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Teatro: A Herança

O público não deve se inquietar com as seis horas de duração deste ambicioso e meditativo épico, dividido em duas partes e exibido em dias alternados. Isso porque o premiado texto do dramaturgo americano Matthew Lopez desliza com fluência, envolve gradualmente e propõe reflexão aguçada sobre o que aprendemos com os nossos antecessores e a importância de se preservar o passado vivo. Ambientado em Nova York, na segunda década deste século, o retrato de diferentes gerações da comunidade gay local carrega pontos de contato com Angels in America (1991), a mítica produção do conterrâneo dramaturgo Tony Kushner, que lidava com questões políticas e a epidemia da aids.   

Os personagens de Lopez já não sofrem de homofobia internalizada e exercem plenamente sua sexualidade sem culpa. Encenada por Zé Henrique de Paula, a trama tem início com um jovem grupo de homossexuais da classe média novaiorquina que decide contar a vida deles próprios, inspirados no romance Howards End, do autor britânico E.M. Forster (1879-1970) - o livro aborda a hipocrisia da sociedade burguesa da Inglaterra eduardiana sob o espectro da Primeira Guerra Mundial.

Num flerte metalinguístico, o autor transforma o gay enrustido Forster em uma criatura do enredo. Paternal, Morgan (nome do meio do romancista) eventualmente interrompe a oficina de criação literária para exortar os futuros profissionais a expressar o que realmente sentem. Chega a sugerir que a sua obra seja utilizada como arquétipo para o desenvolvimento da história que estão produzindo.   

O núcleo central é constituído pelos namorados Eric e Toby. Enquanto o primeiro se enxerga como um cara comum e anda incomodado com a perspectiva de despejo do apartamento de família alugado, o companheiro se deleita narcisicamente com o seu autoproclamado talento como dramaturgo. Eles têm como vizinhos Henry e Walter, um casal gay mais maduro e abastado que viveu o flagelo da aids na era 1980, na esteira dos anos Reagan. Naquela época, um diagnóstico dessa doença significava uma sentença de morte. Ambos mantinham uma casa de campo que acabou se tornando refúgio de paz e dignidade para doentes terminais. Por sinal, uma das sequências emocionais mais devastadoras do espetáculo acontece em torno desse abrigo, um encontro dos espíritos dos que partiram.     

A configuração afetiva do quarteto logo se esvai e surgem outras possibilidades de conexão. O relacionamento de sete anos entre Eric e Toby começa a desintegrar quando o segundo passa a sentir fixação pelo aspirante a ator Adam e, no decorrer, pelo garoto de programa sem-teto Leo. Walter morre e um imprevisto vínculo amoroso se materializa entre os enlutados Henry e Eric.

Uma das conquistas da direção é implantar ritmo agradável, valorizar a galeria humana e se safar da cilada do melodrama. É hábil o suficiente para remover qualquer confusão acerca das intricadas ondulações narrativas e mudanças de personagens. Não há coxia e os atores coadjuvantes, que interpretam o círculo privado de Eric e Toby e outros papeis, se posicionam a maior parte das vezes nos flancos do palco quando não interagem na ação principal. Com tique brechtiano, eles comentam os acontecimentos e reagem gestualmente como se formassem um coro onisciente, alavancando uma perspectiva extra à narrativa. A sóbria cenografia de Zé Henrique de Paula, o sutil designer de iluminação de Fran Barros, os figurinos personalizados de Fábio Namatme e a trilha sonora não manipuladora de Fernanda Maia adicionam camadas ao trabalho.    

O elenco coeso assimilou perfeitamente a proposta da peça. Bruno Fagundes transmite milimetricamente a decência e a bondade santa de Eric. O sedutor e autodestrutivo Toby é representado com ímpeto e vibração por Rafael Primot. Ainda em processo de refinamento vocal e gestual em seu desempenho, Reynaldo Gianecchini incorpora  Henry, o poderoso empreendedor imobiliário sempre em viagem de negócios. Em um momento de tensão, durante um café da manhã, Henry, eleitor dos republicanos, expõe suas opiniões políticas conservadoras – Trump nunca é identificado -, num embate ferrenho com os amigos de esquerda de Eric, devotos dos democratas, especialmente o incendiário rapaz vivido de forma eloquente por Haroldo Miklos.

