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Teatro: Once - o Musical

Aparentemente simples, o enredo apresenta duas pessoas emocionalmente desestabilizadas, agarradas uma à outra como náufragas. O dramaturgo irlandês Enda Walsh escreveu esta versão para o teatro a partir de um cultuado filme irlandês independente de baixo orçamento com o mesmo título (2007). Personagens secundários foram reforçados para encorpar o contexto, com resultados desiguais, mas o núcleo não se diluiu. O texto, que recebeu montagem bem-sucedida de Zé Henrique de Paula, sem orquestra ou banda porque o elenco inteiro toca todos os instrumentos, instaura não exatamente uma história romântica de desfecho previsível. Trata-se de uma fábula contemporânea sobre perdas, ganhos e impasses no amor, encabeçada por dois indivíduos à deriva em Dublin, que desenvolvem mútua afeição no transcorrer de cinco dias.

Ele é um cantor e compositor irlandês deprimido, prestes a desistir de seu sonho de se tornar músico desde que sua namorada fugiu para Nova York com outro homem. Sua mãe morreu e agora se resigna a trabalhar na oficina de conserto de aspiradores de pó administrada por seu pai. Tocando na rua nas horas vagas por alguns trocados, conhece uma imigrante tcheca pianista, abandonada pelo marido, que reside na cidade com a mãe, a filha pequena e outros três amigos de seu país natal. Como se sensibiliza com as suas composições, ela o encoraja a formar uma banda, gravar um CD demo e usar suas canções para reconquistar sua companheira perdida.   

A trama segue a conexão instantânea que se articula e transcende a esfera da sexualidade entre estas criaturas feridas, castigadas por recentes fracassos do coração e nítidas dificuldades para superá-los e seguir em frente. A consequência é um caso de amor que trilha outra vereda, especialmente a musical, ilustrada por uma partitura de folk-rocks, cantigas folclóricas e baladas dolorosamente bonitas compostas por Glen Hansard e Marketa Irglova - a principal, Me Afogando (tradução nacional para Falling Slowly), foi vencedora do Oscar (2008). A música é o que concede sentido, pulso e ressonância à existência de ambos.

A direção concebeu uma mis-en-scène compacta e imaginativa, encharcada de teatralidade, que apreende a beleza da trilha sonora, a empatia da dupla central e a flama dos coadjuvantes, que abastecem muitas das passagens mais cômicas do espetáculo. A ação acontece em um estilizado pub irlandês, cenário de Zé Henrique de Paula e Guilherme Ramos. Com mínimas movimentações, e o auxílio do design de iluminação de Fran Barros e Tulio Pezzoni, o espaço se transforma em ponto comercial, estúdio de gravação, oficina e apartamentos.  

A experiente Bruna Guerin (com amplo repertório de gestos e expressões) e o estreante Lucas Lima (compreensivelmente mais à vontade tocando e cantando) buscam a emoção sincera que os deixam menos triviais. Eles sustentam figuras críveis, que convidam à fácil identificação. O gentil e reticente rapaz funciona como um contraponto para a garota segura, com sotaque e dona de senso de humor seco. São almas gêmeas espelhando-se, mas sem perspectiva real de um futuro juntos, que em instante algum mascaram suas vulnerabilidades e, a partir do encontro, se percebem mudando a vida um do outro para sempre. Em uma sequência comovente, olham para uma Dublin imaginária e ela diz em tcheco que o ama. Ao pedir para traduzir o que falou, a jovem responde que a frase se referia à possibilidade de chuva naquela noite.   

O febril conjunto de multi-instrumentistas cantores e atores, que permanece sentado na borda do palco quando não está encenando, interpreta os amigos, familiares e os cúmplices musicais. Envergando figurinos típicos, assinados por Theo Cochrane, que contribuem para realçar um forte sentimento de comunidade irlandesa, eles irrompem em cena como se compusessem um coro grego. Destacam-se o pai amoroso dele (Moises Lima), a descolada mãe dela (Andrezza Massei), um gerente de banco infeliz (Thiago Brisolla), um estressado dono de loja (Nando Pradoh), um excêntrico baterista de metal pesado (Abner Depret) e uma assanhada mocinha (Vanessa Espósito). Este bando de desajustados, com graus variados de talento, toca, canta, interpreta e dança exibindo desenvoltura. Todos eles têm seus momentos solo e chegam a emocionar quando executam coletivamente a canção Sol a cappella. A direção musical de Fernanda Maia e as coreografias assinadas por Gabriel Malo se harmonizam sem contratempos.

A montagem é salpicada por certo traço de melancolia e um tipo de comicidade baseada mais nas condições emocionais dos protagonistas do que em afiados duelos verbais. Difere do teatro musical convencional e dos clichês sobre romances entre homens e mulheres juntos até que a morte os separe. Em um nível mais profundo, ele e ela são seres humanos comuns, com vidas normais e questões complicadas para resolver. Suas alegrias, expectativas e infortúnios os tornam semelhantes aos nossos.

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto Adriano Dória)

 

Avaliação: Bom

 

Once – O Musical

Texto: Enda Walsh (baseado no filme escrito e dirigido por John Carney)

Música e Letra: Glen Hansard e Markéta Irglová

Direção: Zé Henrique de Paula

Direção Musical: Fernanda Maia

Estreou: 17/03/2023

Teatro Villa Lobos (Shopping Villa Lobos. Av. Drª Ruth Cardoso, 4.777, Pinheiros). Ingressos: R$ 25 a R$ 200. Sexta, 21h; sábado, 17h e 21h; domingo, 16h e 20h. Em cartaz até 21 de maio.

Sonhos de noviça

Nos três painéis que formam a exposição Samsara dos Sonhos, em cartaz em São Paulo, noviças sentadas nos centros dos quadros, com olhares frágeis e gestos delicados, são representadas em ambientes sombrios, cheios de criaturas fantásticas, envolvidas por uma natureza peculiar com plantas contorcidas. A obra do mineiro Danilo Kato, com um pé no surreal, costuma transitar entre a inocência e a perversidade e pode ser interpretada à luz da psicanálise. Sigmund Freud afirmava que um sonho inocente pode ser uma máscara criada pela consciência para esconder atos considerados pervertidos. Conceitualmente, é assim que o trabalho deste inquieto artista de 22 anos pode ser identificado. O mais perturbador em Kato é que animais que aparentam ser perigosos, como o dragão e a serpente, vistos em algumas de suas criações, talvez sejam os inocentes. Na contramão, por exemplo, destas noviças sensíveis e frágeis que nos transmitem uma tensão. Como existe tanta pureza em um ser? É de se desconfiar. Lembremos mais uma vez do Pai da Psicanálise, quando ele diz que há mais verdade em um ato inconsciente do que em um consciente. A qualquer momento, as jovens que ilustram os quadros podem revelar o que a consciência interdita.

