Teatro: As Comadres

Questões como a repressão e a depreciação das demandas femininas, bem como as ilusões e as frustrações de uma classe média contaminada por moralismos, fantasias e invejas são assuntos que encorpam esta inspirada montagem assinada pela mítica diretora francesa Ariane Mnouchkine, a célebre fundadora da companhia Théatre Du Soleil.

Escrita pelo dramaturgo canadense Michel Tremblay em 1965, é tida como marco inicial do teatro canadense contemporâneo em língua francesa. Colecionou elogios e foi considerada revolucionária ao colocar em cena não só mulheres da camada trabalhadora falando em dialeto popular "vulgar" como alavancando temas do universo das classes baixas. A trama se passa na província canadense de Quebec, de idioma francês, que, na época, buscava afirmar a sua identidade cultural - até então as peças eram escritas em inglês e apresentavam maneirismos britânicos.

A protagonista é a dona de casa suburbana Germana, que ganha um milhão de selos promocionais trocáveis por uma variedade de produtos. É a chance de decorar a sua casa e mudar o padrão de vida. Para dar conta da hercúlea tarefa de colar esse volume de adesivos, ela decide convocar catorze amigas, vizinhas e parentes, as tais comadres do título. Rapidamente o encontro vira uma espécie de sessão coletiva de psicanálise, na qual elas compartilham ressentimentos, sonhos e idiossincrasias, ao mesmo tempo em que cobiçam a sorte da anfitriã.

Se o caráter transgressivo que tanto incomodou na estreia se desidratou ao longo do tempo, ainda hoje subsistem sociedades movidas pelo patriarcado e mulheres insatisfeitas com sua condição subalterna de passar roupa, cuidar dos filhos, lidar com maridos opressores e não poderem se divorciar. Exatamente como mostra este envolvente texto. Aqui, o conjunto feminino expõe seus dramas pessoais por meio de monólogos e solos musicais. Uma delas, por exemplo, frequenta escondida clube noturno e outra disfarça gravidez indesejada. O interesse para a plateia reside justamente nas relações reveladas e desenvolvidas durante a animada algazarra na residência da personagem central.

Dinâmico, fluído e vertiginoso, o espetáculo desperta a atenção com alguma facilidade. Pela primeira vez trabalhando fora da França, e com atrizes brasileiras, Ariane reproduz em parte a feição e a essência da encenação do dramaturgo e diretor René Richard Cyr (2010) - certamente é a razão de ela constar como supervisora na ficha técnica. Nesta produção, a encenadora recorre à alguns elementos observados em suas criações, como a concentração emocional no palco. 

O numeroso elenco reúne vinte atrizes, que se reveza pelos quinze papéis, proporcionando novas leituras para os espectadores dispostos a assistir mais de uma vez. A trupe feminina apresenta desempenho uniforme, com destaques individuais. Janaína Azevedo tem forte presença cênica, voz potente e encanta como a protagonista Germana. Apenas com participações esporádicas durante a temporada, Laila Garin revela delicadeza na pele de uma mulher tímida e solitária que se apaixona por um vendedor ambulante de escovas. Iza Eirado rouba a cena como Mariângela, a vizinha invejosa. Primeira visitante a chegar, faz seu discurso com muita graça e logo conquista a audiência. Em uma passagem hilária, na pele de Ivete, a carismática Sirléia Aleixo interpreta uma canção que relaciona os nomes das dezenas de convidados presentes à festa de casamento de sua filha, com direito a bis. Ana Achcar diverte como Lisette, uma figura metida a rica e viajada. Pietra, a irmã caçula da felizarda, é encarnada de maneira convincente por Júlia Marine. Paradoxalmente, a personagem, criticada pelas demais pelo estilo de vida obsceno, acaba sendo a única a dar a mão à Germana no desfecho. Juliana Carneiro da Cunha (Gabriela) e Fabiana de Mello e Souza (Romilda) exibem boas performances.

O cenário original de Jean Bard, que recria uma estilizada cozinha, foi realizado e adaptado no Brasil por Mina Quental, com destaque para uma geladeira Frigidaire típica da década de 1960. Tiago Ribeiro criou figurinos interessantes e coloridos, que caracterizam um visual de registro suburbano. Com direção musical competente de Wladimir Pinheiro, três exímios músicos (piano, percussão e baixo) dão conta da trilha sonora.

O autor desconstrói a noção da família idealizada, uma vez que elas vivem sob máscaras sociais. Explicita a inserção do capitalismo selvagem no cotidiano, por meio da cultura de fidelização, recompensas e promessas de enriquecimento rápido. Desnuda o poder da Igreja Católica - elas ajoelham ao ouvir diariamente missa pela rádio. Mostra a hipocrisia da fé católica pois, apesar de pregarem amor e generosidade, elas entregam-se ao exercício de falar mal umas das outras, reprovando mães solteiras, idosos, quem burlou costumes sexuais. Nesta mistura de drama e comédia, as moças e senhoras ali amontoadas cobiçam os selos e chegam a roubá-los, porque não suportam a ideia de que uma delas possa sobressair financeiramente dentro da comunidade.

(Vinicio Angelici - O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto Lina Sumizono)

 

Avaliação: Ótimo

 

Texto: René Richard Cyr

Direção: Ariane Mnouchkine  

Elenco: Juliana Carneiro da Cunha, Janaína Azevedo, Laila Garin, Iza Eirado, Sirléia Aleixo, Fabiana de Mello e Souza e outras.

Estreou: 05/07/2019

Sesc Consolação (Rua Dr. Vila Nova, 245, Vila Buarque. Fone: 3324-3000). Quarta a sábado, 21h; domingo, 19h. Ingresso: R$ 14 a R$ 40. Em cartaz até 28 de julho.

Comente este artigo!