O Clã

A família de classe média dos Puccio parecia comum. Eles residiam no bairro nobre de San Isidro, nos arredores de Buenos Aires, e mantinham uma loja de artigos esportivos. O patriarca Arquímedes Puccio pilotava o lar estabelecendo regras severas e encarnava um pai amoroso, que não se furtava a ajudar a filha pequena na lição de casa. O filho Alex estourava como um promissor jogador de rúgbi da Seleção Argentina, que costumava figurar em capas de revistas. Já o primogênito Daniel passava uma temporada na Nova Zelândia. A esposa Epifanía e mais três descendentes completavam o núcleo familiar. O negócio deles, no entanto, era outro. Os Puccio seqüestravam, extorquiam e assassinavam gente abastada, pessoas conhecidas que integravam o seu círculo social. Uma das vítimas, por exemplo, compartilhava da amizade de Alex.

O mais incrível disso tudo é que esta assustadora história aconteceu na realidade e foi parar na tela de cinema, resultando numa envolvente e angustiante obra assinada pelo prestigiado cineasta argentino Pablo Trapero (Elefante Branco/ Abutres / Leonera). Candidata ao Oscar desse ano na categoria de Filme Estrangeiro, esta produção bateu recorde de bilheteria no país vizinho, tendo desbancado o bem sucedido conterrâneo Relatos Selvagens, de Damián Szifron. A ação transcorre durante a restauração da democracia na Argentina, após sete anos de uma brutal ditadura militar. Em 1985, Raul Alfonsín, o primeiro presidente civil, governava uma nação mergulhada em crise econômica, ainda confusa com a saída dos militares do poder e em busca da normalidade democrática. Foi em agosto daquele ano que as atividades criminosas dos Puccios vieram à tona e o bando foi desarticulado.

O frio e contido Arquímedes (Guilherme Francella) comandava as operações. Ex-colaborador dos serviços de repressão dos anos de chumbo, ele agia impunemente porque contava com a proteção de figurões que ainda desfrutavam de poder e da vista grossa da polícia local. A obra deixa entrever esse ambiente de corrupção generalizada, legado da guerra suja, no qual esquemas ilícitos e clandestinos teimavam em subsistir. Arquímedes incorporava o tipo de homem para quem a família deve fazer tudo junto, mesmo que isso signifique cometer crimes. Alex (Peter Lanzani) era o seu braço direito e Daniel (Gastón Cocchiarale), apelidado de Maguila, reforçava o temível grupo, engrossado por mais três comparsas do pai. Os Puccio cobravam resgates em dólares e encarceravam as vítimas no sótão da própria casa, algumas vezes em um cômodo contíguo aos quartos dos filhos.   

O longa se move nessa desconfortável fronteira entre a violência torpe e um cotidiano prosaico. O drama pode ser observado de maneiras complementares. Como um quadro das relações de poder no âmbito de uma sociedade em recuperação, no contexto do fim da ditadura. Ou como um embate familiar, desencadeado por uma criatura que exercia controle implacável sobre toda a sua família, especialmente sobre Alex. Um conflito que revela a psicopatia de um, mascarada pela aparência polida, e a conveniência passiva de outro, inerte diante da sombra da opressão – no desfecho, o confronto ganha corpo num diálogo de conotação trágica, no qual o pai, ameaçado de prisão perpétua, joga na cara do filho que tudo o que ele tem hoje foi obtido graças à ditadura militar.   

Trapero pincela o enredo com espessas tintas realistas. Habilmente ele escapa da narrativa linear, com a inserção ocasional, ao longo do filme, de fragmentos dos episódios protagonizados pelo clã, e se vale do emaranhamento de imagens documentais, como noticiário televisivo e discursos de generais, às sequências de ficção.

O conjunto é palpitante e impregnado de momentos de crueldade psicológica. Até porque os flagrantes dos seqüestros se intercalam, por exemplo, com a rotina de um trivial jantar em família, incluindo oração de agradecimento. E tais instantes violentos são banhados por rock pesado, um recurso pontual do cineasta, que transtorna o espectador aos sonorizar o horror retratado. Uma das passagens mais surpreendentes é uma inesperada tentativa de suicídio, rodada num plano sequência bem executado. Outra tomada sem cortes transcorre no interior do lar dos Puccio, quando Arquímedes caminha carregando uma bandeja de comida – tranquilamente ele avisa à família que o jantar está pronto e só finaliza o percurso na porta do quarto onde um refém se encontra preso e amordaçado. Em outro momento exasperante, cenas de um assassinato e de um casal praticando sexo no interior de um carro se entremeiam.  

Neste filme, há uma visível influência do cinema de Martin Scorsese, de quem Trapero é reverente. O dado comum é a discussão moral, com ênfase nas relações familiares, que emerge da narrativa e lhe dá sentido. No final, os créditos anunciam que nunca se soube exatamente se todos os membros da família tinham total ciência dos crimes e do confinamento das vítimas nas dependências da própria residência. É uma informação perturbadora.

(Edgar Olimpio de Souza)

(Foto Divulgação)

 

Avaliação: Ótimo

 

O Clã

Título Original: El Clan (Argentina / Espanha, 2015)

Gênero: Drama, 108 min

Direção: Pablo Trapero

Elenco: Guilherme Francella, Peter Lanzani, Gastón Cocchiarale e outros.

Estreou: 10/12/2015

 

Veja o trailer do filme:

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