Rocky Horror Show

O público não precisa ficar atento ao enredo, procurar consistência no comportamento dos personagens e coerência no desenrolar dos acontecimentos. Mais importante que a trama em si é o retrato que o escritor e ator britânico Richard O’Brien  pincela sobre as obsessões e tendências da época em que esta peculiar obra foi parida. Ela chegou aos palcos em 1973 em Londres e, dois anos depois, ganhou vida na Broadway - na mesma data também foi parar nas telas, fomentando intermináveis legiões de fãs que acorriam às sessões da meia-noite em cinemas decadentes.

O musical oferece ingredientes de sobra para a sua devoção. Há personagens absolutamente bizarros, como um travesti extraterrestre, um colchão de referências aos filmes de baixo orçamento de terror e ficção científica das décadas de 1940 e 1950 (O Dia em que a Terra Parou, por exemplo), um conjunto de figurinos ousados e glamorosos, performances atrevidas, músicas vibrantes, um discurso liberalizante sobre sexo e reflexões oportunas relacionadas à questão de gênero. Este último tema, aliás, que parece nunca sair de moda.  

A atual montagem brasileira é uma versão competente da dupla Charles Moeller (direção) e Cláudio Botelho (adaptação das letras). Não faz feio comparada às outras duas encenações que pontificaram no teatro brasileiro na década de 1970. No Rio de Janeiro, Rubens Corrêa dirigiu um elenco que tinha nomes como Wolf Maia, Lucélia Santos e o cantor Tom Zé. Em São Paulo, o diretor Odavlas Petti trabalhou com Paulo Villaça e Antônio Bivar, entre outros atores.

Com indisfarçada inspiração no clássico do terror gótico Frankenstein, de Mary Shelley, a trama tem início com o puritano casal recém casado Brad (Felipe de Carolis) e Janet (Bruna Guerin) em viagem de lua de mel. Como o carro quebra durante uma noite de temporal, estes típicos representantes da América conservadora, modelos de decência e bons costumes, vão procurar auxílio e acabam parando num castelo medieval kitsch. O inusitado local é habitado por um cientista nada ortodoxo, Dr. Frank-N-Furter (Marcelo Médici), desembarcado diretamente da Galáxia Transylvania.

Ele divide o espaço da fortaleza com outras figuras não menos estranhas e singulares – todos eles, por sinal, símbolos de um tempo em que a repressão sexual começava a perder sentido. Em seu laboratório, o amalucado pesquisador desenvolve um ser humano perfeito para o seu próprio deleite, o tal Rocky do título, um tipo grego atlético com estampa de herói de história em quadrinhos. Uma criatura que usa metade do cérebro de um motociclista viciado em drogas e fã de rock and roll, misteriosamente desaparecido. Como o projeto é bem sucedido, uma festa é organizada com a presença dos novos hóspedes, agora inseridos nos mais desavergonhados prazeres da carne.

Provocativa, um tanto transgressora e divertida, a encenação flui sempre interessante. O trabalho homogêneo e afinado da direção é facilitado pelo vigoroso desempenho da trupe reunida, responsável por dar transparência a uma fauna de tipos tão excêntricos quanto sensuais. Com timing de comédia perfeito, Marcelo Médici transpira carisma na composição do egocêntrico Furter, uma espécie de anti-herói que prega a liberdade sexual. Que desfila pelo ambiente calçando salto alto e vestindo espartilho e sunga. Debochado, o personagem é decalcado de Ziggy Stardust, o andrógino ser de outro mundo que veio a Terra para salvá-la, mítica criação do cantor e compositor inglês David Bowie (1947-2016) que, nos anos setenta, havia se declarado bissexual.

À vontade no corpo da abusada assistente do cientista, com cabelos curtos copiados de Liza Minelli em Cabaret, só que numa roupagem mais burlesca, a atriz Jana Amorim faz de Colúmbia um dínamo em cena. Em bom desempenho, Gottsha encarna a esfarrapada empregada Magenta, que mantém relação incestuosa com Riff Raff, seu extravagante e platinado irmão. Bruna Guerin e Felipe de Carolis exibem sintonia e se ajustam naturalmente aos papéis de mocinha imaculada e rapaz ingênuo. O par protagoniza uma das melhores sequências da montagem, quando são seduzidos em momentos diferentes pelo anfitrião e acabam se rendendo à atmosfera lasciva e luxuriante do lugar. Vale destacar também as atuações de Nicola Lama em dois papéis (entregador e professor Scott), Felipe Mafra (a criatura), Thiago Machado (Riff Raff) e Marcel Octavio (narrador).  Thiago Garça e Vanessa Costa, como fantasmas, completam o grupo.

Na parte técnica, Moeller, que assina os curiosos e exóticos figurinos, conta com vários de seus colaboradores constantes, como Rogério Falcão (cenário), Alonso Barros (coreografia), Rogério Wiltgen (iluminação) e Beto Carramanhos (visagismo). Jorge de Godoy assina a direção musical e regência da banda de cinco músicos, que executa uma trilha sonora que passeia pelo blues e por diversos rocks e seus subgêneros, como o glam rock. São deliciosas e contagiantes as canções Touch-A-Me, Hot Patootie e The Sword of Damocles.

Ninguém se iluda. O espetáculo não se propõe a deflagrar discussões profundas ou defender teses sobre os temas que empunha. O seu valor está em outros aspectos. Sua força reside nesse roteiro cheio de referências à cultura de massas e na maneira cínica com que aborda a sexualidade nos loucos anos 1970. Poucas vezes uma mistura de terror, musical e ficção científica funcionou tão bem. 

(Vinicio Angelici – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto Marcos Mesquita)

 

Avaliação: Bom    

 

Rocky Horror Show

Texto e músicas: Richard O’Brien

Adaptação: Cláudio Botelho 

Direção: Charles Moeller

Elenco: Marcelo Médici, Bruna Guerin, Felipe di Carolis, Thiago Machado e outros.

Estreou: 11/11/2016

Teatro Porto Seguro (Alameda Barão de Piracicaba, 740, Campos Elíseos. Fone: 3226-7300). Sexta e sábado, 21h; domingo, 19h. Ingresso: R$ 50 a R$ 120. Até 11 de dezembro. 

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