Vida e morte. A principal curiosidade na obra deste artesão (foto ao lado) é que suas principais influências não vieram do lado ocidental, mas do Japão, onde viveu por longo tempo. Ele incorporou fortes referências das artes orientais tradicionais e a estética dos traçados dos mangás, as histórias em quadrinhos no estilo japonês. Não bastasse, apoderou-se ainda de elementos da natureza típicos da cultura oriental – animais, vegetais, astros, terra, água. Então, valendo-se de técnicas do nanquim, grafite e, às vezes, da acrílica e da aquarela, desenvolve criações que embaçam as fronteiras daquilo que é visto como ingênuo e do que é encarado como desregramento. No seu universo artístico, afloram tempestades, desejos incompletos, olhares perdidos e um pouco de veneno, como ele mesmo define. Em sua volta ao País, e agora radicado em São Paulo, Kato foi convidado para desenvolver uma intervenção e compôs estes instigantes painéis - só um deles foi batizado, The Birth (foto de abertura), que, traduzido, significa nascimento ou origem.  Samsara significa um fluxo constante de vida, morte e renascimento presente nas filosofias orientais, como no hinduísmo e budismo. “Decidi denominar assim a exposição porque no Japão esse fluxo infinito de vida e morte simboliza os desejos humanos. Sabe aquele sonho que fracassamos e desistimos, mas que, no fundo, ainda continua existindo e, com o tempo, ressurge e você volta a desejar de novo da mesma maneira? Esse é o tom da mostra. Acho que todo mundo já passou por isso”, explica o jovem autor. Cada painel representa o nascimento, a vida e a morte, a partir de um olhar metafísico. O artista convida o espectador a circular pela sala e apreciar esses três estágios de Samsara. “Se você der uma volta pelo local, acabará voltando para o primeiro desenho, compondo um ciclo infinito”, assinala.

Criaturinha branca. Suas criações, ao longo de sua curta trajetória artística, deixam-se impregnar por essas obsessões. Em As Gêmeas (2010) (foto ao lado), duas moças estão sentadas e viradas em posições opostas. Elas se tocam pelas mãos e nos miram com olhares suspeitos. O vestido de uma das irmãs está caindo. Da outra, o espartilho é que se abre. Ao fundo, há objetos enigmáticos, como espelhos e chaves estruturados em ornamentação barroca e art nouveau. Os motivos florais também denunciam a referência desse estilo estético que influenciou o mundo das artes plásticas. Um ambiente tenebroso foi construído acima das meninas. Nele, existem dois crânios, direcionados para elas. Abaixo, contrapondo a simbologia da morte, há uma criaturinha branca, de aparência inofensiva, situada entre as garotas. A pequena figura também mantém os olhos voltados ao espectador. O perigo, talvez, não resida nos crânios – estes já nos foram revelados enquanto simbologia da morte. O silêncio, a ação congelada das figuras vivas e os olhares apontados em nossa direção parecem aguardar o momento certo para uma reação. O clima taciturno e a inocência chegam a dar medo. O título deste painel nos leva a uma incógnita – as gêmeas não deveriam ser representadas como idênticas? “Justamente pela fuga de sempre serem vistas como iguais, elas começaram a mudar, porém continuam sendo as mesmas irmãs”, explica Kato. Elas não são gêmeas por terem aparências semelhantes, mas pela cumplicidade dos desejos e intenções.

Venenos. Outra obra do artista, também tingida por sensações pervertidas, é Garota Veneno (2011) (foto ao lado). Uma menina se deleita com os fluídos venenosos de uma serpente e de um escorpião. Não são os animais peçonhentos que a dominam. Ao contrário, ambos estão servindo a ela. Kato busca instigar e provocar desconforto, utilizando-se do registro do mal estar puro. “Algumas pessoas já me confessaram que não conseguem olhar direito para aquela imagem enquanto outras enxergam conotações sexuais. Por mais que, às vezes, não se entenda a mensagem de entrega e de devoção ao veneno que ela não consegue se livrar (o amor), se no final consegue despertar reações com algum nível de força, já valeu a pena”, destaca o autor.

A fina barreira entre a inocência e a perversidade foi explorada de outras formas em trabalhos anteriores. Em Despertar (2009) (foto abaixo), mesmo com a utilização de cores, existe uma atmosfera soturna que alude a uma representação típica de bruxismo. Não há a figura da noviça, mas existe a mesma criaturinha presente em As Gêmeas. Essa personagem, também de aspecto nada ofensivo, foi retratada como se estivesse fazendo feitiço em uma caldeira orgânica, que germina vegetais diversos. Nas laterais há dois caldeirões orgânicos com plantas já desenvolvidas.

O que podemos visualizar é que eles têm corações, estão vivos, que geram a energia vital para o nascimento das espécies, como se fossem instrumentos para uma Alquimia Elemental. O sentido é paradoxal. As plantas nascidas dessas duas caldeiras maiores alcançam grandes extensões e aparentam continuar crescendo. A pequena figura fica em uma situação de fragilidade, de opressão diante da natureza monumental que ela ajudou a criar e que agora não a controla mais. Além das obras autorais, Kato também desenvolve ilustrações comerciais para serem aplicadas em produtos de empresas. Essa idéia conhecida como Art Brand faz parte da cultura artística oriental há tempos – ele já realizou projetos para diversas empresas, como Havaianas, Oi Modas e Camiseteria.  A sua linguagem estética se estende ainda aos trabalhos de ilustração comercial, tanto no aspecto formal, com o uso de flores e figuras imaginárias, como conceitualmente, quando sintetiza forças opostas que se complementam na criação de seu mundo metafísico. Kato é um artista provocador.

Ivan Ferrer Maia (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. /Twitter: @ivanfm1)

(Foto de abertura: The Birth)

 

Samsara dos Sonhos

Sesc Santana (Av. Luiz Dumont Villares, 579, Santana. Fone.: 2971-8700). Terça a sábado, das 10h às 20h; domingo, das 10h às 17h. Grátis. Em cartaz até 7 de agosto.