Em estudada composição, Marco Antônio Pâmio impõe sua conhecida densidade nas peles de Morgan e Walter e nocauteia o espectador no longo solilóquio em que, ancorado em altruísmo, preconiza uma equivalência entre o respeito pelos mortos e o amor pelos vivos. André Torquato dobra como Adam e Léo, símbolos dos dois extremos da luta de classes americana. Ele se destaca ao narrar as peripécias de Adam em uma sauna gay em Barcelona e na passagem em que transita entre os dois personagens enquanto conversam. Única atriz na trupe, a experiente Miriam Mehler encarna com força interior e complacência uma mãe ex-homofóbica que perdeu seu filho para o hiv e dedicou sua biografia a auxiliar outros gays infectados.   

Borrifada de humanismo e incidentes, não raro a dramaturgia se abre para discussões acaloradas. Uma das mais intensas é sobre o status da cultura gay que, tendo brigado muito contra a intolerância e preconceito, agora corre o sério risco de ser cooptada pelo sistema. Há também observações perspicazes sobre a geração gay dos vinte e trinta anos que nasceu após o ciclo desconcertante da peste. O diálogo entre estes jovens de hoje, que podem assumir com mais tranquilidade suas identidades sexuais, e os mais velhos, que guerrearam pelos direitos dos homossexuais, vivenciaram o trauma da aids e agora carregam cicatrizes profundas, é a matéria prima da montagem.    

Esta espécie de acerto de contas entre gerações não deixa de ser impressionante. Uma linha que principia com Forster dentro do armário, prossegue nos tempos da peste em Nova York e desemboca nos jovens liberais de hoje. Eric é o descendente em todos os sentidos dos exemplos deixados anteriormente por Morgan e Walter. Tornou-se o guardião da casa de campo, herdeiro de decênios de lutas, experiências pungentes e conhecimento acumulado. Outra figura emblemática é a da mãe que aprendeu tarde a amar o filho gay e mergulhou em profunda reflexão. Imperturbada, relata sua própria história de perda e autorrecriminação amarga. Sua sinceridade é tamanha que sua dor ecoa na plateia.  

Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )  

(Foto Divulgação)

 

Avaliação: Ótimo

 

A Herança

 

Texto: Matthew Lopez

Direção: Zé Henrique de Paula

Elenco: André Torquato, Bruno Fagundes, Rafael Primot, Reynaldo Gianecchini, Marco Antonio Pâmio, Miriam Mehler, Haroldo Miklos, Felipe Hintze, Cleomácio Inácio, Davi Tápias, Rafael Américo, Wallace Mendes e Gabriel Lodi.

Estreou: 09/03/2023

Teatro Vivo (Av. Chucri Zaidan, 2.460, Morumbi). Quinta e sábado, 20h (parte 1); sexta, 20h, e domingo, 18h (parte 2). Ingressos: R$ 25 a R$ 100. Em cartaz até 30 de abril. 

 

Teatro: Outono Inverno ou O Que Sonhamos Ontem

Vista de perto, parece uma família normal, mas o que acontece no jantar desmente o revestimento de civilidade e revela esqueletos emocionais escondidos no armário. É uma ironia crua que o encontro que reúne pai, mãe e duas filhas adultas começa em águas tranquilas e rapidamente se transforma em uma guerra psicológica, com rivalidade entre irmãos, feridas abertas, ressentimentos e problemas de autoidentidade. A peça do dramaturgo e poeta sueco Lars Norén (1944-2021), que foi habilmente adaptada por Kiko Marques e recebeu montagem enérgica assinada por Denise Weinberg, mostra como membros de um núcleo familiar se unem em direção ao abismo.   

De alguma forma, todos ali caminham em círculos e dependem de medicamentos e bebidas para suportarem suas angústias e obsessões. Médico em declínio profissional, Henrique vive com a fria e controladora bibliotecária Margarida. O matrimônio deles não passa de uma farsa. A caçula Anna ganha alguns trocados como garçonete em um bar gay, almeja se tornar dramaturga e se vitimiza diante do luxo dos outros três. Sua irmã Eva, de carreira bem-sucedida, tem um casamento em frangalhos e sofre de infertilidade, o que a faz rejeitar ferozmente o seu corpo.   

A descida ao reino das sombras acontece ao ritmo de escavações desagradáveis do passado e a necessidade de se culpar alguém. Anna saiu de casa ainda adolescente, virou mãe solteira e tenta aumentar sua parca renda implorando dinheiro na rua. Há sugestão de que ela e o pai podem ter mantido décadas atrás uma relação algo além do trivial carinho paterno. Henrique admite que idealizava sua própria genitora na menina. Margarida também destila seus desgostos. Fez o marido escolher entre a mãe dele e ela mesma. Agora quer que ele a escolha novamente em vez da filha mais nova. Eva questiona se os pais precisavam mesmo ter duas herdeiras.

