Teatro: Agosto

A família Weston é um poço de culpas, queixas, tormentos e penitências, nesta obra do dramaturgo americano Tracy Letts. A matriarca, por exemplo, é dona de língua venenosa e não tem medo de ferir quem quer que seja com sua verborragia indomada. As filhas retratam na pele danos emocionais passados e presentes. Neste clã desajustado, o exercício preferido entre os seus membros é a autodestruição. Com o nome em inglês de August: Osage County, estreou em 2007 em Chicago e recebeu na sequência montagem elogiada na Broadway, conquistando inúmeros prêmios importantes. Em 2013 ganhou versão cinematográfica (Álbum de Família), protagonizada por Meryl Streep e Julia Roberts. O título original, aliás, faz referência a um condado ao lado de uma reserva indígena em Oklahoma, entre o Sul e o Meio-Oeste dos Estados Unidos, de planícies áridas e secas, sobretudo no calor de agosto.

Escorada em verdades incômodas, a trama explicita a miséria humana que assola estas figuras disfuncionais. Beverly (Isaac Bernat) foi um poeta de prestígio nos anos 1960 e hoje se entregou ao alcoolismo. Divide a casa escura – por conta da ausência de luz externa - com a esposa, Violet (Guida Vianna), mulher viciada em remédios que luta contra um câncer na boca. Ele acabou de contratar a empregada indígena Johnna (Júlia Schaeffer), a quem a esposa trata com desprezo e preconceito. Certo dia, o marido desaparece e os Weston se veem forçados ao reencontro, o que desdobra uma série de conflitos, escândalos e revelações desagradáveis. Firmada por André Paes Leme, a encenação preserva a dramaturgia sombria do autor, que já teve montado aqui os textos Killer Joe e Bichado.

Com um grupo numeroso em mãos e vários dramas suplementares, como o das filhas em suas incansáveis batalhas para formar famílias platônicas, a direção instaura boa dinâmica e fluidez ao espetáculo. A história foi pensada originalmente para acontecer em um cenário realista, no caso, uma casa assobradada de três andares, cujos cômodos se abrem para a observação da plateia. O formato é descrito na abertura por uma das personagens, para que o espectador imagine o que não será visto. Isso porque, em sua adaptação, Paes Leme e o cenógrafo Carlos Alberto Nunes optaram por uma cenografia de poucos elementos, apenas tapetes e cadeiras que demarcam os ambientes. Cenas e diálogos são alternados e entrecortados, ora falam as pessoas de uma sala ora as de um quarto. O artifício propicia mais agilidade à ação e tonifica os embates. A iluminação de Renato Machado reforça tais ziguezagues. Patrícia Muniz criou figurinos adequados. Ricco Viana assina a trilha sonora, que contribui para ilustrar os climas necessários.

O elenco exibe rendimento homogêneo. Em desempenho visceral, Guida Vianna incorpora a matriarca Violet, fazendo-a com irreverência, ousadia e originalidade. Este crítico assistiu produção em 2008 na Broadway, estrelada pela veterana Estelle Parsons no papel de Violet e, em 2010 em Buenos Aires, outra capitaneada por Norma Aleandro no mesmo papel – é possível afirmar que a atriz brasileira brilha tanto quanto as duas citadas. Letícia Isnard concede veracidade e intensidade à contestadora Bárbara, em processo de divórcio e vivendo relação conturbada com a filha adolescente Jean (Lorena Comparato). Cláudia Ventura interpreta Karen, a noiva iludida ante a possibilidade do terceiro casamento. Marianna Mac Niven dá vida à Ivy, que ainda mora na casa dos pais e planeja fugir para Nova York. Eliane Costa encarna Mattie, que carrega um segredo e mantém vínculo perverso com o próprio filho. Júlia Schaeffer defende a contemplativa forasteira Johnna - por meio dela, Letts aborda a dolorida questão do extermínio indígena na região do Meio-Oeste americano. No elenco masculino, o destaque é Isaac Bernat, em papel duplo (Beverly Weston e Bill, marido de Bárbara). Alexandre Dantas (Steve), Rubens Camelo (Charlie) e Guilherme Siman (Charles Júnior) também apresentam performances satisfatórias.

Por meio da implosão dessa tribo, vitimada por adultério, pedofilia, incesto e discórdias, Letts faz a radiografia do colapso do idealismo americano. Não por acaso, à certa altura, alguém afiança que os Estados Unidos são uma experiência que fracassou. A família Weston poderia muito bem ser a extensão de uma guerra civil. 

(Vinicio Angelici – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto Elisa Mendes)

 

Avaliação: Ótimo  

 

Agosto

Texto: Tracy Letts

Direção: André Paes Leme

Elenco: Guida Vianna, Letícia Isnard, Alexandre Dantas, Claudia Ventura e outros.

Estreou: 06/07/2018

Sesc Consolação (Rua Doutor Vila Nova, 245, Vila Buarque. Fone: 3234-3000). Quinta a sábado, 21h; domingo, 18h. Ingressos: R$ 12 a R$ 40. Até 5 de agosto.

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