 

O declínio do império dos super-heróis

E se o Homem Aranha, o Hulk, a Mulher Maravilha e o Capitão América se aposentassem de suas atividades heróicas? Como seria a vida na Terceira Idade desses super-heróis, que sempre foram invejados por reunirem virtudes e habilidades extra-humanas? No filme The Dark Knight(2008), Batman pronunciou que ou se morre como herói ou vive-se o bastante para se tornar o vilão. Para o artista plástico e ilustrador italiano Donald Soffritti, o herói pode não se tornar necessariamente um vilão, mas corre o sério risco de virar um tipo gordo, preguiçoso e decadente.

Ele mostrou uma nova realidade existencial dessas figuras especiais no curioso livro Superheroes Decadence (2008), uma galeria de quarenta heróis e vilões do universo norte-americano de quadrinhos retratados em pleno declínio, meio século de vida depois. Visceral, a sua obra demole o mito do modelo de perfeição que cerca os super-heróis. Da mesma forma que qualquer ser humano normal, estes caras que vivem arriscando as suas peles para salvar o mundo também estão sujeitos a enfrentar dificuldades básicas da velhice, cair num estado de ócio, perder a forma atlética, cultivar hábitos não saudáveis e praticar ações patéticas. Há muito mais pontos fracos neles do que é contado e exposto nas histórias. 

A dupla dinâmica (foto à direita), por exemplo, trocou o batmóvel pela batcadeira. Batman, o cadeirante, tornou-se um velho que retrocedeu às brincadeiras infantis. Envolvido por um cobertor e por um gato assustado entre as pernas, o homem-morcego segura um balão infantil do Mickey Mouse e é empurrado sofregamente pelo gorducho Robin, que parece prestes a sofrer um infarto. O Capitão América, rendido ao sedentarismo, trocou o escudo pelos vícios de consumo típicos da sociedade norte-americana, como hambúrger, batata frita, refrigerante cola e até gadgets - percebe-se este último pelo iPhone 3G preso na cintura. De super-herói, só restou o uniforme.

O raivoso Wolverine se entregou ao divã na idade avançada. Em crise existencial, narcísica ou de mimo, acabou por detonar o consultório com as próprias garras. Frustrado, já não consegue cortar tudo a sua volta. O terapeuta arrumou uma saída simplória para bloquear o ataque desse valente baixinho – grudou rolhas nas pontas das suas lâminas. O Homem-Aranha exibe aparência sofrível. Vestindo uma fralda geriátrica, mal consegue permanecer de pé. Em vez de teia, o que consegue lançar é o fluído do soro.

Fluído gasoso. Um dos heróis mais poderosos, Superman (foto à esquerda) foi rendido não à criptonita, mas ao tabaco. O filho de Jor-El está praticamente careca. De super mesmo, só a sua pança larga. A Mulher Maravilha também é uma senhora acima do peso e, como o colega, viciada em tabaco. O laço encantado ficou resumido à coleira, que esgana o pobre cãozinho. O que de maravilha sobrou dela? Talvez a tentativa de um flerte sedutor.

Pobre Demolidor, sua sensitividade já não é a mesma. Está totalmente dependente do cão guia. Do demônio desafiador, sobrou um ser esquelético de pancinha e de boca murcha. Um diabrete frágil. Mais sorte teve o Homem de Ferro, que aparenta estar mais feliz. Tony Stark, o playboy milionário, permanece um bon vivant. Gordo, mas de bem com a vida. Na sua partida de golfe, faz uso do charuto cubano e arrasta uma bateria externa adaptada ao esporte, mesmo que de maneira inconsistente.

Criatura raivosa, o incrível Hulk (foto à direita) tornou-se uma criança dengosa. Basta o mimo de um sorvete para o alter-ego do cientista Bruce Banner tornar-se um bobão de sorriso largo. Já o ex-velocista Flash foi pego de sobressalto. Rastreado por um fluído gasoso, ele utiliza seu poder precário para evitar uma tragédia intestinal. Será que conseguirá chegar a tempo? Soffritti também anunciou o futuro de alguns vilões. Doutor Octopus, desbeiçado, utiliza-se de seus tentáculos para carregar sacolas de supermercado. Ele não está só, serve-se da companhia do cão gordo. Não era exatamente esse o plano de um dos vilões mais famosos da Marvel.

A decadência dos super-heróis norte americanos, apresentado por este artista provocador, encontra pontos de contato no filme Watchmen (2009), dirigido por Zack Snyder. Se Soffritti se vale do humor para estampar a ruína dessas criaturas, o cineasta cria um ambiente melancólico, expondo-os a uma sensação de perda, mesmo que esse malogro não seja claramente identificável. Em ambos os trabalhos, a condição de vida dessa turma chega a ser desprezível.

Ícones orientais. Em contrapartida, a vicissitude heróica foi promovida do lado oriental. Influenciados pela cultura pop estadunidense, quando da ocupação americana no Japão, no final da Segunda Guerra Mundial, muitos artistas japoneses seguiram na contramão de Soffritti. Personagens de mangás e animes ganharam ascensão e status de poderosos do mundo. Manipulam a energia planetária, salvam vidas e ainda sobra tempo para abaixar a tampa do vaso antes da descarga. De estatura baixa ou mediana, usam vestimentas tradicionais, casuais ou com armaduras, cabelos arrepiados e coloridos, têm olhos grandes, narizes e queixos pontiagudos, além de bocas pequenas que se transformam em monstruosas a cada expressão.

São características que definem o estereótipo dos super-heróis japoneses. É o caso do bad boy Yusuke Urameshi, um dos ícones prediletos do público. Trata-se do típico adolescente com hábitos politicamente incorretos, porém de bom coração. Outro destaque é Son Goku (foto à esquerda), conhecido pelo público desde as transmissões de Dragon Ball. Com rabo de macaco e força sobre-humana, tornou-se um super-herói adorado tanto no Japão, com um número incrível de fãs, quanto no Brasil. Também merece destaque o andarilho e retalhador Kenshin Himura. Dono de uma habilidade sobrenatural com a espada, o super-herói utiliza uma lâmina invertida para apenas ferir e não matar o oponente.

Se a promessa de invadir o mundo não foi concretizada pelos vilões da Marvel, com certeza o planeta acabou dominado pelos valentes orientais. Mas como uma moeda de cara e coroa, a queda é a outra face da ascensão. Quando menos se espera, a osteoporose, doença normal dentro do processo de envelhecimento, pode se tornar a maior inimiga dos super-heróis dos mangás e animes.

