Teatro: As Crianças

Tudo se passa em uma pequena cabana no litoral, onde vivem Dayse (Analu Prestes) e Robin (Mário Borges), cenário do pulsante drama da jovem autora inglesa Lucy Kirkwood. Logo nos primeiros minutos surge Rose (Andrea Dantas), sem aviso prévio, que está com hemorragia nasal – um pormenor arrepiante que fará sentido mais adiante. A reação da anfitriã é um misto de perplexidade e embaraço. A partir desse prelúdio desconfortante, nada mais permanecerá em pé, especialmente após a chegada da rua de Robin. Há 38 anos o casal e a visitante, que passou as últimas décadas nos Estados Unidos, não se viam. Na ocasião que Rose partiu, inclusive, uma das filhas dos donos da casa era criança e acabou se tornando uma pessoa geniosa, capaz de telefonar para os pais a qualquer hora para se queixar de alguma coisa.

Os três sessentões aposentados são físicos e no passado trabalharam juntos no desenvolvimento de uma usina nuclear na região, cuja planta defeituosa e a sua má localização geográfica foram decisivas na hora em que um terremoto precipitou um tsunami e a água penetrou no reator. O colapso contaminou de radiação a costa e a terra por quilômetros, obrigando Dayse e Robin a saírem da antiga moradia para a nova, fora da zona de exclusão. Ambos se esforçam para mostrar que vivem na mais perfeita normalidade. Robin, por exemplo, fabrica vinhos artesanais e vai diariamente à sua fazenda nas imediações para, segundo ele, cuidar das vacas de estimação. Dayse pratica ioga e prepara refeições saudáveis. O ponto isolado onde residem, no entanto, transpira problemas. O terreno é meio inclinado. A eletricidade oscila. Os banheiros não funcionam adequadamente. Um contador Geiger para medir níveis de energia está sempre às mãos. Do lado externo, as estradas racharam ao meio.   

Com direção de Rodrigo Portella, a montagem desenreda a intricada relação entre esses três velhos amigos, e suas atitudes, perspectivas e contradições. O texto desfia informações em doses homeopáticas, sem urgência. Eles falam sobre a velhice, os filhos, a vida que levam, perdem-se em amenidades. Embora temperados com humor e até alfinetadas, os diálogos iniciais aparentemente não levam a lugar algum. Em certa passagem sabemos que Robin e a solteira convicta Rose têm se encontrado em segredo ao longo dos anos – a amante conhece muito bem a cozinha, sabe onde encontrar um copo, e isso gera desconfianças e irritação em Dayse. Visto superficialmente, parece que o enredo irá flanar em torno desse caso de amor mal resolvida. Todavia, a aventura extraconjugal é uma armadilha da dramaturgia, um petisco servido ao público antes de dopá-lo com questões literalmente mais embaraçosas. Na verdade, Rose desembarcou ali portando uma agenda bombástica, relacionada a culpas e responsabilidades por atos pregressos cometidos em nome da ciência que causaram uma série de flagelos na humanidade.

Esta atmosfera de suspense e apreensão, apimentada por pistas sutis e nem tanto, nunca é vulgarizada pela direção. Com marcações simples e acuradas, Portella faz com que as revelações e descobertas não surjam de forma afetada ou histérica. A respiração e o ritmo são regulados no sentido de evitar que corrompam a construção de um clima sóbrio e despojado. A mise-en-scène alcança um cuidadoso equilíbrio entre diálogos banais e tensos, nas rubricas de ação e circunstâncias que os atores comunicam à plateia. Ele consegue capturar e expressar a face mais humana da peça, articulando uma encenação rigorosa, que clarifica o sentimento de ameaça e os dilemas éticos que impactam esses personagens acuados pela história.

O diretor dispõe de um elenco em sintonia, que oferece performance absorvente. Os intérpretes se movem com palpável naturalidade e persuasão. As duas atrizes apreendem com habilidade o constrangimento áspero da conversa das mulheres de índoles diferentes que encarnam. Em uma performance irônica e triste, valorizada por nuances e silêncios, Analu Prestes exprime a inquietação e o ressentimento mascarado de Dayse   por sua hóspede indesejada. Com firmeza e impassibilidade, Andrea Dantas infiltra em Rose um tom levemente intimidante no trato pessoal e a atitude enigmática de quem guarda segredos públicos e privados. Mario Borges exibe forte presença cênica e é perspicaz na composição de Robin, um homem que catalisa as emoções e não hesita em seguir seus impulsos. Os cenários de Portella e Julia Decchache, que configuram um espaço sem paredes e poucos móveis, somados aos figurinos de Rita Murtinho, a iluminação de Paulo César Medeiros e a trilha sonora original de Marcello H. e Federico Puppi dão contribuição valiosa ao espetáculo.

A obra escancara um quadro perturbador e melancólico, eventualmente desafogado por sequências de alívio cômico, como aquela em que o trio se põe a dançar de maneira desajeitada. Eles são da geração baby boomer, aquela nascida pós-Segunda Guerra Mundial, e têm, ao menos na visão de Rose, um dever para com as gerações seguintes. Se ajudaram a desenvolver o mundo, também deram sua cota para devastá-lo. Eis o capítulo central, angustiante e doloroso. E é sintomático que Lucy Kirkwood tenha apenas 35 anos de idade. O assunto que ela alavanca passa ao largo da mera abstração filosófica. O título não se refere apenas ao comportamento infantilóide dessas criaturas no palco. Também faz alusão aos filhos do casal, aos jovens engenheiros que operam hoje na usina e às crianças em geral que estão crescendo em um planeta com visíveis danos ambientais, legado por pais ecologicamente negligentes.

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto Guga Melgar)

 

Avaliação: Ótimo

 

As Crianças

Texto: Lucy Kirkwood

Direção: Rodrigo Portella

Elenco: Andrea Dantas, Analu Borges e Mario Borges.

Estreou: 18/10/2019

Sesc 24 de Maio (Rua 24 de Maio, 109, Centro. Fone: 3350-6300). Quinta a sábado, 21h; domingo, 18h. Ingressos: R$ 40. Em cartaz até 17 de novembro.

Comente este artigo!