Força Maior

Desde a primeira cena, quando um fotógrafo registra retrato improvisado de uma família sueca numa pista de esqui, a imagem deles parece encantadora. Marido, mulher e dois filhos pequenos estão felizes passando férias num sofisticado resort nos Alpes franceses e não escondem isso de ninguém. Ainda no primeiro dia, eles serão flagrados em outras situações idílicas, como na hora em que cochilam juntos na cama ou escovam os dentes lado a lado. A esposa, no afã de tornar a circunstância mais aprazível, chega a repreender o companheiro ao vê-lo fuçando o seu telefone atrás de assuntos relacionados ao seu trabalho.

Nestes minutos iniciais, o filme, que venceu o Prêmio do Júri na mostra paralela no último Festival de Cannes, acompanha o casal em seu esforço de plenitude. A temporada de descanso e lazer de Tomas (Johannes Bah Kuhunke), Ebba (Lisa Loven Kongsli) e das crianças (Clara Wettergren e Vincent Wettergren), no entanto, não será tão bucólica assim. O passeio vai se transformar em um amargo pesadelo. Já no segundo dia, a fachada de perfeição começa a sofrer fissuras durante o jantar ao ar livre no terraço panorâmico do local. Como é praxe, o resort emprega procedimentos de segurança para detonar avalanches controladas. Enquanto sentavam-se à mesa, o dispositivo foi acionado e o deslizamento de gelo provoca uma nuvem branca que avança sobre o ambiente. Amedrontado, porque a parede de neve parecia maior do que o imaginado, Tomas corre, esquecendo-se da mulher e filhos – na fuga, só se preocupa em apanhar as luvas e o iphone.

No final das contas, não era nada, ele retorna e finge que nada de anormal aconteceu. Algo, no entanto, mudou. O que poderia ser uma história para se contar e rir, com os previsíveis embaraços em torno das ações e reações, se desdobra em dois eixos justapostos. O relacionamento começa a esfarelar - ambos deixam de ver um ao outro da mesma forma – e ganha corpo uma provocante reflexão sobre o papel dos gêneros no mundo de hoje. O longa do diretor sueco Ruben Östlund desfia sem pressa essas duas vertentes, valendo-se de edição competente, diálogos afiados, ração de ironia e sugestões musicais. Ele guia a narrativa ora como pungente drama psicológico ora como cortante comédia de costumes. O cineasta traça sutilmente os sentimentos de perplexidade, decepção e raiva que envenenam a união.

Ao ser confrontado com sua suposta covardia, Tomas começa a desmoronar emocionalmente. Em encontro com um velho amigo (Kristofer Hivju) e sua jovem namorada (Fanni Metelius), por exemplo, o desconforto dele é visível porque Ebba faz questão de relatar o incidente sob o seu ponto de vista. Está assombrada com o comportamento do companheiro, inconformada por ter priorizado salvar a própria pele. Na função de marido, pai e homem, ele não teria agido da maneira esperada e a tibieza demonstrada deveria envergonhá-lo. Ironicamente, as imagens do episódio foram captadas pelo iphone do marido. Em sua defesa, Tomas tenta racionalizar a suposta escapada, mas seu estado patético é evidente. Há uma cena ilustrativa: ele sofre um colapso no corredor do hotel, enquanto é observado pelo indiferente zelador. O conflito explodiu de vez e, no calor da situação, o casal se revela incapaz de discernir qualquer verdade objetiva. Desconfia-se que outra avalanche, desta vez letal, pode eclodir a qualquer instante. 

Aos poucos, o filme consolida uma crítica mordaz do ideal masculino de provedor e protetor, dos papéis estabelecidos para o homem e para a mulher na sociedade atual e da instituição do casamento. Não por acaso, o título exprime o termo jurídico pelo qual um acontecimento inesperado, impossível de ser controlado ou antecipado, trava o cumprimento de um contrato. Em entrevista, Ostlund afirmou ter lido que durante desastres marítimos os homens, e não as mulheres, são mais inclinados a fugir para se proteger. O cineasta também pesquisou casais que sobreviveram a naufrágios e tsunamis e descobriu um elevado índice de divórcio entre eles. São dados surpreendentes para muita gente. A obra tem desfecho enigmático, envolvendo um ato de heroísmo e uma tragédia em gestação. É possível que sejam farsas construídas com o intuito de afagar os filhos, ludibriar os amigos e fingir que realmente eles formam um casal magnífico, como desejavam o tempo todo demonstrar.    

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )  

(Foto Divulgação)

 

Avaliação: Ótimo

 

Força Maior

Título Original: Force Majeure (Suécia, Dinamarca , França , Noruega, 2014)

Gênero: Drama, 120 min

Direção: Ruben Östlund

Elenco: Johannes Bah Kuhnke, Lisa Loven Kongsli, Clara Wettergren e outros.

Estreou: 05/03/2015

 

Veja trailer do filme:

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