(Ivan Ferrer Maia – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto inicial: Homem Aranha / copyright Donald Soffritti)

O mestre do ilusionismo

Um homem que sobe a escada eternamente, a água que jorra para cima, pássaros que viram peixes, uma sala na qual o chão parece teto e uma mesa que, na verdade, é uma calçada. Nesta exposição do polêmico artista holandês Maurits Cornelis Escher (1898-1972), em cartaz em São Paulo, a certeza da realidade única é subvertida sem dó. O espectador é pego de sobressalto, no contrapé, propositalmente confundido. Podem realidades diferentes coexistirem? No universo de Escher, sim.

As 95 obras reunidas, entre as mais conhecidas, intrigantes e enigmáticas de seu repertório, incluem gravuras originais, desenhos e fac-símiles. O material exposto faz parte do museu de Haia (Holanda) e a curadoria é assinada por Pieter Tjabbes, expert em artes, professor da Escola de Comunicação e Artes da USP e consultor do Ministério da Cultura. Na mostra, que conta também com atividades interativas, instalação, animações e filme 3D, é possível apreciar as diversas fases do artista – até mesmo desenhos que revelam o seu processo criativo e culminaram, por exemplo, em algumas metamorfoses.

Poucos nomes conseguem atingir um público tão amplo quanto ele. Quem vê a obra desta figura que revolucionou a arte gráfica, se fascina pelos espaços tridimensionais que saltam de superfícies planas e das situações impossíveis. Suas gravuras, por exemplo, ilustram calendários, são reproduzidas em capas de livros, estampam anúncios. “Vejam, eu mostro-vos algo que vocês não consideram possível”, disse, certa vez. De fato, ele utiliza todos os jogos da perspectiva ocidental para criar representações inusitadas, mundos inexistentes e realidades distorcidas, com notável qualidade técnica e estética.

Entre os trabalhos expostos, estão os do período italiano (1922-1935), quando ele lançou mão dos tradicionais elementos da pintura. Nessa fase, os quadros de paisagens naturais e urbanas do sul da Itália e das regiões costeiras mediterrânicas já sinalizam um gosto em trabalhar com espaços e perspectivas que se tornarão mais complexos ao longo de sua trajetória.

Ilusões e distorções. A temporada naquele país, no entanto, foi abruptamente interrompida por conta da política ditatorial de Mussolini, que sufocou a criação do artista. A gota d’água ocorreu quando a escola de seu filho George, de nove anos, obrigou-o a vestir o uniforme Balilla da juventude fascista. A família abandonou o país em 1935, revezando-se por diversas cidades européias. Chegou, inclusive, a viajar na companhia de cargueiros, remunerando-os com os próprios trabalhos gráficos.

Após dois anos de sua partida, suas obras passaram por modificações significativas. É desse período a série de trabalhos com metamorfoses e ilusões de óticas, que integram a coleção em cartaz. A xilogravura Metamorfose I (1937) inicia a fase na qual o artista utiliza elementos rigorosamente geométricos que se transformam em figuras reconhecíveis. Nesta gravura em madeira, há uma modificação gradual de uma cidade para cubos e destes para elementos que resultam em uma imagem chinesa. Além dessa obra, símbolo da fase transitória, estão em exibição outras metamorfoses conhecidas, como Ar e Água (1938) (foto acima) e Circulação (1938).

As ilusões de óticas, por sinal, são uma constante em sua carreira, provocadas pela distorção da perspectiva clássica e por desenhos tridimensionais que parecem surgir de um mundo plano. Na litografia Desenhando-se (1948) (foto ao lado), a mão direita e a mão esquerda foram representadas em volume por meio do jogo de claro-escuro. A destra desenha o punho da camisa esquerda e vice-versa. Ambas fazem parte do mesmo papel, preso na superfície por taxas. Elas foram retratadas cuidadosamente diferentes. Não há começo nem fim, mas um continuum na superfície plana.

Na litografia Relatividade (1953) (foto de abertura), Escher acrescenta um silêncio melancólico no movimento infinito. Habitantes sem face vivem em três superfícies distintas, incapazes de se conjugarem. Eles caminham lado a lado, contudo, utilizam as escadas de maneira oposta. Enquanto um habitante sobe por um lado, o outro desce. Não há contato entre eles, estão em mundos diferentes, apesar de estarem próximos.

Real e imaginário. A partir do século XX, o padrão geométrico transforma-se em verdadeiros fractais, como na xilogravura Cada Vez Menor (1956). Em Répteis (1943) (foto ao lado), a figura de um réptil é reproduzida em cor laranja, branco e preto, que diminui de tamanho conforme se converge ao ponto de fuga. A gravura, no todo, é composta pelo mesmo modelo – o retrato desse animal. É a unidade formando um princípio que lembra os fractais do matemático Mandelbrot.

O artista holandês também criou figuras impossíveis, a partir da concepção do laço de Moebius, outro matemático. Esse laço pode ser cortado em comprimento, sem que se desfaça em dois círculos, e tem apenas um lado com uma borda, formando-se o símbolo do infinito. Um exemplar dessa técnica é a xilogravura Laço de Moebius II (1963), uma trama sem início e final, que serve como superfície para uma formiga transitar de maneira constante.

As suas obras anteriores já manifestavam a concepção de infinito, principalmente em representações de superfícies e de espaços arquitetônicos como, por exemplo, Ascendente e Descendente (1960) (foto ao lado). Essa última litografia simboliza um mosteiro visto de cima, com dois monges - um sobe e o outro desce as escadas. Ao observá-los, veremos que o monge nunca para de subir ou descer. Não há fim. Mas, como isso é possível? O artista utilizou-se da teoria de Penrose para criar um complexo jogo de níveis de planos ascendentes horizontais e verticais.

Escher é a síntese de universos aparentemente opostos. Entre a precisão racional e a sensibilidade criativa. A representação plana e a volumétrica. O mundo real e o imaginário. O espaço e o tempo. O finito e o infinito. Como ele próprio questiona: “Por que o mundo, ao menos o mundo retratado na arte, não pode ser uma combinação de diferentes realidades?”.

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O Mundo Mágico de Escher

Centro Cultural Banco do Brasil (Rua Álvares Penteado, 112, Centro, São Paulo. Fone: 3113-3651). Terça a domingo, das 9h às 20h. Grátis. Até 17 de julho. 

