Teatro: A Milionária

Escorado em humor ácido e um convidativo jogo verbal, o teatro do dramaturgo irlandês Bernard Shaw goteja críticas políticas e sociais e apresenta figuras femininas que se movem por dinheiro e têm condutas arbitrárias. O texto foi escrito em meados dos anos 1930, época da ascensão do fascismo, e traz como protagonista a milionária Epifânia, em conturbado processo de separação do marido, Alaster, um boxeador amador peso-pesado, porém um peso-pena na maneira de se comportar. O casamento aconteceu após um desafio. Seu finado pai, por quem nutria uma afeição edipiana, impôs a condição de que o pretendente só casaria com a filha se, em seis meses, conseguisse multiplicar uma ninharia em fortuna. O esportista venceu o desafio, valendo-se de golpes e artimanhas financeiras. Hoje em pé de guerra, ambos se encontram, cada um já com seus respectivos amantes, no escritório do advogado em comum Julius.

A ricaça, que pensa em suicídio, também não se acerta com o recente namorado, um cara metido a intelectual, especialmente depois de se apaixonar por um médico muçulmano, filho de uma lavadeira já falecida. O novo relacionamento, no entanto, também está condicionado a um conjunto de instruções. A do pai dela, a repetição do que foi a exigência em relação à sua primeira união. Da parte da mãe dele, ela deixou determinado que a aspirante ao coração do rapaz precisa passar pela prova de sobreviver com pouca grana unicamente de seu trabalho ao longo de um semestre. Ambos não abrem mão porque estão dispostos a viver de acordo com os desejos legados de seus progenitores.

A montagem dirigida por Thiago Ledier clareja alguns temas caros da dramaturgia do autor, como a acumulação de renda, os direitos dos trabalhadores, os paradoxos da democracia, a desigualdade de gêneros. Tanto o médico quanto a herdeira são personagens que deflagram um saboroso debate ideológico. Ao ser desafiada a viver com grana contada, Epifânia põe a nu o modo de agir e pensar de sua classe social. Ela é a típica exemplar da plutocracia irresponsável, que exerce domínio sobre tudo o que toca, de raciocínio puramente matemático, uma gente que precisa sempre desejar alguma coisa. O oposto dele, um profissional desinteressado em riqueza e dedicado a cuidar dos desvalidos, que enxerga no acúmulo de bens a simbologia do poder. São diferenças que se infiltram no romance e o trincam perigosamente.

Agradável, o espetáculo desliza como enganosa comédia romântica, nutrida por cenas envolventes e de riso fácil. Um exemplo acontece logo no início, momento em que o escritório de advocacia lembra um ringue de boxe. Epifânia acusa o marido de andar com uma moça tosca e que ele tem o péssimo hábito de agredir mulheres. Alaster até admite o abuso, mas assegura ser em legítima defesa.

Toda a encenação, por sinal, transpassa uma dinâmica nervosa. Ledier inoculou vitalidade à ação e coordenou o conjunto para que a mise-en-scène fosse fiel ao espírito da obra. Contou para isso com um elenco sintonizado à proposta, que brinda o espectador desdobrando boas performances. Chris Couto domina o palco na pele dessa aristocrata ao mesmo tempo altiva e assustadora. Sua atuação afiada e vigorosa torna interessante uma criatura mimada e egoísta que, embora tenha todo o ouro do mundo, sente sérias dificuldades em consolidar um amor. Com desempenho enérgico e carisma, Sérgio Mastropasqua dá vida ao ponderado e prudente advogado Julius, uma espécie de mestre de cerimônias, que se esforça para controlar sua indignação e caprichos. Guilherme Gorski faz o marido infeliz da grã-fina, um sujeito engraçado e meio palerma. Sua atual namorada na peça, a perseverante Polly, é interpretada de forma veraz por Priscilla Olyva.     

Convincente, Luti Angelelli encarna Adriano, o namorado temporário da magnata, em participação marcante nos primeiros minutos. Caetano O’Maihlan incorpora com força e firmeza o meticuloso doutor muçulmano, cuja dedicação aos pobres se torna irresistível aos olhos de Epifânia. Cy Teixeira atua em dois papeis, como a secretária do advogado e a dona da fábrica de costura onde trabalha ao lado do marido, vivido por Alexandre Meirelles. No enredo, são procurados pela endinheirada, que está atrás de emprego, e precisam lutar para não serem tiranizados. Mesmo restritos a um espaço de tempo curto, os dois atores oferecem desempenhos vibrantes. Thiago Carreira acumula as funções de gerente do hotel e garçon, desincumbindo-se da missão de forma satisfatória. A cenografia e iluminação, assinadas por César Bento, são funcionais. Os figurinos, criação de Cy Teixeira, revelam-se adequados.   

O público acompanha trama cintilante, povoada por uma série de seres desagradáveis flagrados em situação de vulnerabilidade pelas circunstâncias a que se encontram expostos. Eles falam o que pensam, sem rodeios e disfarces. A egocêntrica e autocrática Epifânia, por exemplo, está tão habituada a conseguir o que quer que chega a atropelar os intrusos em seu caminho. Ela cria empregos, contudo às custas provavelmente da destruição de algumas vidas. Em uma passagem memorável, alguém diz que os pobres não são ricos porque simplesmente têm medo de ficar.

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto Ronaldo Gutierrez)

 

Avaliação: Bom

 

A Milionária

Texto: Bernard Shaw

Direção: Thiago Ledier

Estreou: 03/08/2018

Elenco: Chris Couto, Sérgio Mastropasqua, Cy Teixeira, Priscilla Olyva, Alexandre Meirelles, Caetano O’Maihlan, Guilherme Gorski, Luti Angelelli e Thiago Carreira.

Teatro João Caetano (Rua Borges Lagoa, 650, Vila Clementino. Fone: 5573-3774). Sexta e sábado, 21h; domingo, 19h. Entrada gratuita. Em cartaz até 23 de setembro.

 

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