Teatro: Chernobyl

Foi o mais grave desastre tecnológico do século XX. No dia 26 de abril de 1986, uma sequência de explosões devastou um reator nuclear da central elétrica de Chernobyl, no norte da Ucrânia. Uma gigantesca nuvem de partículas radioativas se formou e se alastrou na atmosfera de boa parte da Europa, provocando mortes e doenças no decorrer dos anos seguintes. Em poucos dias, a cidade de Pripyat, inaugurada em 1970 para abrigar trabalhadores da usina e suas famílias, teve que ser evacuada às pressas. 

A catástrofe virou tema teatral em 2017 pelas mãos da dramaturga francesa Florence Valéro, nascida no mesmo ano da tragédia e hoje um dos nomes mais importantes do teatro e do cinema contemporâneo francês. E chegou aos palcos brasileiros em uma atraente montagem assinada por Bruno Perillo, com elenco formado pelas atrizes Carolina Haddad, Joana Dória, Manuela Afonso e Nicole Cordery.

Sem escorregar no didatismo e ao largo da intenção documental, o texto não reconta a calamidade, já revisitada e esmiuçada em livros, séries televisivas e reportagens. Busca privilegiar os desdobramentos do evento por meio da trajetória de uma família residente no entorno, que, indefesa, se vê forçada a abandonar sua casa, sem tempo de organizar e levar os seus pertences. Todo o processo que culmina no longo exílio desse núcleo familiar é acompanhado pelos olhos de uma boneca narradora, que pertence à filha pequena e tem lucidez e discernimento suficientes para compreender a magnitude dos acontecimentos – a autora pode ter se inspirado em centenas de fotografias de residências esvaziadas, muitas delas estampando bonecas largadas no chão. 

Com altitude poética e refúgio na fábula, a obra fisga o espectador e o faz submergir no horror da situação. O envolvimento da audiência não transcorre apenas pela relevância histórica do que sucedeu décadas atrás na União Soviética. A direção estilizada implementa uma linguagem cênica próxima do público moderno. Intérpretes e personagens dialogam, narram, veiculam ideias e expressam seus pensamentos, num emaranhado surpreendente de vozes. Cenas são pulverizadas. Há um movimento quase incessante e todo o ambiente cênico é preenchido de maneira engenhosa. A proposta de esgueirar-se da abordagem burocrática, em harmonia com a dramaturgia de alicerce fragmentário, concede dinamismo, vitalidade e energia à montagem. É uma criação que se conecta com a estética cinematográfica e seus signos característicos, como a dilatação e contração do tempo, o domínio do espaço, as imagens que priorizam o detalhe e constroem intimidade.             

A encenação sem ornamentos desnecessários, que nunca perde o equilíbrio e jamais procura assumir o primeiro plano, se nutre ainda de depoimentos colhidos no livro Vozes de Tchernóbil (2015), da premiada escritora e jornalista ucraniana Svetlana Aleksiévitch. Os relatos de pessoas que viveram o infortúnio de Chernobyl e sentiram na pele a violência do acontecido foram inseridos de maneira genuína e sensível. São histórias que potencializam o estofo dramático e emprestam à narrativa uma brutalidade às vezes chocante, empática e sempre eloquente. Como o testemunho da mulher grávida de um bombeiro destacado para trabalhar no reator explodido, que morreu contaminado e seu corpo foi hermeticamente embalado em saco plástico. Outra diz que “nós éramos educados a entender que o perigo só poderia vir da guerra e aqui nos disseram que era um incêndio comum. Mentira! Chernobyl foi a minha guerra.”

A trupe reunida mostra coesão e sintonia fina, oferecendo performances bem trabalhadas e expressivas. As quatro afiadas atrizes incumbem-se de encarnar nove personagens, entre eles um empregado do parque de diversões, soldado, a boneca, pai, mãe e um casal de filhos. Não há protagonismo, ninguém destoa. Carolina, Joana, Manuela e Nicole, ora usando máscaras antigás, sublinham as tensões e dão consistência ao desenvolvimento da representação. A equipe técnica contribui à altura. Projeções de luz e sombras, por exemplo, chegam a esculpir na parede o interior de um ônibus que transporta os moradores do local afetado e também ilustram o conto infantil de uma baleia de olhos dourados – a eficiente arquitetura de iluminação leva a assinatura de Grissel Pinguillem. A cenografia, com suas caixas de múltiplos usos, e os figurinos, à base de calças e casacos funcionais, são de Chris Aizner e servem adequadamente à mise-en-scène. A trilha sonora de Pedro Semeghini, uma textura melódica e de ruídos, pontua e tonifica a ação.

Permeado por símbolos e um desejo claro de ecoar a atualidade do assunto, o espetáculo alavanca outras discussões a partir da sua espinha dorsal. Ele também é uma reflexão sobre o desenraizamento e o aniquilamento de hábitos e valores. O caos de Chernobyl obrigou uma população inteira a se deslocar para outras geografias, sem poder voltar para seus lares. Memória e tradição foram vilipendiadas. O mesmo se processa com povos que precisam fugir de suas terras de origem por causa de guerras, da miséria e desgraças ambientais. Incômoda, a peça confronta a plateia com os custos humanos do progresso e da civilização. E faz pensar no tipo de sociedade que somos e estamos construindo.  O terrível acidente nuclear não apenas matou e gerou patologias. Arruinou emocionalmente a vida de adultos e crianças. Estas deixaram para trás seus brinquedos e suas infâncias.

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )  

(Foto Guy Pichard)

 

Avaliação: Ótimo

 

Chernobyl

Texto: Florence Valéro (com excertos do livro Vozes de Tchernobyl, de Svetlana Aleksiévitch)

Direção: Bruno Perillo

Elenco: Carolina Haddad, Joana Dória, Manuela Afonso e Nicole Cordery.

Estreou: 09/09/2019

Sesc Consolação – Espaço Beta (Rua Doutor Vila Nova, 245, Vila Buarque. Fone: 3234-3000). Segunda e terça, 20h. Ingresso: R$ 20. Em cartaz até o dia 22 de outubro. 

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