 

Veja animação sobre a obra de Escher:

 

 

O urubu e o corvo

Na obra do artista carioca Oswaldo Goeldi (1895-1961), o mundo que emerge de seus traços oferece uma visão trágica e miserável da condição humana. Trata-se de um retrato avesso da realidade, que encontra eco, por exemplo, no universo extraordinário do escritor norte-americano Edgar Allan Poe (1809-1849), autor de O Corvo. Um dos trechos desse aclamado conto serve à perfeição para descrever a natureza sombria das gravuras e desenhos de Goeldi: “A porta escancaro, acho a noite somente. Somente a noite, e nada mais. Com longo olhar escruto a sombra, que me amedronta, que me assombra”. Com curadoria de Paulo Venâncio Filho, a retrospectiva Oswaldo Goeldi: Sombria Luz, em cartaz no Museu de Arte Moderna de São Paulo, reúne mais de duzentos trabalhos, muitos inéditos ou raramente vistos, desse mestre expressionista de vida reclusa, que não gostava de ser fotografado nem aparecer em público. A mostra abriga ainda uma sala que reproduz o seu atelier no Leblon, com objetos pessoais, cartas, fotografias e uma prensa.

Goeldi transitava na contramão do tropicalismo ufanista defendido pelos contemporâneos modernistas brasileiros. Ao invés de explorar o exotismo e a paisagem colorida tupiniquins, suas xilogravuras e os desenhos a lápis, nanquim ou a carvão retratam as ruas, casarões, caveiras, peixes, cães, gatos, guarda-chuvas, bicicletas e os transeuntes do Rio de Janeiro pelo ângulo da melancolia e da escuridão, típico cenário assustador de Poe. Além da estética lúgubre de ambas as obras, é possível estabelecer outras associações entre eles. Os dois, por exemplo, mantém uma relação forte com aves mórbidas e agourentas. Para Poe, o corvo. Para Goeldi, o urubu. Muitas vezes, tanto um quanto o outro lançam mão do suporte fantástico para representar uma realidade adversa à cordialidade dos moradores da época.

O artista brasileiro chegou a afirmar que o que lhe interessava “eram os aspectos estranhos do Rio suburbano, do Caju, com postes de luz enterrados até a metade na areia, urubu na rua, móveis na calçada, enfim coisas que deixariam besta qualquer europeu recém-chegado. Depois descobri os pescadores e toda madrugada ia para o mercado ver o desembarque do peixe e desenhava sem parar”. Seu mundo, por sinal, não é exclusivamente negro. A cor irá entrar em um determinado momento, utilizando-se de poucos tons, principalmente o vermelho. O recurso funciona para aumentar o destaque ou a significância de algum elemento representado na obra.

Olhos do demônio. Observemos a obra-prima Chuva (1957) (foto de abertura), xilogravura colorida sobre papel japonês. A chuva em si não está em evidência, o que a torna presente é o guarda-chuva em vermelho carregado pelo pedestre solitário que caminha pela via escura e incerta. O tom azul também foi utilizado e contribui para a ambientação chuvosa. O traçado seco e reto do artista põe em relevo a tensão e situações aflitivas, mesmo que no silêncio da noite. A mesma técnica é empregada em Rua Molhada (foto à esquerda), que registra com linhas nervosas imagens de objetos e animais soltos na rua úmida. Não há sol. Não há presença humana, apenas indícios de descasos em relação aos objetos abandonados. Mais ao fundo, em um aparente poste, há um rasgo de cor vermelha perturbador.

A profunda solidão em Goeldi existe até mesmo com a presença de seres. Em uma ilustração sem título (foto à direita), de impacto terrível, o que vemos é a personificação da morte que caminha ao lado da silhueta de um corpo caído ao chão. A profundidade de campo e o contraste do claro e escuro reforçam o isolamento e o sombrio presentes na obra. As palavras de Poe cabem muito bem aqui: “E seus olhos têm toda a dor dos olhos de um demônio que sonha; e a luz da lâmpada que o ilumina, projeta a sua sombra sobre o chão. E minh'alma, daquela sombra que jaz a flutuar no chão, levantar-se-á - nunca mais!”

Não menos desconfortável, em Guerra (1942) um corpo emerge da superfície em situação dramática. A luz de baixo para cima tonifica a expressividade do sujeito que está de costas para os soldados ao fundo. A densidade da ação obriga o observador a     sentir o peso da narrativa conturbadora. A Sonâmbula se encontra em um ambiente escuro, estática, com olhar lateral. A luz em seu corpo contrasta com a obscuridade do local e com o estranho casal na contra luz. No silêncio angustiante, a voz abafada pela escuridão ganha alívio e respiro nos finos sulcos de luz branca e rasgos de cores. Mas não é o suficiente. Tudo está imóvel. O despertar talvez ocorra “nunca mais”, conforme as palavras constantemente pronunciadas pelo corvo de Allan Poe.

(Ivan Ferrer Maia (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )                                                                               

(Foto inicial: Chuva / Divulgação)

 

Oswaldo Goeldi: Sombria Luz

MAM Ibirapuera (Avenida Pedro Álvares Cabral, portão 3, Parque Ibirapuera. Fone: 5085-1300). Terça a domingo, 10h às 17h30. Ingresso: R$ 5,50. Estreou: 15/06/2012. Até 19/08/2012

Menina prodígio

Ela é neta de um dos maiores pintores brasileiros vivos, Mário Gruber, e transpira talento nos palcos e nas telas. A artista plástica e cantora Lorena Hollander é daquelas que vivem intensamente cada minuto da sua existência. Ao longo dos últimos meses ela não parou. Na Europa, por onde bateu pernas a trabalho e a passeio em 2009, chegou a desviar-se do destino Londres por conta de uma coincidência. “Soube que a banda Radiohead, uma das minhas preferidas, ia apresentar-se em Praga e não pensei duas vezes”, lembra ela, que ficou ansiosa por rever o grupo que conhecera durante turnê sul-americana deles em março do ano passado. Na ocasião, um amigo de Buenos Aires a convidou para o show e para uma festa com os músicos em seguida.

 

Com ingressos em mãos, Lorena não só curtiu o Radiohead na capital Tcheca como participou das festas com os cultuados roqueiros. “O vocalista Thom Yorke adora discotecar”, recorda ela, sem esconder a empolgação que sentiu pela oportunidade única e exclusiva. “Escuto a banda desde os 14 anos e desde então virei super fã. Os shows foram lindos e tocantes, me senti privilegiada por tê-los vistos várias vezes em um só ano”. O primo e os amigos que têm na capital inglesa, óbvio, compreenderam a situação e esperaram mais alguns dias pela sua chegada.

