Dez Encontros

Fulano dorme com sicrana, que deita com beltrano e assim por diante, até que a última pessoa transa com a primeira, unindo as pontas da ciranda sexual. Cercada de controvérsias em sua estréia em 1921, La Ronde, peça do médico e dramaturgo austríaco Arthur Schnitzler (1862-1931), tecia um retrato cínico do amor como uma corrida de revezamento erótico em uma decadente Viena. À solidão e o vazio dos compromissos amorosos somava-se ainda o tráfego da sífilis entre os parceiros da roda. Não bastasse, ainda vazava um comentário social nada condescendente sobre as parasitárias castas vienenses daquele período.

Se o texto de Schnitzler incomodou o público da ocasião, esta livre versão do autor inglês David Hare, escrita em 1997, não tem o condão de provocar polêmica. A releitura perdeu contundência por conta das revoluções sexuais e sociais que varreram especialmente a segunda metade do século passado. Mesmo com a atualização de alguns personagens - o soldado virou motorista de táxi, por exemplo –, a manutenção de parte dos diálogos originais e a adição de novas falas, Hare trava na dificuldade de transcender a dinâmica dos novos tempos. Soa até incomum quando alguém, em certa passagem, discursa sobre a existência de dois tipos de mulheres, num rasgo de machismo primário.    

A peça, que recebeu montagem de título dúbio assinada por Isser Korik, dá vida a homens e mulheres que interagem por meio de seus relacionamentos afetivos. Ninguém é fiel. Algumas relações são fugazes, outras estão prosperando ou desmoronando, todas exalam níveis variados de tensão. Os encontros não oferecem grandes surpresas dramáticas, acontecem em diversos lugares e posições e culminam com a percepção de que a satisfação é uma recompensa tão efêmera quanto ilusória - parece ser mais fácil se despir do que se desnudar emocionalmente. Há um toque espirituoso na voz em off que relata a duração de cada ato sexual. Elementar paródia de que o sexo, na hedonista sociedade de hoje, não passaria de uma atividade mecânica e não necessariamente agradável.

Com uma estrutura dramatúrgica rígida, com apenas dois atores que precisam dar conta de todos os personagens, a montagem se aprisiona ao fluxo lento e repetitivo do texto. Até porque a ação física é substituída pela overdose de diálogos. Eles e elas conversam bastante e o que dizem têm mais importância do que o que fazem. A direção enfrenta o desafio de lidar com dez quadros completamente diferentes, as trocas necessárias de figurinos e adereços e as mudanças de mobiliário, efetuadas pelos contrarregras em cenas teatralizadas. Muitos ambientes previstos requerem cenografia compatível – um banco na rua, onde uma prostituta aborda um motorista de táxi, o quarto, no qual político e sua esposa discutem a experiência real do casamento, um camarim de teatro, espaço em que a atriz recebe o amante magnata. Trata-se de um conjunto de embaraços e inevitabilidades que acaba por interferir na fluidez da trama, refém de uma espécie de gangorra dramática de permanentes começos e recomeços. O diretor não cruza a linha convencional e opta por respeitar a previsível narrativa do autor.

André Garolli e Tania Khalill exibem entrosamento no palco e incorporam com entusiasmo as múltiplas figuras do jogo. Ambos deslizam confortavelmente a personalidade, o caráter e a dicção de seus personagens. A atriz mostra agilidade, nunca se esbalda no exibicionismo ou revela pruridos por conta dos trajes justíssimos em várias sequências. Projeta veia cômica quando, na pele da modelo, confessa ao amante que não sabe bem o que ele está fazendo para estimulá-la sexualmente. O ator compõe com vivacidade homens pilhados em atitudes insensatas. Um deles, um afetado dramaturgo, está aturdido pela descoberta de que sua companheira na cama não tem a menor ideia de quem ele seja. Em outra cena bem humorada, o personagem da vez abusa de comprimidos e chega a alterar o seu comportamento. 

Cotejado ao de Schnitzler, o relativo desbotamento do texto de Hare não elimina o fato de que este funciona como recorte de uma época em que o prazer sexual é quase uma utopia, uma busca fadada à desilusão. Uma caçada sem vitória porque quanto mais sexo se faz, mais sozinho e confuso se fica. Nessa peça, talvez um dos momentos mais nevrálgicos reside num diálogo em que um amante desfia ao outro: "Você acha que qualquer um de nós é sempre uma só pessoa? Com uma pessoa somos uma pessoa, e com outra nós somos outra". Se o espetáculo sopra certa monotonia, vale por iluminar a desumanização que cerca os encontros sexuais em uma sociedade que transformou a intimidade física em mercadoria de consumo. Aqui, mais do que exalar poder, o sexo indica fragilidade.

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto Divulgação)

 

Avaliação: Bom

 

Dez Encontros

Texto: David Hare

Direção: Isser Korik

Elenco: André Garolli e Tania Khalill

Estreou: 09/01/2015

Teatro Folha (Pátio Higienópolis. Avenida Higienópolis, 618, Higienópolis. Fone: 3823-2323). Quarta e quinta, 21h. Ingresso: R$ 20. Em cartaz até 31 de março.   

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