A potência da dramaturgia se constrói com o tempo que vai e volta ao sabor das memórias e diálogos sobrepostos que mais parecem faíscas voando. A direção mantém sintonia com o autor e encontra um tom crível para o contexto realista desse conjunto disfuncional. Denise lapidou marcações que ressaltam o clima claustrofóbico em que patinam estas criaturas melancólicas, dispostas a literalmente virar a mesa – pai e mãe quase nunca se levantam de suas cadeiras, enquanto as filhas se movimentam freneticamente pelo espaço. A atmosfera é pesada e cortante, tonificada pelo uso eventual de microfones e a hipnótica e fantasmagórica moldura sonora criada e executada ao vivo por Gregory Slivar. A cenografia e os figurinos de Chris Aizner, além do desenho de luz de Wagner Pinto, eletrificam a montagem.

O elenco transpira intensidade na representação. Cada um tem seu espaço para expor as falhas profundas de seus personagens e arrancar pedaços um do outro. Dinah Feldman é um dínamo em cena ao habitar a explosiva Anna, traumatizada por uma infância que acredita detestável. Em performance sólida, Nicole Cordery concede espessura à filha mais racional, porém igualmente infeliz, que se resignou aos confortos da vida burguesa. Se no início Eva reage com desdém ao comportamento de sua mana mais jovem, ela entra em erupção conforme a noite avança. Noemi Marinho enriquece o papel da mulher dominadora e sob pressão, que admite não ser o modelo ideal de pessoa e confessa já ter pulado a cerca. Na pele do frustrado Henrique, que se esforça para se ausentar dos conflitos, Riba Carlovich calibra a passividade de um homem com personalidade vazia e mente culpada.

Com tempero analítico e grãos de absurdo, o espetáculo oferece uma visão sombria, cruel e pessimista da nossa civilização, valendo-se do microcosmo de um dos pilares da sociedade, a família, que pode marcar o ser humano para o resto de sua vida. “Será que todas as famílias são assim?”, Henrique pergunta em certa passagem. “Me apaixonei pelo pai de vocês, comendo uma sobremesa que me dava ânsia de vômito”, faz questão de frisar Margarida. “Foi uma noite estranha", evoca-se no desfecho. Se ontem eles sonharam com um futuro feliz, hoje desfilam suas misérias.   

(Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )  

(Foto Leekyung Kim)

 

Avaliação: Ótimo

 

Outono Inverno ou O Que Sonhamos Ontem

Texto: Lars Norén

Direção: Denise Weinberg

Elenco: Dinah Feldman, Nicole Cordery, Noemi Marinho e Riba Carlovich.

Estreou: 27/10/2022

Oficina Cultural Oswald de Andrad (Rua Três Rios, 363, Bom Retiro). Terça, quinta e sexta, 20h; quarta, 15h, sábados, 15h e 18h (Dias 24/11 e 2/12 não haverá sessão devido ao calendário de jogos da copa do mundo). Entrada gratuita. Em cartaz até 03 de dezembro de 2022.

 

Teatro: Once - o Musical

Aparentemente simples, o enredo apresenta duas pessoas emocionalmente desestabilizadas, agarradas uma à outra como náufragas. O dramaturgo irlandês Enda Walsh escreveu esta versão para o teatro a partir de um cultuado filme irlandês independente de baixo orçamento com o mesmo título (2007). Personagens secundários foram reforçados para encorpar o contexto, com resultados desiguais, mas o núcleo não se diluiu. O texto, que recebeu montagem bem-sucedida de Zé Henrique de Paula, sem orquestra ou banda porque o elenco inteiro toca todos os instrumentos, instaura não exatamente uma história romântica de desfecho previsível. Trata-se de uma fábula contemporânea sobre perdas, ganhos e impasses no amor, encabeçada por dois indivíduos à deriva em Dublin, que desenvolvem mútua afeição no transcorrer de cinco dias.

Ele é um cantor e compositor irlandês deprimido, prestes a desistir de seu sonho de se tornar músico desde que sua namorada fugiu para Nova York com outro homem. Sua mãe morreu e agora se resigna a trabalhar na oficina de conserto de aspiradores de pó administrada por seu pai. Tocando na rua nas horas vagas por alguns trocados, conhece uma imigrante tcheca pianista, abandonada pelo marido, que reside na cidade com a mãe, a filha pequena e outros três amigos de seu país natal. Como se sensibiliza com as suas composições, ela o encoraja a formar uma banda, gravar um CD demo e usar suas canções para reconquistar sua companheira perdida.   

