Aquarius

Numa espécie de preâmbulo a demarcar o leque de temas tratados neste filme, o cineasta pernambucano Kleber Mendonça Filho abre com uma festa familiar de aniversário a comemorar os setenta anos da ex-guerrilheira, feminista e, agora, avó Lúcia (Thaia Perez). É como se ele busque, nos três capítulos em que ele divide a narrativa, ressaltar a ameaça que continua a pender sobre seus descendentes e eles, para não sucumbir às ameaças, devem se proteger.

Esta dupla situação se concentra na filha Clara (Sonia Braga), jornalista aposentada e escritora, de 65 anos, viúva, que vive em Recife em confortável apartamento na Praia de Boa Viagem. E passa seu tempo a sair com as amigas, visitar o irmão Antônio (Buda Lira), ver os três filhos e o neto, ler livros e ouvir Taiguara e Altemar Dutra, entre outros. Leva, portanto, uma vida tranquila, num bairro classe média.

Contudo, morar no edifício Aquarius se torna um pesadelo para ela. Em vez de desfrutar transcendência, comunhão e harmonia com os astros, como matizado pela música homônima de James Rado e Gerome Ragni, no musical Hair, dirigido pelo tcheco Milos Forman, é envolvida numa maquiavélica teia para expulsá-la do espaço onde passou grande parte de sua vida. Não são fantasmas,  portanto, que a atormentam, mas a fome de altos lucros da especulação imobiliária.

No centro da tramoia está a Construtora Bonfim que adquiriu o prédio para o demolir e construir em seu lugar um condomínio de luxo. Clara então se vê chantageada pelo especulador imobiliário Geraldo Bonfim (Fernando Teixeira) e seu filho Diego (Humberto Carrão), por não aceitar vender seu apartamento, pelo preço supostamente acima do mercado. Os rastilhos montados por Mendonça Filho no preâmbulo ganham sentido, em vista da luta empreendida pela mãe nos anos de luta contra a ditadura civil-militar.

Não se trata mais de o fazendeiro se apossar da terra do lavrador, para desenvolver uma agricultura altamente mecanizada, mas de sua mutação em bem puramente financeiro, a fim de gerar grandes lucros numa área nobre altamente valorizada, no meio urbano. Já não é mais o senhor de engenho, o latifundiário, tratado pelo cineasta em O Som ao Redor (2012), que migra para a metrópole em busca de diversificação de seus negócios, mas, simplesmente, do inescrupuloso especulador imobiliário.

O diretor, mesmo fugindo aos arquétipos, usa neste drama, no qual a mestiça Clara é aterrorizada, o conflito latifundiário/rancheiro, típico dos faroestes clássicos (Os Brutos Também Amam, de George Stevens). Mostra, desta forma, que o burguês brasileiro, em pleno século XXI, perpetuou os cruéis métodos de senhor de engenho ao tratar os de menor poder aquisitivo, sejam eles de classe média ou afrodescendentes e caucasianos pobres, como se fossem seus escravos.

A cada recusa de Clara, a dupla Geraldo/Diego varia seus sádicos métodos. Põem fezes na escada do apartamento dela, fogo em colchão sob sua janela e a proíbem pintar as paredes externas de seu imóvel. Até que ela, humilhada, troca farpas com Diego, o sinhozinho arrogante e racista, por ele tentar humilhá-la: “A senhora é de família de pele morena que veio de baixo. E para vocês as coisas são sempre mais difíceis”. Ela não se submete e lhe diz que não lhe venderá seu imóvel, deixando-o irado.

A narrativa de Mendonça Filho é direta, embora nuançada, de tênue iluminação, grandes planos e poucos closes. Na intrigante sequência do cupim a tomar conta do prédio, constrói cada cena de forma a estimular o suspense com imagens e diálogos curtos. E mescla horror e metáfora transformando o que era desfavorável a Clara em algo assustador para dupla Geraldo/Diego. O cupim se torna, assim, altamente corrosivo, igual ao emblemático disparo no desfecho de O Som ao Redor.

Mas os conflitos de propriedade na rica Recife não impedem o cineasta voltar seu olhar para as várias Recifes. Dentre elas a linha invisível que divide o rico bairro Pina e o pobre bairro Brasília Teimosa. Para ressaltá-la, Clara, ao caminhar pela praia com a namorada do filho, chama atenção para a “convivência” entre os endinheirados e os que sustentam sua riqueza, vivendo em condições miseráveis. Seu dilema no Aquarius, embora sério, perto da vida deles, é apenas um estudo de caso.

Aquarius, no entanto, não é um filme qualquer, se entranha no espectador. Reflete os fatos em ocorrência no país, onde a arte passou a ser marginalizada após o golpe de Temer e seus asseclas. Ter chamado atenção do mundo para ele, em plena ebulição do Festival de Cannes, em maio desse ano, foi sinal de que Mendonça Filho, Sonia Braga e o restante do elenco não se alhearam à realidade política atual. Deixar de indicá-lo como representante do Brasil ao Oscar 2017, foi execrável ato ditatorial. Como sempre, não se faz arte sem tocar nas feridas, e elas continuam abertas.

(Cloves Geraldo, do site Vermelho)

(Foto Divulgação)

 

Aquarius

Título Original: Aquarius (Brasil / França, 2016)

Gênero: Drama, 142 minutos

Direção: Kleber Mendonça Filho

Elenco: Sonia Braga, Irandhir Santos, Maeve Jinkings, Humberto Carrão e Fernando Teixeira

Estreou: 01/09/2016

 

Veja trailer do filme:

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