Teatro: Inferno - Um Interlúdio Expressionista

É uma dramaturgia temperada por situações extremas e personagens no limite. Escrita pelo dramaturgo americano Tennessee Williams (1911-1983) aos 27 anos, que se inspirou em um caso real na época, a peça permaneceu no limbo até a atriz britânica Vanessa Redgrave ressuscitá-la em 1998, enquanto pesquisava um texto diferente do autor – no ano seguinte, uma versão teatral estreou na Broadway e colheu seis indicações ao prestigiado Tony. Trata-se de uma criação mais política e menos lírica em comparação aos seus trabalhos posteriores como, por exemplo, À Margem da Vida (1944) e Gata em Teto de Zinco Quente (1958).

Sob direção de André Garolli, a surpreendente montagem de Not About Nightingales (Nada Sobre Rouxinóis) pela Cia Triptal alavanca uma história que transcorre em uma prisão instalada na península da Pensilvânia, de fuga considerada impossível. Crua, áspera e chocante, a trama explode a partir de uma greve de fome dos reclusos, que reclamam das duras condições de vida no local e da péssima alimentação servida. O protesto veemente tem como alvo um sistema de encarceramento abusivo que há muito abandonou qualquer pretensão de reabilitação social.

Nesse universo angustiante, algumas criaturas sobressaem. Butch é o autodeclarado líder dos revoltosos, um sujeito que sonha estar sendo aguardado por uma garota do lado de fora. Apelidado de canário, e odiado pelos demais cativos, o presidiário Jim atua no escritório da direção e relata o que está acontecendo no interior do pavilhão, além de redigir artigos para a revista da penitenciária. Há ainda a recém-contratada secretária Eva, que precisa de qualquer jeito do emprego naqueles tempos bicudos de depressão econômica, e o bestializado diretor Whalen, que assedia a nova colaboradora ao mesmo tempo em que tenta quebrar o movimento rebelde ameaçando-o com um castigo terrível. No caso, confiná-los no Klondike, localizado nas entranhas da cadeia, uma caldeira superaquecida que assa corpos a uma temperatura de até 150 graus. Uma punição que antecipa as temíveis câmeras de gás do Holocausto. Num sarcasmo intencional, o nome batiza uma das regiões mais geladas do Canadá.   

A direção manipula com perícia os elementos desse drama vigoroso e expressionista, instituindo uma gama de movimentos estilizados precisos e marcações convincentes o suficiente para levar o enredo adiante, mantendo o interesse do público até o desfecho. Em uma cena referencial ao cinema de Lars von Trier (O Anticristo) e Roman Polanski (Repulsa ao Sexo), a funcionária roda por braços estendidos das celas e, em outra passagem, é apalpada por diversas mãos, um delírio que transmite a sensação aterrorizante que ela vivencia. Nesta sala pequena, sentado na borda do espaço cênico, o espectador parece sentir cada pontapé e os golpes atrozes desferidos entre os detentos amontoados, os guardas e o diretor.

Os protagonistas projetam performances nítidas e detalhadas. No papel da desiludida e indignada Eva, a atriz Camila dos Anjos despeja paixão sincera e contida. Athos Magno mostra empatia na composição de Jim, o preso autodidata e um potencial poeta que sabe ter feito um acordo com o diabo para se salvar, às vésperas de conquistar a ansiada liberdade condicional. Atraídos um pelo outro, Eva e Jim estão submetidos ao abuso físico e emocional pelo superior Whalen, um corrupto que faz o que quer quando quer. Um fulano capaz de alternadamente acariciar um patinho de brinquedo, que planeja dar à filha, e açoitar um amotinado empunhando uma mangueira de borracha. Fabrício Pietro injeta intensidade e repugnância à essa alma maligna. Com força e gana, Fernando Vieira interpreta o ameaçador líder Butch, de inteligência acima da média entre os seus colegas, um cara que oscila entre a compaixão e a frieza. Simone Rebequi exibe determinação no desempenho de uma mãe perturbada e financeiramente desesperada.

Selecionados para o projeto Homens à Deriva, pilotado por Garolli, jovens intérpretes personificam os condenados, uma trupe de desajustados e outsiders que representam várias etnias, credos e preferências. Jhonathan Hoz encarna um enclausurado negro evangélico, que morre na solitária. Wes Machado é um delicado homossexual que se preocupa com suas unhas e traz a cultura gay para dentro de um ambiente eminentemente masculino. Alan Recoba vive um ex-atleta olímpico encarcerado por uma acusação violenta, que encontra seu fim trágico. Lucas Guerini dá vida a um marinheiro que enlouquece no xadrez e é severamente torturado. Com poucas ou nenhuma fala, Guilherme Maia, Rafaelly Vianna e Fernanda Otaviano, entre outros, completam o grupo dos aprisionados, todos entregando desempenhos apaixonados.

A cenografia, assinada por Garolli e César Rezende, destaca o bloco de cadeiras que, num design criativo, desenham tanto a masmorra quanto a solitária. Um andaime revestido de cortina transparente ilustra a apavorante sauna a vapor Klondike, um dos momentos mais dolorosos do espetáculo. Aline Santini engendrou um tipo de iluminação que captura o crepúsculo perpétuo do cárcere, lançando mais sombras do que luz ao ambiente.

Com viés de uma poesia de sarjeta e espécimes cínicos e miseráveis, a obra transborda uma realidade de opressão e luta, um contexto de descontrole que exige uma resposta radical. A violência deflagrada não chega a ser revolucionária, mas uma necessidade de autodefesa frente a um cenário concreto de um genocídio em marcha. O texto adianta temas que Tennessee Williams defenderia mais adiante em suas produções, como a intolerância humana, abusos sexuais, a ruína das relações familiares, homossexualidade, o sentimento de culpa do indivíduo, a pequenez da sociedade norte-americana vista por meio do microcosmo de uma situação. Ele esbanja maestria na concepção de seres mentalmente frágeis, que vê na rebelião uma tentativa desesperada de romper a solidão. É recorrente em suas narrativas a presença de figuras femininas traumatizadas à mercê de homens irracionais. No clássico Um Bonde Chamado Desejo (1947), a decadente Blanche travava um embate psicológico extenuante com o machão Stanley. Aqui, Eva se vê psicologicamente subjugada por Whalen.

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )  

(Foto Alexandre Inserra)

 

Avaliação: Bom

 

Inferno - Um Interlúdio Expressionista

Texto: Tennessee Williams

Direção: André Garolli

Elenco: Camila dos Anjos, Fernando Vieira, Fabrício Pietro, Athos Magno e outros.

Estreou: 30/08/2019

Espaço Cia da Revista (Alameda Nothmann, 1135, Campos Elíseos. Fone: 3791-5200). Terça a quinta, 20h. Entrada gratuita. Em cartaz até 31 de outubro.

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