Consertando Frank

Em princípio, o que parece ser uma típica sessão de terapia logo se desfaz. O suposto paciente Frank é, na verdade, um jornalista que finge estar precisando de ajuda porque anda incomodado com sua identidade sexual. Cansado de escrever sobre assuntos desimportantes, ele quer enveredar pela reportagem investigativa. Vislumbra a oportunidade de assinar a matéria da sua vida nesses encontros com o psicólogo Arthur Apsey, conhecido por ter criado um método terapêutico de reversão da homossexualidade. Quem persuadiu o repórter a assumir o disfarce é o seu namorado, também terapeuta, que o treinou para não levantar suspeitas. Jonathan Baldwin armou a cilada porque está firmemente disposto a destruir a reputação do colega. Ele se tornou ativista gay, tem recebido pacientes egressos do tratamento da nova celebridade e quer expô-lo como charlatão.  

A grande sacada do texto do dramaturgo americano Ken Hanes, em montagem pontiaguda de Marco Antônio Pâmio, não é abordar o tema da restituição da heterossexualidade. Aliás, esta proposta bizarra eventualmente freqüenta a mídia por conta de projetos de leis dessa natureza e do proselitismo em torno da opção sexual empunhado por certas correntes religiosas. O motor da discussão aqui é o poder da manipulação e o seu condão de erodir crenças e minar a confiança pessoal. Tanto que o autor nem se preocupa em fornecer muitas explicações sobre a suposta cura gay.

O texto esfrega um inteligente e instigante jogo mental entre os três personagens, pincelado por tintas dramáticas. A tensão não se origina da ação, mas do conflito de personalidades e dos diálogos. Não demora e o espectador atento irá perceber a lógica cruel que move a história, a de que Frank não passa de um peão nas mãos de dois psicólogos hábeis na arte do controle. Sem habilidade para mentir, indefeso e debilitado emocionalmente, ele começa a desacreditar de si mesmo, questionar o seu projeto profissional, duvidar de seu relacionamento amoroso, balançar sobre sua sexualidade e identidade. “Ele nunca te disse que roubar meus clientes é seu passatempo preferido?”, cutuca Apsey, capaz de explorar sutilmente a confusão do jornalista, cada vez mais sem chão e flagrado em mentiras e enganos. Aos poucos, e na iminência de explodir, o repórter se torna realmente um paciente e não mais alguém disfarçado, implodindo os planos do namorado. Em certo momento, Baldwin alerta Frank que Apsey é tão ardiloso que pode envenenar a sua mente a ponto de induzi-lo até a esquecer que tem um pênis e o que gosta de fazer com ele.

A sugestiva e detalhista direção de Pâmio instaura dinamismo a uma montagem apoiada em palavras e não na movimentação física. Tudo acontece em apenas dois espaços, o consultório e o quarto do casal. Como as espertas e precisas marcações funcionam plenamente, a coreografia de movimentos soa natural e evita que o espetáculo se torne maçante. O controle de qualidade do diretor é elevado. O trio de atores nunca sai do palco, como previsto no texto, o que adiciona níveis de ansiedade e nervosismo ao enredo. As mudanças de ambiente e do registro de emoções se dão por meio da linguagem corporal, das expressões faciais, de pontuais mexidas nos objetos cênicos. As idas e vindas de um local para outro são executadas com maestria, de modo que uma conversa de Frank e seu namorado, por exemplo, se torne parte do diálogo entre o jornalista e Apsey. Da mesma forma que Baldwin, sem estar fisicamente presente nas sessões, se encontra simbolicamente ali transmitindo instruções ao companheiro ou reagindo frente às maquinações do rival.

O vocabulário estético exercitado acaba sendo um estímulo para o trabalho do elenco, que atua em perfeita harmonia. Henrique Schafer explora seus amplos recursos técnicos, emprestando máscara corrosiva e um incômodo sorriso ao discreto e matreiro terapeuta Apsey. No papel do desorientado Frank, o ator Chico Carvalho é uma fonte de energia no palco. Além de dominar suas cenas, ele projeta um desempenho intenso e permeado de matizes. Rubens Caribé interpreta Baldwin com segurança, dando credibilidade a um personagem vaidoso e hipócrita. Basicamente, a peça desnuda o exercício tirânico da manipulação, escancara a arrogância e a impostura do ser humano e mostra como as identidades são construídas a partir do olhar do outro. O texto sublinha que é pouco sábio subestimar a ascendência das palavras, muitas vezes mais letais que uma terapia de choque.  

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto Heloísa Bortz)

 

Avaliação: Ótimo

 

Consertando Frank

Texto: Ken Hanes

Direção: Marco Antônio Pâmio

Elenco: Henrique Schafer, Rubens Caribé e Chico Carvalho

Estreou: 07/03/2015

Teatro Mube (Rua Alemanha 221, Jardim Europa Fone: 2386-8194). Sábado, 19h; domingo, 18h. Ingresso: R$ 50. Até 13 de março.

 

 

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