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Teatro: Diálogo Noturno com um Homem Vil

Um escritor está em sua casa e pede calmamente que o intruso entre. O anfitrião já sabia que mais cedo ou mais tarde o tal visitante bateria à sua porta. O sujeito aguardado é um executor do Estado, uma espécie de burocrata da morte, que aporta ali com a incumbência de assassiná-lo. A partir desse encontro singular noturno, os dois passam a entabular diálogos vivos e vigorosos, saturado de intenções e desejos. Curiosamente, as palavras que ambos trocam são simples e sem afetação, que traduzem sentimentos como humildade, resignação e compreensão. No entanto, o assunto de fundo é terrível. Eles tratam da pena capital em um mundo que solapa a justiça, artistas vão parar na prisão, têm sua criatividade bloqueada, são asfixiados economicamente ou simplesmente eliminados. Escrito em 1953 para a rádio, o texto do dramaturgo suíço Friedrich Durrenmatt é explosivo e recebeu versão eficiente e adequada dirigida por Roberto Lage, que inteligentemente foi reverente à obra original. 

Sem maniqueísmos, o drama funciona como uma parábola sinistra, na qual um julgamento injusto e incompreensível, como o que enredou o personagem Joseph K. em O Processo, de Franz Kafka, transcorre com o único propósito de silenciar uma presumível sublevação. Afinal, sabe-se, os estados totalitários não costumam tolerar gente que dissemina ideias tidas como revolucionárias. É o caso desse amante das letras, um ativista que se tornou figura perigosa para o sistema por defender a liberdade artística e o livre exercício da expressão. Como consequência dessa conduta que afrontou o poder, ele caiu em desgraça e acabou sendo desdenhado até pelos amigos. Durante o embate, o algoz invoca suas razões para perpetrar o ato extremo, descreve as várias maneiras como mata e as diferentes atitudes assumidas por aqueles que sucumbiram sob sua faca. Alguns morrem com naturalidade e não se rebelam, crentes de que seus ideais são maiores e irão perdurar. Por isso o carrasco avança com desprezo e repulsa sobre aqueles que não se revoltaram contra o destino fatal.

Tomado por violência emocional, o espectador é instigado a entrar num jogo pesado de culpa e responsabilidade, que começa um tanto leve e segue o itinerário da miséria humana. A direção mantém o espetáculo na exata atmosfera de suspense e tensão. Evita que o excesso de falas e a pouca ação física atropelem o ritmo e faça a encenação despencar na monotonia. Porque parece que nada acontece em uma produção que expõe discussão espessa e filosófica sobre o medo da opinião, do pensamento e a arte de morrer em nome de uma causa. Lage realiza uma mise-en-scène sóbria, que valoriza a verdade interior, dá nitidez aos problemas e clareza na hora de resolvê-los. Em momento algum o interesse do público esmorece.

A entrega carnal dos atores dilui de certa forma a rigidez dessas criaturas. Na pele do verdugo, Celso Frateschi impressiona por meio de uma performance sólida e potente, concedendo expressões sutis e nervosas ao assassino, um fulano que acredita piamente na importância de sua missão. Num desempenho com espaço para crescer mais em densidade, um contido Aílton Graça incorpora o intelectual acuado. O ator escapa de cair no clichê da vítima piedosa e indulgente e consegue transmitir a lucidez e a tragicidade de quem sabe que sua vida corre por um fio. 

Em pouco menos de uma hora, a plateia acompanha uma meditação ferrenha sobre os mecanismos da violência, igual em todos os lugares. Não por acaso o espaço e o lugar da trama são indefinidos. Na austera cenografia, de Sylvia Moreira, uma oportuna foto da vereadora assassinada Marielle Franco estampa um porta-retratos. Ao fundo do palco se destaca uma reprodução da obra Relatividade, do polêmico artista holandês Maurits Cornelis Escher (1898-1972). Sugestiva alegoria, a litografia subverte a certeza da realidade única – habitantes caminham lado a lado utilizando escadas de maneira oposta, sem contato um com o outro, como se habitassem mundos distintos, apesar da proximidade.  

A montagem ilumina o olhar pessimista e amargo que o dramaturgo tem da natureza humana. Aqui, os personagens não são psicologicamente profundos, mas a aparente superficialidade é explorada com argúcia. Eles valem pela função que assumem dentro do contexto e não por suas personalidades. Durrematt é fascinado pelo tema da justiça – o conceito é visto tanto pela ótica moral quanto pelo seu sentido jurídico. Em A Visita da Velha Senhora, sua obra-prima, um indivíduo condenado pela sociedade aceita a sina e entrega-se ao sacrifício. Parece que o autor aposta na redenção de quem se conforma ao papel de mártir. É a força de um fado que se cumpre. Há uma frase naquela peça que facilmente caberia nesta. Um professor diz ao homem prestes a morrer: “Também para nós chegará uma velha senhora e então se passará conosco o que agora se passa com o senhor”.   

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )  

(Foto João Caldas)

 

Avaliação: Ótimo

 

Diálogo Noturno Com um Homem Vil

Texto: Friedrich Durrenmatt

Direção: Roberto Lage

Elenco: Celso Frateschi e Aílton Graça

Estreou: 16/03/2018

Sesc Ipiranga (Rua Bom Pastor, 822, Ipiranga. Fone: 3340-2004). Sexta e sábado, 21h; domingo, 18h. Ingresso: R$ 30. Até 22 de abril

 

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