 

Em Londres, Lorena visitou muitos museus e galerias para alavancar espaços para expor seus trabalhos. Em novembro, chegou a mostrar sua arte em Paris, no Salon D’Automne. “Foi muito legal participar deste salão, que existe desde 1903 e foi fundado por artistas como Matisse”, comemora. Ela marcou presença com duas obras inéditas de uma nova série intitulada UrbanosSoma. Fotos desse mesmo trabalho foram exibidas também em duas exposições que aconteceram em São Paulo, em outubro passado: 40º Chapel Art Show e Giclées ArtPhoto - Off Bienal.

 

Infância no atelier. Lorena Hollander, diga-se, não é um nome ainda popular, mas tem pedigree familiar. Ela é neta do produtivo pintor santista Mário Gruber, pouco mais de 80 anos, um dos mais importantes artistas brasileiros vivos – é de sua autoria o painel pintado na estação Sé do Metrô, Como sempre esteve, o amanhã está em nossas mãos, uma reflexão sobre a nossa origem e história, no qual são retratados o branco, o negro, o imigrante e o índio. Não bastasse o verniz do avô, o pai dela também é artista plástico, Gregório Gruber, outro nome de destaque no ambiente das artes.

 

A vida da menina de 25 anos mescla, com equilíbrio e muita criatividade, arte ficcional e realista, sonho e fantasia, rigor e inspiração. Elementos com os quais Lorena convive desde sempre. “Não houve um único momento em minha vida no qual a arte não estivesse presente de alguma maneira. É um diferencial para mim”. Como sempre viveu como artista e trabalhava diariamente, Gregório tinha o hábito de estimular os filhos (Lorena e o irmão Lúcio Tamino Gruber, ótimo aquarelista) a criar.

 

“A gente vivia no atelier e ele nos distraía ensinando-nos a pintar, a modelar a argila, nos ajudava a solfejar ou a tocar algum instrumento”, recorda-se. Era tal o entusiasmo do pai ao falar de arte, que Loreninha chegava a se confundir: “Durante muito tempo eu achava que o tal Da Vinci, de quem ele tanto falava, era amigo dele, tamanha era a intimidade com que ele falava do pintor”, diverte-se. A criação artística foi, para ela, como a respiração, algo vital. E o resultado vê-se claramente, agora.

 

Caixinha de surpresas. O talento de Lorena para a música, por sua vez, floresceu quando ela estudou num renomado conservatório de música. Hoje é líder da banda Diafanes, na qual é cantora, “tenho voz aguda de soprano ligeiro”, compositora, performer, letrista e, claro, artista plástica. A capa e o encarte de Obsviously Clear, lançado em 2008 via internet, é dela. A idéia do clipe de Unity (*)também. No vídeo, ela explora a arte pictórica combinada com o rock-and-roll, numa dinâmica fascinante. Nas letras, em geral, Lorena fala de situações intimistas, mas com toques sociológicos e filosóficos. São assuntos que vão de transas, aquecimento global à agitação da metrópole. De uma forma que quase sempre remeta à idéia de translucidez. Não à toa, o nome da banda significa transparência.

 

Com uma nova formação, a banda aterrissa neste mês neste mês no National Cherry Blossom Festival, em Washington DC, em evento que celebra o florescimento das cerejeiras japonesas naquela cidade. É a terceira vez que a banda pisará em solo norte-americano. Além de composições próprias, o Diafanes interpretará a tradicional música japonesa Sakura,Sakura em uma versão roqueira.

 

Nesta nova fase,o grupo está preparando repertório inédito. As composições serão gravadas em elepê e Mp3, conjuntamente com um livro de imagens que reunirá a série das suas novas obras. Para quem estranhou a ressurreição do vinil, a menina justifica: “O formato CD já parece meio ultrapassado, gostaríamos de lançar o trabalho de forma diferenciada”. 

 

No palco, a mistura de rock, música erudita, árabe e japonesa proporciona uma caixinha de surpresas. Seja nos momentos em que Lorena toca seu koto, uma harpa tradicional japonesa, seja na performance em si. Ao vivo, Lorena esbanja sensualidade, sedução, feminilidade. Principalmente quando executa a dança do ventre (arte que também domina com destreza), equilibrando uma espada nos quadris. A cena, acredite, arranca aplausos e suspiros incontidos da platéia. Quem ainda não viu, verá. O futuro de Lorena, que também se dedica à pintura (paisagens do Rio de Janeiro, São Paulo e cenas de dança do ventre), à fotografia e ainda desenvolve interessante trabalho em arte digital, está apenas começando.

 (Paulo Klein – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

 

 

Anote aí:

Site da banda: www.diafanes.com.br

 

Site de Lorena Hollander: www.lorenahollander.com

 

*Assista ao clipe da música Unity

 

 


 


 

 

 

 

 

 

 

 

Vísceras, Piu-Piu, histórias e sombras

Uma vaca cortada ao meio, um personagem de animação com a língua para fora, vídeos cujos nomes fazem referência ao músculo que controla o movimento dos testículos. O olhar estético acomodado poderá sofrer um sobressalto ao se deparar com a produção subversiva de 51 artistas contemporâneos que participam da exposição Em Nome dos Artistas, em comemoração aos 60 anos da Bienal de São Paulo. A complexidade dos trabalhos reunidos exige do público uma atitude mais atrevida, um tempo de observação e apreciação mais duradouros porque nem todos são de gosto fácil.

Em sua maioria norte-americana, as obras pertencem à coleção Astrup Fearnley Museum of Modern Art, sediada em Oslo, capital da Noruega. A curadoria da mostra, que leva a assinatura de Gunnar B. Kvaran, diretor da referida instituição, relacionou as obras de arte que exigem maior contemplação com as águas profundas. São aquelas que permitem imergir em situações desconhecidas, ao contrário das águas rasas, que nos possibilitam ver apenas as superfícies. A exposição, nesse sentido, é um convite às águas profundas e, para melhor entendê-la, é importante compreender os quatro momentos que a divide - 1980, 1990, a partir de 2000 e uma sessão especial ao artista britânico Damien Hirst (1965).

