EDITOR: Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

 

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Uma Ilíada (RJ)

No palco, poderosos exércitos estão se engalfinhando. Cortantes lanças são disparadas, perfurando corpos. O sangue jorra. Ouvem-se as lamúrias dos derrotados e os urros dos vencedores. Encastelados no Olimpo, deuses espreitam esses homens inebriados pelo ódio e vingança, ora facilitando ora complicando os acontecimentos, sem dissimular suas preferências. O notável é que todo o horror da guerra e da brutalidade é evocado por meio apenas das palavras vocalizadas por um único ator em cena. Inteligente, o texto dos dramaturgos americanos Lisa Peterson e Denis O´Hare é uma adaptação do célebre poema narrativo de Homero sobre a mítica Guerra de Tróia. Ganhou inspirada montagem, com direção e atuação de Bruce Gomlevsky, com passagem por São Paulo e atualmente em temporada carioca.

O foco aqui não é o conflito integral, que se alongou por uma década entre 1300 a.C e 1200 a.C, opondo gregos e troianos, mas apenas algumas semanas do confronto. Os autores substituíram o caráter monumental da obra épica por uma versão mais condensada, em formato de monólogo, porém com o cuidado de preservar a sua essência. A trama ganha sentido e eloqüência pela voz de um poeta misterioso, que afirma ter estado presente em Tróia e testemunhado o evento ao vivo. Trata-se de uma figura ficcional, que tanto pode ter sido um guerreiro, mercenário ou até mesmo Homero. Seja como for, na pele desse arauto ele olha nos olhos da assistência e a conduz com desembaraço a uma expedição pelos campos de batalha. O público imerge em uma conflagração irrompida após a bela Helena, casada com Menelau, rei de Esparta, ter sido raptada por Páris, príncipe de Tróia, estopim da desforra empreendida pelo marido traído.

A pujança do relato se explica pela feliz combinação de uma linguagem casual e espontânea, como a de alguém que conta histórias ao redor de uma fogueira, com o envolvimento intensamente emocional do narrador com os episódios reportados e comentados. O efeito disso é que tanto mortais quanto deuses parecem íntimos da plateia. O enredo ilumina especialmente os guerreiros rivais Aquiles e Heitor. Mas o menestrel dá vida e relevância também a uma série de personagens fantásticos. Como o arrogante líder grego Agamenon, coagido a entregar sua amante para evitar a vingança de Apollo sobre as suas tropas. Pátroclo, o melhor amigo de Aquiles, que morreu em combate contra Heitor, usurpador de sua armadura. Príamo, rei de Troia, em sua obsequiosa jornada para resgatar o corpo do filho assassinado Heitor e garantir um enterro honroso para ele.

Um dos méritos dessa montagem é que ela consegue varrer uma possível poeira acumulada sobre a saga troiana. Mesmo antiga, a história continua empolgante e sedutora. Escorado em desempenho visceral, Gomlevsky exibe ampla gama de emoções e impinge à narrativa uma urgência desesperada. Ao relatar reuniões e discussões, o vai-e-vem das batalhas e duelos, o caráter dos personagens e o contexto histórico da Guerra de Tróia, o ator investe intensidade vocal e física. Em certas passagens, sua voz potente muda de tom, dando lugar a uma fala sem impostação. Salta com agilidade impressionante do protocolo retórico, ao descrever os momentos bélicos, ao registro lírico, ao inventariar as paixões que inflamaram gregos e troianos. Pontualmente sua narração é entrecortada por música sutil e dramática, executada pela contrabaixista Alana Alberg, além de entoar cânticos como se estivesse em transe.

O envolvente espetáculo transcorre em um espaço cênico sem adornos, com bordas enfeitadas por velas. A encenação escoa com fluência, mesmo sem contar com as facilidades da ação dramática. É puro teatro - a iluminação assinada por Elisa Tandeta e o figurino concebido por Carol Lobato contribuem de maneira inteligente para o triunfo. O espectador não familiarizado com os acontecimentos históricos não precisa se inquietar. Ele se conecta naturalmente, porque a adaptação foi construída contemplando referências atuais. No desfecho incômodo, com ares de denúncia, o trovador empilha uma sucessão de massacres e extermínios que infestaram o passado remoto e ainda no presente continuam a devastar a humanidade. É uma maneira de sublinhar a perenidade dos impulsos violentos do homem ao longo de sua existência.

A peça mostra que o preço da raiva pode ceifar vidas, que o custo do orgulho masculino produz destruição, que a sede de sangue faz parte da natureza dos seres humanos. Daí o pesar de saber que entre Tróia e a Síria atual, por exemplo, há mais similaridades no tocante à carnificina humana do que gostaríamos de enxergar. Nessa releitura moderna de um clássico épico e fundamental, por sinal o mais antigo texto literário do Ocidente, o narrador captura e expõe o horror e o heroísmo em uma guerra. Ou melhor, por meio de seus relatos, compreendemos porque o pacifismo é um conceito cada vez mais em desuso.      

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )  

(Foto Dalton Valério)

 

Avaliação: Ótimo

 

Uma Ilíada

Texto: Lisa Peterson e Denis O´Hare

Direção e Atuação: Bruce Gomlevsky

Estreou: 05/11/2015

Teatro Maison de France (Avenida Presidente Antônio Carlos, 58, Centro. Fone: 21. 4003-2330). Sexta e sábado, 21h; domingo, 18h. Ingresso: R$ e R$ 50. Em cartaz por tempo indeterminado. 

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