Teatro: Tubarão Banguela

Uma praia pode ser o microcosmo de uma sociedade que se sente impotente e é refém da natureza imprevisível da vida. Nesta geografia espelhada pela peça, os personagens se relacionam, porém se mostram desorientados. Há um velho solitário, que perdeu os anos de predação sexual e agora compartilha a sua existência com um cachorro meio niilista. Duas amigas torram sob o sol escaldante, enfurnadas no tédio e marasmo. Um tubarão ronda perigosamente as águas, onde um surfista faz manobras sobre as ondas. A ameaça está também na pele de um dissimulado homem de camisa azul. De olho no movimento à beira-mar, um bombeiro precisa fazer resgate enquanto tenta salvaguardar o afeto em sua família. Uma filha se desespera ao procurar pelo pai. Uma criança quer entender o mundo dos adultos. O som de um helicóptero ensurdece os banhistas.

A promissora estreia na dramaturgia e na direção da jovem atriz Rita Batata acontece sem a pretensão de cavar profundezas emocionais ou psicológicas. Valendo-se de recortes de histórias conectadas, a trama pinça o flagrante em um plácido dia de verão. A fissura na calmaria advém de um acidente no mar, nunca visto e apenas narrado, estopim de um curioso encadeamento de pontos-de-vista de personagens direta ou indiretamente envolvidos com o episódio. O que aflora a partir daí são os sentimentos, as motivações ocultas, os desejos mascarados, a índole humana dessas testemunhas oculares absorvidas pela desgraça ocorrida. O texto ignora qualquer perspectiva de alcançar a verdade absoluta, ciente da impossibilidade de alcançá-la. Sem se preocupar em seduzir ou encantar, os fragmentos narrativos passam pela borda da consciência crítica. No entanto, transpiram certa poesia, mesmo que transfigurada por eventos dolorosos. O público acompanha um enredo, estruturado em justaposições e sobreposições, que expõe indivíduos às voltas com impasses, reveses, mal-entendidos, acasos felizes ou não.  

Algumas vezes a construção cênica exala a estética de uma história em quadrinhos, especialmente na sequência inicial, um mosaico de tipos quase inertes à beira mar ilustrando molduras. Movida por diálogos vivos e cenas enérgicas, a montagem desliza em ritmo ágil e seguro, sem nunca perder o ímpeto. Expressões gestuais de sentidos inusitados sublinham a encenação – por exemplo, as cocotas se contorcem na areia e uma personagem gira em círculos, manifestando o desequilíbrio emocional vivido naquela hora. Soluções simples e sugestivas, como a simulação de sangue na água em jarras posicionadas à frente do palco, são acionadas. Um pouco de atenção e é possível observar que a autora borrifou a representação com características da linguagem de origem japonesa haicai. No caso, a descrição sem artifícios dos acontecimentos, os fatos que sucedem no momento presente e o homem em simbiose com a natureza.

Esta espécie de meditação acerca da perplexidade de todo ser humano diante de inevitáveis perdas e danos, é materializada em cena por um elenco desenvolto e expansivo, que parece exibir felicidade em atuar. Nenhum deles está desconectado do clima geral do trabalho e eventualmente se multiplicam em narradores e figuras secundárias, como um policial, um repórter, o moço da xerox. Rafael Lozano brilha na composição de um cachorro à procura de identidade. Bella Marcatti se sobressai ao dar vida a uma criança esperta e de perguntas incômodas. Mariana Leme empresta impetuosidade e viço à filha perseverante e incauta no amor. Leandro D´Errico, o velho ranheta, e Rafael Pimenta, o pai atônito, exprimem firmeza e potência. Todos evitam sucumbir à caricatura ou efeitos fáceis. Os figurinos de desenhos dissonantes de Bia Pieratti e Carol Reissman, a competente luz de Aline Santini e a atilada trilha sonora de Thiago Iglesias enriquecem o espetáculo.

Nesta obra desafetada, não há grandes verdades, mas pequenas crenças. O texto soaria bem como uma parábola a respeito da condição em que vivemos, sobre essa suspeita de que o tempo só serve para fazer as pessoas esquecerem das velhas tragédias até o instante em que produzem outras novas.

(Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )  

(Foto Daniel Spalato)

 

Avaliação: Bom

 

Tubarão Banguela

Texto e Direção: Rita Batata

Elenco: Rafael Lozano, Bella Marcatti, Leandro D´Errico, Mariana Leme e Rafael Pimenta.

Estreou: 26/10/2018

Teatro Sérgio Cardoso (Rua Rui Barbosa, 153, Bela Vista. Fone: 3288-0136). Sexta e sábado, 19h30; domingo e segunda, 20h. Ingresso: R$20. Até 26 de novembro.

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