A aventura começa justamente por Hirst, um dos nomes mais lendários da atualidade. Sua produção fala sobre a morte e, para abordá-la, ele utiliza a própria morte. Em uma de suas obras, Mother and Child Divided (1993) (foto ao lado), uma vaca e um bezerro aparecem mortos, cortados ao meio e expostos em tanques de formol com as vísceras aparentes. É polêmico e seus trabalhos já levantaram diversos debates éticos. O filósofo e crítico norte-americano Arthur Danto lança a pergunta incômoda: o melhor destino desses animais seria acabar servindo como obra de arte no lugar da previsível mesa de jantar?

Hirst tem se utilizado da farmacognosia para discursar sobre o fim da existência. Os fármacos estão entre a morte e a cura. É no desejo de viver bem, de estar curado que as pessoas recorrem indiscriminadamente aos medicamentos - e a indústria farmacêutica explora isso. I Feel Love (1994-1995) é um quadro composto por bolinhas organizadas em linhas e colunas sobre um fundo branco. Cada uma exibe um tom diferenciado e não há repetições. Elas fazem alusão aos comprimidos, dispostos na cartela de maneira precisa. É como se o próprio quadro acenasse ao espectador a possibilidade da cura, de fazê-lo sentir-se bem. O título da obra não é por acaso.

Os artistas norte-americanos que representam os anos 1980 fizeram parte da geração pós-Segunda Guerra Mundial. Eles viveram o momento do hiper nacionalismo americano, quando a indústria cultural se expandiu para além dos territórios de língua inglesa. Como a função social da arte não é só ratificar a estrutura de poder, mas, entre outras intenções, denunciar e subverter um sistema de dominação, os artistas daquele tempo se valeram de objetos industriais descartáveis, imagens estereotipadas pela mídia para criar uma linguagem irônica e debochada do contingente sociocultural da época. Jeff Koons (1955) e Cindy Sherman (1954) (foto ao lado) são dois exemplos que ilustram esse período.

Macaco kitsch. A linguagem cínica e de forte humor ácido pode ser visto nos trabalhos do artista da Pensilvânia, Jeff Koons. Polêmico, ele se apropria de objetos kitsch, banais e clichês para falar de sexualidade, iconoclastia e consumo das classes sociais. A partir de referências do ready-made de Duchamp e da arte pop, ele se vale de peças que se encontram em lojas populares, de fácil consumo, bem distintos das tradicionais Belas Artes. São artigos engraçadinhos, que trazem consigo valores emotivos que cativam o público e, por outro lado, revoltam muitos daqueles treinados para a chamada “arte elevada”. Koons acredita que todo mundo deve ser autêntico com o seu gosto. Um objeto kitsch de um macaco pode ter mais a ver com a pessoa do que uma madona de Rafael. O crítico Danto disse que a ideia desse artista é “ser você e não fingir ser alguém que você acredita ser superior a você”. Nessa lógica, Koons toma conta de imagens do senso comum e da cultura de massa para construir imagens subversivas.

Em Titi (2009) (foto ao lado), o personagem de animação Piu-Piu é exposto como um boneco inflável, de maneira quase que patética, com olhos arregalados, braços abertos e com a língua para fora. Ainda nessa linguagem, o quadro The Hook (2003) possui um aglomerado de bonecos infláveis, de cores vivas, simbolizando animais fofos. Ao fundo percebe-se uma tela que enclausura esses animais. A figura de um gancho vermelho segura um dos bichos. No centro do quadro, em primeiro plano, há um short dourado, feminino, extremamente curto, ornamentado com joias na cintura. Duas correntes estão penduradas ao lado esquerdo da peça. Nesse conjunto apresentado, o short ganha forma de uma barca e seu aspecto de pirataria é reforçado com o gancho e as joias. O quadro nos permite uma associação com o universo da Terra do Nunca de Peter Pan, ameaçado constantemente pelo capitão Gancho. Mas nesses simbolismos de fantasia e clichês, onde está Peter Pan? Em um livre raciocínio, podemos dizer que está representado pelos bonecos infantis ameaçados pelo gancho e pela tela que os cercam.

Humor e horror. Cindy Sherman também mergulha nos estereótipos da cultura de massa, principalmente do cinema, para produzir um universo de estética popular e clichês. Na série Fotos de Cena Sem Título (1977-1980), ela se fotografou em diversos cenários a partir de variados gêneros de filmes. As fotografias de Sherman são impregnadas de significados sociais, culturais e políticos, especialmente voltados ao papel da mulher na sociedade contemporânea. Posteriormente, ela bebeu de estilos da pintura europeia (Retratos Históricos, 1988-90) para reconstruir esses cenários carregados de sentidos históricos, seja pelos ícones construídos ou pelos conceitos gerados pelas imagens.

As celebridades hollywoodianas são representadas na série Hollywood Portraits (2000-2002). Nesses retratos existe uma síntese entre glamour e sensação de repulsa causada pela maneira como a artista representa os artistas. Na série Clowns (2003-2004) (foto ao lado), ela lança mão de rigorosos makeups, costumes flamboyant e da pós-produção digital para manipular formas e cores sintéticas dos backgrounds das fotografias. Nos retratos dos palhaços há um jogo entre humor e horror, felicidade e tristeza.

A década de 1990 foi um período em que muitos artistas tornaram-se contadores de histórias. Eles criaram narrativas conceituais ou metafóricas que subvertiam as histórias convencionais. Para isso, mesclaram os vários gêneros das artes visuais, como a performance, a instalação e a videoarte. Um dos nomes mais consagrados desse período foi Matthew Barney (1967). Além de curiosidades que o cercam, como o fato de ser casado com a cantora Björk, ele é um atleta. A formação em Educação Física foi fundamental em sua obra.

Ciclo Cremaster (1994-2002) (foto ao lado), por exemplo, tem uma narrativa em torno da corporeidade. Cremaster é o nome anatômico do músculo que controla a movimentação dos testículos. A obra é composta por cinco vídeos que fazem alusão conceitual a esse músculo associado às questões humanas – sexualidade, gênero, ambição, fantasia, morte. As histórias não se fecham em uma narrativa linear com um final determinado. Elas foram estruturadas de tal maneira que permitem interpretações livres por parte do espectador.

