Teatro: A Ira de Narciso

Cheia de camadas e significados, a peça do dramaturgo franco-uruguaio Sérgio Blanco gera perguntas e dúvidas e desperta infinitas conjecturas e elucubrações. Por conta de seu enredo ambíguo, permite e convida o espectador a tecer nexos e associações, num exercício complicado de dissociar realidade e ficção. Estrelado por Gilberto Gawronski, com direção de Yara de Novaes, o espetáculo insere o público numa história de suspense e mistério, que combina experiências pessoais vivenciadas pelo autor com uma série de situações fictícias. O resultado é ao mesmo tempo instigante e poético. Logo no início, embalado por canções de Roberto Carlos, o ator lê e-mail de Blanco afirmando que só o brasileiro, a quem havia conhecido anos antes num festival de teatro, poderia interpretar o texto. Mentira ou verdade? é a incerteza que sitia e desconcerta a audiência. 

A obra é concebida em torno de um personagem que é o próprio Sérgio Blanco representado por Gawronski. Trata-se de autoficção, gênero literário emergido nos anos 1970 que articula contraditoriamente as categorias autobiografia e ficção – ou seja, autor, personagem e narrador constituem a mesma pessoa. No enredo, o dramaturgo está em Liubliana, convidado para proferir uma palestra sobre O Olhar Poético em Narciso: a Transformação do Real. Desde sua chegada à capital da Eslovênia, ele envia uma série de mensagens para o seu amigo ator, que se encontra no Brasil. Em narrativa nada óbvia e com torções surpreendentes, ele se maravilha com a cidade e descreve, por exemplo, como conheceu e se envolveu sexualmente com um jovem local, com quem se encontra no hotel e no parque. Conta também da preparação da conferência. E menciona, perplexo e abalado, um conjunto de manchas de sangue seco que descobriu no carpete e nas paredes da suíte onde está hospedado, impossíveis de limpar. 

Conforme avança, o espetáculo desembrulha pilhas de informações e abre-se para uma diversidade de vozes e personagens, como o suspeitoso amante, o investigador aposentado, a mãe, os acadêmicos, o diretor do hotel. Aos poucos, a ação adquire feições de thriller policial e quebra-cabeças, com a eclosão de detalhes sinistros. O resultado se revela desconcertante porque não sabemos se os fatos retratados são ou não fiéis e confiáveis. A intenção de borrar o real e o ficcional é notória. Nesse sentido, a figura mitológica de Narciso funciona o tempo todo na montagem como uma metáfora para o olhar do artista – aquele que não escreve/cria para si mesmo porque se ama, mas porque precisa ser amado. Um pensamento que detona meditação preciosa sobre o papel e o lugar do criador e do próprio teatro.

Yara de Novaes faz a encenação escorrer envolvente, obtendo equilíbrio entre ritmo e cadência. A direção não cede à gratuidade e supera com habilidade quaisquer riscos de monotonia, cansaço e aridez. Alcança facilmente o propósito de transmitir intacto o espírito do texto e dá liberdade para o intérprete se movimentar à vontade pelo ambiente cênico. Na cenografia de André Cortez, estruturas sustentam caixas de som que servem tanto como armários para guardar impressos, como frigobar, de onde saem latinhas de refrigerantes e bebidas alcoólicas, e até receptáculo de irradiação de luz. Em uma impressionante alegoria, o protagonista chega a afagar o fóssil diminuto de um mamute.

Uma das razões de a encenação preservar o nível de fascínio e atenção deve-se ao trabalho sensível, interativo e afiado de Gawronski. Seu desempenho meticuloso capta e exprime com sutileza todas as implicações da dramaturgia. De maneira desembaraçada, ele consegue criar climas emocionais intercalados com momentos de luxúria em companhia do amante e passagens irônicas, traduzidas nos encontros com os acadêmicos europeus, intelectuais que alfineta por serem indiferentes ao avanço da extrema-direita e ao drama vivido pelos refugiados africanos. No palco, o ator divide a cena com Murilo Basso, seu duplo, cuja presença existe para potencializar conceitos e imagens. Intenso e provocante, o texto passeia por temas tocantes como o isolamento social, sexualidade, morte, o intrincado labirinto do eu. Ao cabo, Blanco observa o homem contemporâneo e sua inquieta relação com o mundo insólito que habita.

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

(Foto Celso Curi)

 

Avaliação: Ótimo

 

A Ira de Narciso

Texto: Sergio Blanco

Direção: Yara de Novaes                                                                                                      

Elenco: Gilberto Gawronski e Murilo Basso

Estreou: 12/04/2018                                                                                                                 

Sesc Pinheiros - Auditório 3º andar (Rua Paes Leme, 195, Pinheiros. Fone: 3095-9400). Quinta a sábado, 20h30. Ingresso: R$ 25. Até 12 de maio.

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