EDITOR: Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

 

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Teatro: De Todas As Maneiras que Há de Amar

De cara, a esposa pergunta ao marido se ele a ama. A resposta é afirmativa e o sujeito volta a se concentrar na leitura. Ao longo da narrativa a indagação é repetida e o retorno é novamente positivo. Parece não existir dúvidas sobre a reciprocidade do afeto, embora o leito do casal tenha sido substituído de repente por duas camas de solteiro e um deles quer saber quantos filhos tiveram juntos. Espécie de ópera de câmera, a concisa e elíptica peça do dramaturgo americano Edward Albee (1928-2016) investiga o embaraçoso tema do amor que vai se apagando ao longo dos anos e desidrata os casamentos.  

O título em inglês, Couting the Ways (Contando as Maneiras, 1976, em tradução aproximada), tem origem num famoso soneto da poetisa inglesa Elizabeth Barrett Browning, que fala da natureza da afeição sob a perspectiva feminina e as diversas maneiras de expressá-la. No Brasil, foi traduzida por Augusto César, que se inspirou numa conhecida canção de Chico Buarque. Inédita por aqui, chega aos palcos pelo Grupo Tapa e assinatura de Eduardo Tolentino, com Brian Penido e Clara Carvalho no elenco. Ator e atriz foram casados no passado e o fato adiciona ao espetáculo uma interação genuína, além de novos nexos e sentidos.

O texto se divide em 21 esquetes breves, certeiros e até bem humorados, alguns demarcados apenas por uma frase. Todos culminam com blecautes. O tempo de menos de uma hora de duração é suficiente para revelar Ele e Ela aprisionados em um matrimônio desbotado e sem mais paixão. Como são adultos de meia idade sensatos, não se vê qualquer tipo de agressão verbal entre eles, tampouco alguém faz algo deplorável e vergonhoso ao companheiro. A monotonia se instalou e agora assistem passivamente à deterioração do ardor e afeto do início, convencidos de sua inevitabilidade. Em um rasgo brechtiano, previsto no original, há um intervalo em que os atores se despem de suas criaturas e conversam diretamente com a plateia, numa prosa sobre suas biografias e trajetórias artísticas. Trata-se de um entreato divertido, sincero, comovente, que estreita as linhas entre a ficção e a realidade. 

Na função de cúmplice e testemunha privilegiada, o público acompanha toda a ação acomodado nas bordas do espaço cênico, como se estivesse dentro da sala de visitas dos anfitriões. Nessa arena intimista, preenchida por mesinha, duas poltronas e tapete, Tolentino emplaca direção sensível e arejada, que prioriza o subtexto e evita que os personagens se reduzam a seres unicamente cínicos e vaidosos. Articuladas de forma eficiente e natural, as entradas e saídas de cenas desenham uma movimentação típica do vaudeville. Não foi por acaso que Albee definiu assim a sua dramaturgia. Clara Carvalho e Brian Penido foram dirigidos com engenho e rigor gestual na composição dos cônjuges. Eles mergulham na essência do material, comprometidos com cada palavra que pronunciam e troca de olhares que executam. Criam tipos carismáticos que, mesmo imersos em frustrações e desencantos, jamais perdem a compostura. Sem cair na caricatura, conseguem humanizar papeis abstratos que o autor rotulou de Ele e Ela. Um trabalho de interpretação eivado de nuances e modulações.

A montagem envolve ao flutuar entre a comédia mordaz e o drama patético, salpicada por observações aguçadas e perspicazes. Albee é um artista singular, que passeia à vontade entre o realismo e o surrealismo. No clássico de sua autoria, Quem Tem Medo de Virgínia Woolf?, dois casais protagonizam embates incineradores. É possível identificar pontos de contato entre as duas obras. Em ambas, os relacionamentos são retratados como uma montanha russa e os diálogos entregues tanto podem encantar quanto desorientar.

Escorada na potência das palavras e em uma mis-en-scène capilar, a montagem é hábil em iluminar o sentimento de indiferença e as pequenas negligências que costumam demolir a convivência conjugal. Em uma passagem emblemática da trama, o descompasso explode: ele pede algo (“cadê minha camisa?”) enquanto ela rumina uma memória afetiva da adolescência, quando se atraiu por um rapaz. Para Albee, o exercício da troca e generosidade no casamento é menos amoroso do que aparenta. A realidade acaba sendo colocada à prova no instante em que se descobre que o amor ilimitado, fidelidade e desejo, valores comumente associados às relações conjugais, quase nunca se efetivam. Talvez seja irreal e inexequível arcar com as imposições do compromisso e das conveniências sociais que capturam as uniões matrimoniais. Entre quatro paredes, os casais se ouvem, mas nem sempre se mostram dispostos a escutar.

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )  

(Foto Ronaldo Gutierrez)

 

Avaliação: Ótimo

 

De Todas As Maneiras que Há de Amar

Texto: Edward Albee

Direção: Eduardo Tolentino

Elenco: Clara Carvalho e Brian Penido

Estreou: 24/01/2020

Teatro Aliança Francesa – Sala Atelier (Rua General Jardim, 182, Vila Buarque. Fone: 3017-5899). Sexta, 21h; sábado e domingo, 19h30). Ingresso: R$ 50. Em cartaz até 16 de fevereiro. Retorna de 6 a 29 de março. 

 

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