Silêncio e paciência. A partir de 2000, ficou previsível esperar que as obras de arte empregassem elementos digitais e a interatividade como recursos principais na constituição da linguagem plástica. Muitos artistas contemporâneos fazem uso desses procedimentos, mas nem todos os consideram como elementos principais de suas obras. O trabalho de sombras do artista chinês Paul Chan (1973), como a série The 7 Lights (2005) (foto abaixo), não deixa de lembrar a técnica milenar do teatro de sombra de seus conterrâneos. Ele as projeta em movimento para falar do tempo. Não apenas do tempo grego cronos, responsável pela medição do horário, mas o de outro tempo grego, o do kairos, o preenchimento do tempo vazio, o que ele guarda de significados e pode transformar o estado atual para outro distinto. O percurso silencioso das sombras instiga uma contemplação para além do visível. Elas em si são indicativos da presença de algo e, na ausência desse algo, se tornam mais fortes que o próprio objeto.

O psicólogo Jung já nos disse, em seus profundos estudos sobre a natureza e a psique humanas, que o que escapa a nossa mente, o destino nos devolve em forma de sombra. Será que é por isso que vivemos em um mundo cada vez mais de projeção e simulacros? As sombras de Chan não são estáticas, elas têm movimento, tecem a síntese entre o cronos e o kairos, do tempo percorrido e da plenitude de sua ocupação. A delicadeza da obra desse ilustre chinês nos remete à condição do silêncio e da paciência orientais. Há um estado introspectivo de meditação sobre o tempo. Como diria o filósofo e poeta francês Gaston Bachelard, o tempo das águas profundas.

(Ivan Ferrer – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. / @ivanfm1)

(Foto de abertura: The Hook, obra de Jeff Koons)

 

Em Nome dos Artistas. Parque Ibirapuera (Avenida Pedro Álvares Cabral, s/número, portão 3. Fone: 5576-7600). Segunda a quarta e sexta a domingo, 09h às 19h; quinta, 9h às 22h. Ingresso: R$ 20 (domingo: grátis). Até 04 de dezembro.

 

Veja vídeo de Matthew Barney:

 

 

 

Cinema: O Jovem Ahmed

Um garoto que se sente empoderado pela religião, sem empatia e pueril o suficiente para desconhecer as implicações de suas ações, pode amedrontar uma sociedade que teme o terrorismo de orientação religiosa. O novo e polêmico longa-metragem dos irmãos belgas Jean-Pierre e Luc Dardenne tem como protagonista um adolescente fundamentalista muçulmano de treze anos (Idir Ben Addi), de ascendência árabe-belga, que assume o compromisso de levar a cabo um ato extremo. O alvo de Ahmed é a professora muçulmana Ines (Myriem Akheddiou), que no passado o ajudou a superar a sua dislexia, mas agora é vista por ele como uma pessoa que renegou a crença da qual fazia parte e, ainda por cima, namora um judeu. Ela, no entanto, não fez nada além de ensinar árabe por meio da música e não apenas pela leitura do Alcorão. Na escola, inclusive, uma reunião das famílias muçulmanas traduz a ausência de consenso em torno do tema, com conflitos e brigas entre conservadoras e progressistas.

Quem faz a cabeça de Ahmed é o líder espiritual da comunidade, o imã Youssouf (Othmane Moumen), que o massacra com ideias e princípios de pureza baseados em uma interpretação radical do livro sagrado dos muçulmanos. Ele o instrui, por exemplo, a não cumprimentar a professora na escola nem beijar ou se despedir das colegas de classe. Chega a convencê-lo de que a mãe dele, a muçulmana não praticante Louise (Claire Bodson), não passa de um ser humano indigno por não usar hijab para cobrir os cabelos e eventualmente beber álcool. Com o intuito de impressionar o mestre, o menino idealiza ser o próximo mártir jihadista.  

Sem valer-se de maniqueísmos, o filme apresenta Ahmed aprisionado nesse jogo nervoso entre duas forças antagônicas, cada qual com um modelo de vida. Há a professora que o ensinou a ler e deseja que os alunos aprendam o idioma árabe por fontes diversas. Há o imã, que se opõe aos métodos dela e promove uma espécie de lavagem cerebral em seu discípulo. Este, de forma distorcida, pretende fazer justiça com as próprias mãos. Curiosamente, toda a metamorfose de Ahmed parece ter ocorrido abruptamente, porque o seu cotidiano era tido como normal para alguém de sua idade e girava em torno de videogames. Sinais indicam que o primeiro passo para o processo de radicalização se esboçou no momento em que passou a enaltecer o seu primo, morto ao cometer um ataque suicida. Ao farejar a transformação, o líder espiritual começou a doutriná-lo no exercício da intolerância e sectarismo.  

O comportamento rígido e inflexível do jovem é praticado até no centro de reabilitação juvenil, para onde foi após perpetrar uma insanidade. Os conselheiros que ali atuam se esforçam para não insultar as crenças muçulmanas de Ahmed e sugerem que ele trabalhe em uma fazenda. Nesse ambiente rural, o rapaz desenvolve amizade com uma garota da sua faixa etária (Victoria Bluck), porém a relação também é cercada de complicações morais. O mais inquietante é o fato de que todos à sua volta são afáveis e tolerantes com suas práticas e opiniões religiosas. Mesmo assim, Ahmed não descartou os planos de investir novamente contra a professora, mantendo viva a sua guerra santa particular.

Embora não aguda ou contundente, a obra expõe a construção do fanatismo e da loucura. Em algumas cenas assustadoras, o garoto estuda maneiras de esconder uma faca no sapato e lapida uma escova de dentes roubada para transformá-la em uma arma afiada. Cria-se uma espécie de tensão e suspense, que o público acompanha com interesse até o desfecho. Inteligente e sutil, o roteiro não faz julgamentos e valoriza aquilo que é implícito, mais do que as palavras. Não existe preocupação em mergulhar na psicologia dos personagens. Efetivamente os Dardennes evitam uma leitura trivial ao escancarar questões como arrependimento e misericórdia. O que os irmãos mostram, para horror de todos, é que pessoas comuns, de traços suaves, como o protagonista, podem ser manipuladas e virar agentes do terror. Nesta produção, nem as instituições de ressocialização estão funcionando. Não se sabe por que Ahmed continua incólume aos valores humanistas e perdeu a capacidade de apreender noções básicas de convívio. Ele pode ser salvo e se redimir? É a incômoda dúvida que permanece após a sessão.

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )  

(Foto Divulgação)

 

Avaliação: Bom

 

O Jovem Ahmed

Título Original: Le Jeune Ahmed (Bélgica / França, 2019)

Gênero: Drama, 84 min.

Direção: Luc Dardenne e Jean-Pierre Dardenne

Elenco: Idir Ben Addi, Othmane Moumen, Myriem Akheddiou e outros.

Estreou: 20/02/2020

 

Assista trailer do filme:

 

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