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Teatro: Sutura

O dramaturgo escocês Anthony Neilson tem o hábito de criticar o tipo de teatro que captura e expressa tão somente as preocupações estreitas da classe média londrina. Por ser avesso à essa leitura circunscrita da realidade, ele escreve peças que não aliviam a consciência burguesa e desnudam o lado sombrio da natureza humana. Caso típico desta obra, que andou provocando polêmica, mal-estar e foi acusada até de blasfema em algumas cidades onde foi encenada. Não à toa, diga-se, porque expõe assuntos espinhosos como violência sexual e automutilação, além de diálogos como a de um personagem que confessa sentir tesão ao ver mulheres nuas entrando em câmeras de gás em Auschwitz. Tal conteúdo, presumivelmente pesado, é desafiador para encenadores e atores, pelo seu potencial de incomodar plateias mais conservadoras. 

Com direção de César Baptista, e estrelada por Ivo Muller e Anna Cecília Junqueira, a montagem põe em movimento a história de um casal antagônico cujo esporte preferido é intercalar rispidez e afeto em seu casamento. Eles são duas pessoas mergulhadas num esforço comovente para tentar remendar um relacionamento exaurido e doente. Não é atípico, portanto, que Stu e Abby conversem escrevendo um para o outro em bloquinhos de anotação, numa estratégia comum e naturalmente aceita de interlocução. Já os primeiros minutos dão a chave de que os problemas começaram ou apenas continuam. Isso porque ambos estão vivenciando o dilema de manter ou não a gravidez indesejada dela, uma vez que não se enxergam plenamente preparados para botar alguém no mundo. 

Não linear, o texto deixa no ar uma porção de dúvidas sobre o que realmente está acontecendo, especialmente a partir do momento em que a trama evolui enrodilhando episódios de diferentes períodos, em claro desprezo pela cronologia. Logo surge uma espécie de plano paralelo ou fuga da realidade em que ela faz o papel de uma universitária que paga seus estudos trabalhando como garota de programa e ele é um cliente excêntrico cada vez mais abusivo. São passagens que configuram uma dramatização de fantasias sexuais que vai do clichê ao mais ultrajante - o homem gosta, por exemplo, de exibir imagens pornográficas excessivas que garimpou na internet e uma delas é tão repulsiva que repugna a mulher, embora mais adiante ela irá paradoxalmente mudar de opinião. Estas sequências que compõem um mesmo enredo ganham relevância porque projetam as atribulações amorosas do casal e o estado destrutivo em que se encontram. Aos poucos as lacunas são preenchidas, embora ainda subsistam dúvidas se de fato o que testemunhamos é um mero exercício de fetiches ou um faz-de-conta crucial para manter a união matrimonial depois de terem experienciado eventos arrepiantes.  

O diretor optou por aproximar a audiência da ação, o que potencializa a força do espetáculo, ainda que a atmosfera de tensão nem sempre se mantenha incólume. Nada que comprometa, porque a encenação é poderosa o suficiente para contornar eventuais inconsistências. Nota-se rigor no trabalho e a direção estampa habilidade em instaurar uma conexão natural entre temas embaraçosos, a imobilidade cenográfica, a trilha sonora sugestiva, as cenas de erotismo, o apartamento claustrofóbico e a entrega dos atores. Estes acionam desempenhos convincentes e palpáveis. Anna Cecília Junqueira desenha uma linha verossímel entre a jovem impetuosa e pragmática. Sua Abby é uma figura que parece sentir necessidade de se aviltar, principalmente quando se impõe um ato de autoflagelação, símbolo do trauma de uma perda. Na composição do misógino Stu, o ator Ivo Muller desdobra um homem em rota de definhamento emocional, que extrai doses de perversidade ao imergir em ficções sexuais.

Neilson disponibiliza um olhar frio e autêntico sobre o terreno escorregadio do amor ou, melhor, de como esse sentimento pode ser corroído pela desconfiança e por uma codependência patológica. Há limitações na dramaturgia, como a insuficiência de informações relacionadas ao filho e a falta de uma discussão transparente sobre o sofrimento dividido. Imperfeições que não prejudicam uma narrativa que se transforma em um ciclo inesgotável de culpa, raiva, penitência e luto. Todo esse processo de expiação é acompanhado por um público investido no papel de voyeur, sequioso por saber o que teria sucedido com a criança. Neste drama enevoado e cru, os personagens sabotam o próprio convívio, não sabem viver sem a presença do companheiro e sentem sérias dificuldades em lidar com si mesmos.   

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )  

(Foto Bruno Favery)

 

Avaliação: Bom

 

Sutura

Autor: Anthony Neilson

Direção: César Baptista

Elenco: Anna Cecília Junqueira e Ivo Muller

Estreou: 24/04/2018

Oficina Cultural Oswald de Andrade (Rua Três Rios, 363, Bom Retiro. Fone: 3221-5558). Quinta e sexta, 20h; sábado, 18h. Grátis. Até 25 de maio.

 

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