EDITOR: Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

 

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Teatro: Love Love Love

Henry está em seu pequeno apartamento londrino, aguardando a chegada de sua recente namorada, e pede para o irmão mais novo, Kenneth, que deixe a sala para não estragar o momento íntimo. Sandra aparece e começa a flertar com o caçula, com quem logo se identifica. Não é por mero acaso que a peça começa embalada em uma traição. Inédito no Brasil, o texto do dramaturgo inglês Mike Bartlett (Contrações)é uma sátira mordaz à Geração Baby Boomer, que nasceu após a Segunda Guerra Mundial, alcançou a idade universitária em plena ebulição da década de 1960 e cresceu acreditando ser o motor que iria mudar o planeta. Com direção de Eric Lenate, a montagem leva a assinatura do inquieto Grupo 3 de Teatro, de trabalhos elogiados como A Serpente e O Amor e Outros Estranhos Rumores.  

Ambientado em 1967, no dia em que a tevê transmitia ao vivo o hit All You Need Is Love, dos Beatles, o primeiro dos três atos flagra a gestação da rebeldia juvenil. Já aliciado pelo establishment, Henry, 23, tem trabalho fixo, porém enfadonho. Quatro anos mais jovem, Kenneth é um estudante com bolsa de estudo que nunca termina tarefas prosaicas e necessárias, como fazer compras e faxinar o local em que vive. O atrito entre eles é visível, reforçado pela presença incendiária da chapada Sandra, 19, também caloura universitária, uma predadora sexual que age sem se importar com as consequências.

A trama salta para 1990. Os hedonistas Kenneth e Sandra estão casados, residem em uma atraente casa no subúrbio e são pais negligentes de dois adolescentes, a desajeitada Rose, 16, e o sem noção Jamie, 14. Em que pese a cômoda situação econômica, inexiste unidade familiar e a comunicação interpessoal é um fracasso. Sinal de que o casamento desmorona, ambos mantêm casos extraconjugais e decidem se separar, justamente na noite de aniversário da garota.

2011. Envolvidos em outros relacionamentos, os sexagenários Kenneth e Sandra são amigos, vivem bem de suas confortáveis pensões e ainda creem preservar a chama revolucionária do passado. Rose não vingou como promissora violinista e Jamie tornou-se um nerd obcecado por videogame. Os filhos, vítimas da recessão de 2008, mal conseguem se sustentar. Em uma passagem perturbadora, a quase quarentona Rose acusa a geração dos pais pelo seu fracasso pessoal, por terem elegido políticos como Margareth Thatcher, fechado os olhos para a destruição dos sindicatos e apoiado a redução de impostos.

A crítica do dramaturgo à trajetória dos baby boomer é inclemente. Ele insinua que muitos daqueles que adotaram o sonho dos anos 1960 envelheceram como indivíduos autoindulgentes, presunçosos e egoístas, após terem surfado a onda de prosperidade da década de oitenta. Ou seja, eles migraram da contracultura para venturosos exemplares da classe média alta. Aquela geração que projetava transformações radicais, era afeita ao amor livre e consumidora de álcool e maconha, não mudou o mundo, mas o comprou, como vomita Rose durante a reunião familiar.

Eric Lenate realça a frieza e insensibilidade deliberadas desses protótipos monstruosos, instaurando marcas eficientes que impulsionam ao grau máximo os embates e fricções. Os saltos no tempo acontecem de forma natural, com clara opção brechtiana no desenho de cena. O diretor não camufla o trabalho de contrarregragem, institui troca de figurinos e perucas diante da plateia a deixa os atores por vezes no palco, mesmo quando fora da ação. A cenografia (André Cortez), os figurinos (Fábio Namatame) e a iluminação (Gabriel Fontes e André Prado) contribuem para uma encenação que desliza por pouco mais de duas horas sem fatigar o público.

O elenco infla caracterizações incisivas, energizando os diálogos agudos e o peso emocional das várias situações expostas. A destreza das atuações facilita a proximidade com o cotidiano dessa família disfuncional. Yara de Novaes (Sandra nas fases adulta e madura) se movimenta com fulgor e vivacidade na composição de uma mulher desagradável e cheia de desdém, que se mostra totalmente alheia aos sentimentos dos outros. Sua performance infunde alma e personalidade à uma figura que ajudou a destroçar seu casamento e agiu de forma tóxica com os filhos. No mesmo diapasão sublime, Débora Falabella encarna uma Sandra flutuante e subversiva na primeira parte e, nas sequências seguintes, uma Rose que parece um baú de misérias e angústias. Um desempenho contagiado de potência e expressões humanas, que dá efetividade a uma jovem que tentou o suicídio em resposta aos pais e berra sua indignação e fratura existencial. 

Augusto Madeira cria Kenneth em sua versão adulta com segurança e virtuosismo. Ele é convincente na hora de incorporar um tipo que evita sempre a responsabilidade, revela-se gentil apenas na aparência e derrete-se em covardia. Também dividido em dois papéis (Kenneth na adolescência e o filho Jamie), Alexandre Cioletti exala espontaneidade, trafegando da atitude descontraída e imprudente da juventude ao perfil desajustado e apático da maturidade – possivelmente Jamie é a principal vítima desse núcleo familiar em frangalhos. Centrado em um personagem menos desenvolvido, Mateus Monteiro concede vida ao tímido, levemente agressivo e bom perdedor Henry. Espertamente passa ao largo de uma presumível caricatura.        

Nesta obra sombria, o espectador espreita a tragédia a cada minuto. A dramaturgia não chega a parir uma discussão densa sobre a degeneração dos valores e ideais ao longo dos tempos de uma gente no fundo cínica. Mas o autor cutuca o comportamento dessa geração e seu notável talento para queimar a mensagem do título, extraída da famosa letra da canção dos Beatles. Eles apregoaram a paz e o amor sem posse, controle ou nome, mas se deixaram seduzir pela revolução tecnológica e o status quo. Venderam seus valores a preço de banana e hoje vivem enclausurados em seus casulos impenetráveis. Atrofiados emocionalmente, ressentidos e depenados pela realidade brutal da crise, Rose e Jamie personificam a Geração X, a que sucedeu a dos pais e contrária à filosofia hippie. Descontrolada, Rose chega a reivindicar o direito a um imóvel, quer tenha ou não razão ao implorá-lo. Em um dos momentos mais deploráveis, Kenneth e Sandra dançam como se quisessem deixar de lembrar de seus demônios interiores. Dersfecho amargo – talvez um alerta? - para quem um dia acreditou em promessas de transformações políticas, sociais e comportamentais e agora não passam de seres moralmente miseráveis.

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto Leekyung Kim )

 

Avaliação: Ótimo     

 

Love Love Love

Texto: Mike Bartlett

Direção: Eric Lenate

Elenco: Débora Falabella, Yara de Novaes, Augusto Madeira, Alexandre Cioletti e Mateus Monteiro

Estreou: 23/03/2018

Teatro Vivo (Avenida Dr. Chucri Zaidan, 2.460, Morumbi. Fone: 3279-1520). Sexta, 20h; sábado, 21h; domingo, 18h. Ingressos: R$ 50 e R$ 60. Até 27 de maio. 

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