EDITOR: Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

 

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Teatro: Hollywood

A mítica meca do entretenimento, Hollywood, seria uma cova de depravação e imoralidade, sustentada pelo poder, sucesso e dinheiro. Ao menos é o ponto de vista do dramaturgo americano David Mamet, que desembrulha o raciocínio de que essa fábrica de sonhos se move pela ausência de idealismo, vácuo moral e pela convicção de que a arte pode ser boa para a consciência, mas que um filme jamais deixará de ser uma mercadoria que precisa render lucro, e quanto mais melhor. A indústria cinematográfica produz enredos que efetivamente as pessoas têm necessidade de ver?, é uma das questões embutidas na peça. A montagem da inquieta Cia Teatro Epigenia dispõe o tema no palco, em um momento em que blockbusters se tornam cada vez mais fantasiosos e alienantes. A ironia aqui é o fato de que um texto escrito três décadas atrás continua imune aos efeitos do tempo. 

Dois magnatas de Hollywood, encarnados por Rubens Caribé (Tony Miller) e Iuri Saraiva (Daniel Fox), são amigos de longa data e adoram trocar elogios mútuos, como exemplo de fraternidade. O escorregadio Miller acabou de assumir o posto de diretor de produção de um influente estúdio de cinema e o ansioso produtor Fox desembarcou na sala dele acenando com uma proposta tentadora, capaz de gerar milhões de dólares. No caso, um melodrama de prisão com muito sangue e ação a ser protagonizado por uma grande estrela da tela, que exige uma resposta em até 24 horas sobre a anuência ao projeto para assinar o contrato. A prosa entre estes dois profissionais semeará uma das passagens mais patéticas do espetáculo, quando ambos vomitam piadas machistas e trocadilhos infames e começam a divagar acerca da boa vida que irão desfrutar, acreditam, a partir do presumido estouro desse novo produto de venda. 

Um terceiro personagem, a aparentemente ingênua secretária substituta Karen (Luciana Fávero), surge para modificar o rumo da história e exacerbar um pouco mais o comportamento cínico daqueles seres humanos. Miller recebeu um livro, enviado por um agente ao chefão do estúdio, que ele deveria ler por cortesia de olho numa eventual versão cinematográfica. Trata-se de um conto esotérico sobre o fim do mundo, que ele repassa à funcionária com a incumbência desta de preparar um relatório a respeito. Claro, a estratégia do figurão é levá-la para cama, o que motivou uma aposta com o amigo - é assim que homens do naipe deles costumam lidar com as mulheres que trabalham nesse segmento.    

Estamos diante de um colchão de clichês, porém o autor investe em diálogos pungentes, com torções surpreendentes, humor frenético e tensão cumulativa, especialmente depois de Miller ter sido convertido naquela mesma noite pela retórica de Karen e a tentativa dela de persuadi-lo a encampar primeiro esta ideia e não mais a do projeto do longa-metragem comercial ambientado no presídio. Com nítido entusiasmo, a moça relata o pensamento visionário implícito na obra, cuja adaptação para a telona navegaria na contramão da fórmula padrão de Hollywood. Karen deseja, inclusive, trabalhar nessa produção. 

Embora a assistente seja um papel teoricamente menor, é em torno dela que gira o eixo da trama. Sua conduta é diligentemente disciplinada e convincente. À jato, Miller passa de carreirista empedernido, daqueles que não se acanham de assinar produções ruins desde que estourem na bilheteria, ao de idealista de última hora, disposto a produzir um filme de arte que apaziguará o seu espírito. Se ele e Fox são amigos, também é verdade que são concorrentes num mesmo negócio. Como será preciso definir qual script vingará inicialmente, abre-se uma fissura que impulsionará o drama, detonando um jogo de colisões de forças, discursos destoantes e evidente manipulação. Numa cena de impacto, um irritado Fox só admite sair do escritório após ouvir a resposta de Karen sobre uma dúvida que o incomoda.     

A direção de Gustavo Paso faz a encenação fluir com desenbaraço e interesse, instaurando marcas dinâmicas que dão relevo aos conflitos alavancados. Como os personagens estão em constante procedimentos de interrupção – falas fragmentadas e simultaneidade de vozes -, pausas pontuais foram concebidas para necessários respiros. É um trabalho sóbrio e inteligente, que valoriza a ironia e a mordacidade da dramaturgia. Os atores circulam por um escritório ainda com mobília acondicionada em plástico bolha. Assinada por Paso, a cenografia desse ambiente inacabado funciona como signo da condição emocional e existencial daquelas criaturas em embate. Na cena no apartamento de Miller, a iluminação de Paulo César Medeiros desenha criativamente o espaço, que se transforma em uma espécie de quarto de motel. 

Em desempenho harmonioso, o elenco transmite veracidade à situação. Rubens Caribé vaza humor ao expressar a vaidade de Miller em sua nova função de comando. No entanto, circunstâncias imprevistas forçam o medalhão a uma mudança de atitude, dividido entre os instintos comerciais, ardis sexuais e inseguranças. O ator exibe potência e nuances ao externar a fragilidade e o descaramento de um sujeito que acredita que todos, nesse ofício, agem como verdadeiras prostitutas. No mesmo diapasão febril, Iuri Saraiva alcança expressões sinceras e é eloquente como Fox, o produtor que esperou o bilhete premiado para galgar posições e agora observa o mesmo escoando de seus dedos. Na composição da secretária, Luciana Fávero combina toques de candura, dissimulação e esperteza, humanizando uma figura que fareja oportunidades nessa engrenagem. A personagem chega a se comprazer ao envolver-se nesse jogo frenético de manipulação e arbítrios. O choque entre Karen e Fox é uma das sequências mais vigorosas que o público acompanha. 

Mais do que uma sátira afiada sobre os meandros de Hollywood, aflora um estudo acerca do assédio em um universo sexista, o conceito de arte no mundo de hoje e a transitoriedade da ética nas relações interpressoais. Por meio de diálogos inflamados, o texto transmite a impressão de que a linguagem é apenas um mecanismo de disfarce e não um real instrumento de comunicação.

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

(Foto Gabriela Bilo)

 

Avaliação: Ótimo

 

Hollywood

Texto: David Mamet

Direção: Gustavo Paso

Elenco: Rubens Caribé, Iuri Saraiva e Luciana Fávero.

Estreou: 11/01/2018

Teatro Sesc Pinheiros (Rua Paes Leme, 195, Pinheiros. Fone: 3095-9400). Quinta a sábado, 20h30. Ingresso: R$ 7,50 a R$ 25,00. Até 10 de fevereiro.

 

 

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