Teatro: Um Panorama Visto da Ponte

A trama desenrola-se no pós-Guerra, em uma América saturada pela migração dos refugiados econômicos. O ponto nevrálgico dos eventos é o bairro proletário Red Hook, no Brooklyn nova-iorquino, domicílio de uma grande legião de imigrantes legais e ilegais. Uma panela de pressão prestes a explodir, diga-se. Nesse ambiente de miséria e degradação, a tragédia enunciada ajunta figuras com arroubos autodestrutivos, caso de um rude trabalhador ítalo-americano. É incrível como este melodrama naturalista escrito em 1957 pelo dramaturgo americano Arthur Miller (1915-2005), que recebeu montagem enérgica de Zé Henrique de Paula, vaticina a questão da identidade e a atual caça às bruxas aos imigrados.   

Tenso e de beleza selvagem, o roteiro expõe como protagonista o estivador Eddie (Rodrigo Lombardi), que mora com a esposa Beatrice (Patrícia Pichamone) e a sobrinha adolescente Catherine (Gabriella Potye), sob os cuidados do casal desde a morte de sua mãe. O casamento de sexo rarefeito gelou de vez e há uma fixação incestuosa não reconhecida entre o homem e a menina – vez por outra ela tem o hábito de pular alegremente no corpo dele, envolvendo as pernas em volta da sua cintura e os braços em torno de seu pescoço. A mulher observa a tudo, mas se esforça em permanecer em silêncio.

Em rota de independência e disposta a aceitar um convite de emprego, Catherine acaba involuntariamente ativando o rastilho da desgraça ao se atrair por Rodolfo (Bernardo Bibancos). Ele é um dos irmãos italianos que a família acolheu clandestinamente em seu apartamento e que ali desembarcaram dispostos a ganhar dinheiro para enviar às suas respectivas famílias pobres na Sicília. O rapaz exala charme e torna-se popular nas docas por saber cantar, cozinhar e divertir os colegas. O crescente envolvimento dos jovens inflama o ciúme e a homofobia de Eddie, incapaz de domar seus sentimentos - cada vez mais hostil com o hóspede, chega a consultar o advogado local Alfieri (Sérgio Mamberti), que também acumula a função de narrador e fala com o público como se este fosse júri. A atmosfera está carregada. O espectador intui que algo terrível está na iminência de acontecer, a catarse é apenas uma questão de tempo.

A encenação descomplicada de Zé Henrique de Paula se desenvolve sem pressa e atropelos. Centra a atenção em desfiar com clareza os acontecimentos, despindo-se de artifícios inócuos, porque acredita no poder do enredo e nas interlocuções viscerais e cruentas. A abordagem, por sinal, emana uma racionalidade impressionante. Em momento algum cede à tentação do puro dramalhão ou da pieguice. Os diálogos são expelidos com intenções, subtextos e camadas sobrepostas. Os personagens, que circulam descalços, se expressam em tons medidos, difusamente perturbados, quase confusos. Todo o horror espraia-se em um cenário, assinado por Bruno Anselmo, fundado por contêineres que demarcam cômodos, docas e ruas. Um telefone público, possível contato para o departamento de imigração, adquire feições sinistras. Nessa espécie de abatedouro, um não pode se esconder do outro.  

O elenco atua em fina harmonia, graças aos desempenhos precisos e aos sentimentos destilados com limpidez comovente. Num trabalho gestual estudado, os corpos sinalizam as fraturas emocionais e os complexos vínculos afetivos daqueles indivíduos em agitação. Na composição do orgulhoso, intempestivo e encurralado Eddie, sujeito que implode sob a intimidação de desejos que mal consegue compreender, Rodrigo Lombardi desengata performance intensa – nota-se a meticulosa partitura corporal de contorcer e curvar os ombros em situações-limites. Uma atribuição difícil porque o personagem tanto se mostra afável quanto assustador, alguém que está perdido muito antes de perder o controle.

Com marcante presença cênica e persuasão, Sérgio Mamberti habita Alfieri, o piedoso advogado que presta auxílio ao protagonista. Exceto duas passagens em que contracena efetivamente com os demais, ele se dirige à plateia como se fosse o coro na tragédia grega, exprimindo ideias e sentimentos gerais. Patricia Pichamone irradia as frustrações da reprimida e envergonhada Beatrice, a companheira que deseja ficar ao lado de seu marido mesmo vendo-o destruir a si próprio e a sua família. Ela imprime rigidez ao papel, potencializando a angústia e a trajetória infeliz da esposa, que por muito tempo tentou ignorar fatos e evidências e agora passou a ser devorada por eles.

As ambiguidades de Catherine, a menina que talvez não perceba o interesse doentio de Eddie por ela, são habilmente capturadas por Gabriella Potye. A atriz expressa a exuberância juvenil e a perplexidade da incipiente adulta, se equilibrando entre a infância que ainda resiste e o despertar da sexualidade. Bernardo Bibancos desembrulha performance desassombrada na criação de Rodolfo, responsável por iluminar a masculinidade ameaçada do estivador. Faz com que o afeto do garoto soe como algo mais vertical do que mera volúpia e descompromisso. Seu irmão mais velho na história, Marco, dono de seu próprio código de honra e de natural força latente, é vivido de forma impulsiva por Antonio Salvador. Embora inocente, é sobre ele que desaguam as consequências do desequilíbrio de Eddie. Gabriel Mello e William Amaral, revezando-se como vizinhos, colegas de trabalho e oficial da imigração, interpretam com segurança e diligência.

Por meio dessa teia asfixiante, aguda e atemporal, Miller despeja um olhar cético ao sonho americano e suas juras de bonança e felicidade. Neste território coexistem homens imperfeitos, moralistas e corretos, dominados mais pelo poder do que pelo amor. Eddie, por exemplo, encampa o típico herói trágico, aquele que não pode mudar sua natureza e é pródigo em fazer escolhas ruins. A impactante e simbólica cena da cadeira retrata de maneira cruel sua impotência moral e viril.    

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )  

(Foto Ale Catan)

 

Avaliação: Ótimo

 

Um Panorama Visto da Ponte

Texto: Arthur Miller

Direção: Zé Henrique de Paula

Elenco: Rodrigo Lombardi, Sérgio Mamberti, Antonio Salvador, Bernardo Bibancos, Gabriel Mello, Gabriella Potye, Patrícia Pichamone e William Amaral.

Estreou: 03/08/2018

Teatro Raul Cortez (Rua Doutor Plínio Barreto, 285, Bela Vista. Fone: 3254-1631). Sexta, 21h30; sábado, 21h; domingo, 18h. Ingresso: R$ 80. Até 30 de setembro. 

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