Acorda pra Cuspir

Na ótica aguda e nada complacente do dramaturgo americano Eric Bogosian, o mundo de hoje é insensato, pratica a hipocrisia religiosa, induz o homem à alienação, tem obsessão pelo dinheiro e cultua as celebridades ao ponto de acompanhá-las avidamente em suas rotinas triviais e vazias. Ele mira sua metralhadora para os oprimidos, o rico arrogante, as filas vips de aeroportos, o guru que carrega no bolso um manual de espiritualidade, o produtor de cinema sem escrúpulos, a exposição artificial de felicidade, em especial nas redes sociais.

Mal começa o espetáculo e somos informados de que existem aqueles que mandam e os que são mandados, os mestres e os escravos, com a ressalva de que não veremos uma palestra motivacional. Parece não haver espaço para o fracasso, insinua a fala inicial. Os temas ruminados no palco, bastante atuais, não emergem como desabafos ou palavras carregadas de resignação. Os assuntos abordados despontam sob a roupagem de comédia, ainda que o humor vazado seja do tipo amargo.

Incisiva e enérgica, a peça recebeu montagem envolvente estrelada por Marcos Veras e dirigida por Daniel Herz. Estruturada em monólogos, conectados entre si, a dramaturgia se desenvolve iluminando personagens arquetípicos, destilando comentários desairosos sobre tendências “modernas” e explorando situações já naturalizadas no cotidiano. Tudo embebido em auto-ironias, porque o autor não se vê à margem da idiotia reinante. A partir do protagonista, um José Silva que poderia ser qualquer um e que vive sendo cobrado para ser um alguém famoso, mesmo que isso custe anular a sua singularidade, Bogosian constrói seu colóquio demolidor.

Em uma viagem aérea, o tal José Silva flerta com uma aeromoça e se entrega às fantasias sexuais. Para dar o bote, convida-a para um concorrido show de Justin Bieber – fina ironia do autor. Dando sequência aos seus devaneios, passa a imaginar a queda do avião em uma montanha rochosa. Ótimo pretexto para salvá-la do acidente e escapar com ela em seus braços em meio às chamas. O ato poderia levá-lo à Hollywood, onde teria sua edificante história transformada em um longa-metragem épico. Ou seja, ele ganharia a chance de assumir o papel de um fugaz herói popular. Que, finalmente, flanaria acima do bem e do mal, amado por milhões de pessoas, sem ser tocado por ninguém. Assim, nunca mais iria se sentir esmagado numa multidão. 

O ator Marcos Veras exerce presença insinuante em cena e sua encorpada atuação captura o olhar da platéia, mesmo nas passagens que dão a impressão de que o material dramático perdeu ossatura e a capacidade de surpreender. Com visíveis recursos técnicos e carisma, ele se desembaraça de uma série de figuras que se amontoam no enredo. Ele personifica, por exemplo, um satanás que acena com um monte de tentações difíceis de recusar. Dá vida a um executivo do cinema disposto a tudo para estourar na bilheteria, encarna rapidamente um tipo espiritualista para quem alienação nada mais é do que falta de dinheiro, vive um Cristo que questiona amargamente o pai – “se Deus fez tudo isso com seu único filho, você acha que ele vai esquentar a cabeça com a merda anônima de sua vida? Duvido mesmo”. Ele interpreta ainda um marido que passa mais tempo distante do que junto da família e incorpora um apressado homem de negócios que lamenta conviver com gente estúpida, hipócrita e descerebrada. Finalmente, zomba de si mesmo em um teste de ator, quando foi encorajado a interpretar de forma “muito engraçada e pouco intensa.”

Por meio dessas criaturas, o dramaturgo lança seus dardos. Entre outros alvos, critica a fé, encarada como paliativo enganoso para o bem-estar e conformismo, e fustiga a figura de Deus, uma entidade que estaria pouco se lixando para a humanidade. Muitos podem entender que a obra patina por vezes em certa monotonia, que o bombardeio eventualmente se revela desfocado, mas a direção de Daniel Herz contorna tais barreiras com habilidade. Sua direção é serena, transcorre com naturalidade, valoriza um texto falado em primeira pessoa. O espaço cênico é povoado por bonecos que “interagem” com o intérprete, fornecendo dinamismo e potência à ação.  

Em tom ácido, a comédia disponibiliza retratos perturbadores e farristas de personagens à deriva. Promove o desfile desses seres que traduzem alguns aspectos abjetos da natureza humana. Ao mesmo tempo em que atrai o expectador para a comicidade explícita dos eventos, a peça o atiça com um humor nem um pouco confortável. Afinal, vivemos uma cultura que não costuma diferenciar uma celebridade de um deserto. Que prega que o minuto menos importante da vida de um famoso será sempre mais significativo se comparado ao momento mais relevante de um anônimo qualquer. Em uma das passagens da montagem, o personagem lasca: “Se vocês pensam que na nossa civilização subsiste algum nível de compaixão ou alguma capacidade de se colocar no lugar do outro, eu tenho uma grande novidade para contar: isso não existe”. De maneira diagonal, Bogosian ridiculariza também a estética do stand-up. Hoje, um artista na frente de uma câmera ou portando um microfone, não importa se brada um discurso consistente ou não passa de um blefe, vira imediatamente objeto de culto e mina de sabedoria.

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )  

(Foto Divulgação)

 

Avaliação: Ótimo 

 

Acorda pra Cuspir

Texto: Eric Bogosian

Direção: Daniel Herz

Elenco: Marcos Veras

Estreou: 11/05/2016

Teatro Nair Bello (Rua Frei Caneca, 569, Shopping Frei Caneca, Consolação. Fone: 3472-2414). Sexta, 21h30; sábado, 21h; domingo, 18h. Ingresso: R$ 70 e R$ 80. Até 19 de março. 

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