pessoais para dar sobrevida ao seu relacionamento. Paloma Bernardi, que encarna Maya, exala a angústia de uma mulher sob pressão e delírios. Yasmin é desenhada com expressividade calculada por Bruna Guerin, que transmite o prazer e o desatino de suas atitudes.   

Fernando Pavão compõe um tocante retrato do infeliz marido de Sara. cuja confiança foi destroçada pela ascensão profissional da esposa e agora tenta descobrir uma nova identidade. Giovani Tozi é incisivo e determinado ao dar vida ao marido de Maya. Com elegância e porções de cinismo, Iuri Saraiva impulsiona o empresário manipulador e sem escrúpulos. Os demais, entre eles Martha Meola, Vinicius Oliveira, Angélica Prieto e Lara Hassum,  potencializam suas presenças entregando energia e entusiasmo.   

A equipe criativa contribui para os acertos do espetáculo. As orgânicas coreografias e direção de movimento são de Marco Aurélio Nunes. O design de som de Gregory Slivar, inflamado por canções e efeitos sonoros, é envolvente. A iluminação de Wagner Antônio auxilia no arranjo dos diferentes cenários da história. A minimalista cenografia - quatro grandes cubos metálicos vazados, deslocados continuamente pelo espaço cênico - é subscrita por Duda Arruk. As vibrantes projeções de videomapping são da dupla André Grynwask e Pri Argoud. Os figurinos de Fábio Namatame se adequam ao espírito da peça.    

Bartlett articula uma mistura extravagante de conteúdos sociais e políticos, drama familiar e ficção científica. Ele usa o teatro para construir sua fantasia apocalíptica sobre o destino do gênero humano. Somos sete bilhões de pessoas, num planeta que deveria comportar bem menos, mas estamos mais sozinhos do que nunca. À certa altura um personagem afirma que a Terra sabe o que quer. “Ela quer se livrar de nós”. Terremotos parece um conto de terror.  

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )  

(Foto Everton Amaro)

 

Avaliação: Bom 

 

Terremotos

Texto: Mike Bartlett

Direção: Marco Antônio Pâmio

Elenco: Virginia Cavendish, Paloma Bernardi, Bruna Guerin, Luiz Guilherme, Giovani Tozzi, Fernando Pavão, Iuri Saraiva e outros.

Estreou: 05/03/2022

Teatro do Sesi (Avenida Paulista, 1313, Cerqueira Cesar). Quinta a sábado, 20h; domingo, 19h. Ingressos gratuitos. Reservas pelo Meu Sesi (www.sesisp.org.br/eventos). Em cartaz até 12 de junho.

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