Asas do Desejo

O mundo vivia a Guerra Fria e o muro que dividia Berlim era o símbolo mais dramático daquela época. Dois anos antes do muro cair, no final de 1989, o cineasta alemão Wim Wenders rodou uma das obras mais fascinantes do cinema mundial, protagonizada por anjos que voam e se movimentam por essa cidade alemã com jeito de ilha estacionada no tempo. Vestidos com sobretudos negros, Damiel (Bruno Ganz) e Cassiel (Otto Sander) parecem seres humanos comuns, mas são invisíveis aos olhos dos homens. Curiosamente apenas as crianças notam as suas presenças, ao contrário dos adultos que, embrutecidos, teriam perdido a sensibilidade. Os anjos, posicionados no alto dos prédios ou apoiados em estátuas, a tudo observam e sentem com interesse e surpresa.  Eles ouvem os pensamentos e desejos mais íntimos de pessoas mergulhadas em seu cotidiano banal. Às vezes descem e transitam entre passageiros de um bonde, pedestres nas ruas, gente na biblioteca, circo ou boate. Alguém bem comparou a polifonia de vozes ao movimento de zapear o dial de um aparelho de rádio. Em alguns momentos, eles confortam mortais em situações-limite, como na hora em que um suicida ameaça despencar no vazio. De forma passiva, no entanto, porque não conseguem interferir nas ações humanas. Sob o ponto de vista dos anjos, as imagens são filtradas pelo realismo do preto e branco. Se vistos pelos olhos humanos, despontam em cores fortes. A câmera passeia por becos vazios, caminhos que parecem não levar a nada e o imenso muro. Desnuda o avesso de uma cidade tingida pelas marcas e vincos do pós-guerra. Todo o longa é temperado de poesia e encanto, dor e solidão. Wenders captou como poucos a peculiaridade de uma Berlim em estado de transe e devaneio.

O filme conquistou o Festival de Cannes de 1987 e se tornou cult, figurando em muitas listas de cinéfilos. Ganhou uma continuação sem a mesma densidade, Tão Longe, Tão Perto (1989), e uma refilmagem hollywoodiana, Cidade dos Anjos (1998), estrelada por Meg Ryan e Nicholas Cage, que virou um drama romântico que se esgota em si. Lenta e contemplativa, a narração transcorre sob o signo da melancolia, certamente o tom mais adequado para tratar de fendas existenciais. Boa parte do longa, aliás, avança por meio de monólogos interiores e fluxos de pensamento. O tempo todo se fala do caráter transitório das coisas. Damiel, por exemplo, se apaixona por uma bela trapezista (Solveig Dommartin), que simbolicamente também voa como os anjos. Pretende se tornar humano, para voltar a sentir, desejar, experimentar prazeres e sofrimentos naturais,  vivenciar o fardo da vida. Fazer coisas simples, como sujar os dedos ao folhear um jornal, abraçar, ser visto. Enfim, trocar sua condição divina pela mortalidade. Os diálogos soberbos de Peter Handke traduzem essa dicotomia entre o mundo angustiante dos humanos e o universo onírico dos anjos, entre esses planos que se cruzam. Um dos personagens que melhor representam a mistura de ambas as dimensões é o ator Peter Falk, notabilizado pelo personagem Columbo da série de televisão. Ele interpreta a si mesmo. Ou melhor, foi um anjo e por isso percebe a presença de Damiel. Chega a comentar com ele sobre a sensação agradável de poder degustar café enquanto fuma um cigarro. Outra figura que impressiona é a do cantor australiano Nick Cave, que aparece interpretando canções pop sombrias, de poesia perturbadora. Neste filme, os anjos funcionam como veículo para Wenders tecer sua inspirada reflexão sobre a condição humana. O desfecho é emblemático de como a imortalidade pode ser uma via de mão dupla. Na cena, já tendo feito a transição, o anjo apaixonado revela: “Eu sei, agora, o que nenhum anjo sabe”. Imperdível.  (Edgar Olimpio de Souza)

 

Avaliação: Ótimo

 

Asas do Desejo

Título Original: Der Himmel über Berlin (Alemanha / França, 1987)

Gênero: Drama, 130 min

Direção: Wim Wenders                                                                                                     

Elenco: Bruno Ganz, Solveig Dommartin, Otto Sander e outros                             

Distribuidora: Europa Filmes                                                                                           

 

Veja cenas do filme:

 

 


 

 

 


 

 

 

 

 

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