A trama segue a conexão instantânea que se articula e transcende a esfera da sexualidade entre estas criaturas feridas, castigadas por recentes fracassos do coração e nítidas dificuldades para superá-los e seguir em frente. A consequência é um caso de amor que trilha outra vereda, especialmente a musical, ilustrada por uma partitura de folk-rocks, cantigas folclóricas e baladas dolorosamente bonitas compostas por Glen Hansard e Marketa Irglova - a principal, Me Afogando (tradução nacional para Falling Slowly), foi vencedora do Oscar (2008). A música é o que concede sentido, pulso e ressonância à existência de ambos.

A direção concebeu uma mis-en-scène compacta e imaginativa, encharcada de teatralidade, que apreende a beleza da trilha sonora, a empatia da dupla central e a flama dos coadjuvantes, que abastecem muitas das passagens mais cômicas do espetáculo. A ação acontece em um estilizado pub irlandês, cenário de Zé Henrique de Paula e Guilherme Ramos. Com mínimas movimentações, e o auxílio do design de iluminação de Fran Barros e Tulio Pezzoni, o espaço se transforma em ponto comercial, estúdio de gravação, oficina e apartamentos.  

A experiente Bruna Guerin (com amplo repertório de gestos e expressões) e o estreante Lucas Lima (compreensivelmente mais à vontade tocando e cantando) buscam a emoção sincera que os deixam menos triviais. Eles sustentam figuras críveis, que convidam à fácil identificação. O gentil e reticente rapaz funciona como um contraponto para a garota segura, com sotaque e dona de senso de humor seco. São almas gêmeas espelhando-se, mas sem perspectiva real de um futuro juntos, que em instante algum mascaram suas vulnerabilidades e, a partir do encontro, se percebem mudando a vida um do outro para sempre. Em uma sequência comovente, olham para uma Dublin imaginária e ela diz em tcheco que o ama. Ao pedir para traduzir o que falou, a jovem responde que a frase se referia à possibilidade de chuva naquela noite.   

O febril conjunto de multi-instrumentistas cantores e atores, que permanece sentado na borda do palco quando não está encenando, interpreta os amigos, familiares e os cúmplices musicais. Envergando figurinos típicos, assinados por Theo Cochrane, que contribuem para realçar um forte sentimento de comunidade irlandesa, eles irrompem em cena como se compusessem um coro grego. Destacam-se o pai amoroso dele (Moises Lima), a descolada mãe dela (Andrezza Massei), um gerente de banco infeliz (Thiago Brisolla), um estressado dono de loja (Nando Pradoh), um excêntrico baterista de metal pesado (Abner Depret) e uma assanhada mocinha (Vanessa Espósito). Este bando de desajustados, com graus variados de talento, toca, canta, interpreta e dança exibindo desenvoltura. Todos eles têm seus momentos solo e chegam a emocionar quando executam coletivamente a canção Sol a cappella. A direção musical de Fernanda Maia e as coreografias assinadas por Gabriel Malo se harmonizam sem contratempos.

A montagem é salpicada por certo traço de melancolia e um tipo de comicidade baseada mais nas condições emocionais dos protagonistas do que em afiados duelos verbais. Difere do teatro musical convencional e dos clichês sobre romances entre homens e mulheres juntos até que a morte os separe. Em um nível mais profundo, ele e ela são seres humanos comuns, com vidas normais e questões complicadas para resolver. Suas alegrias, expectativas e infortúnios os tornam semelhantes aos nossos.

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto Adriano Dória)

 

Avaliação: Bom

 

Once – O Musical

Texto: Enda Walsh (baseado no filme escrito e dirigido por John Carney)

Música e Letra: Glen Hansard e Markéta Irglová

Direção: Zé Henrique de Paula

Direção Musical: Fernanda Maia

Estreou: 17/03/2023

Teatro Villa Lobos (Shopping Villa Lobos. Av. Drª Ruth Cardoso, 4.777, Pinheiros). Ingressos: R$ 25 a R$ 200. Sexta, 21h; sábado, 17h e 21h; domingo, 16h e 20h. Em cartaz até 21 de maio.

Teatro: Consentimento

Uma jovem da classe trabalhadora alega que foi estuprada na noite do funeral de sua irmã. O acusado, ausente fisicamente em cena, sustenta que a relação foi consensual. No instante em que Gayle conversa pela primeira vez com o promotor, representante do Estado, ele a interrompe, faz silêncio e, por fim, vai embora. Já no plenário, dois homens do establishment decidem friamente o destino da vítima. A linguagem técnica jurídica intoxica o interrogatório, a moça é manipulada e os sentimentos são intencionalmente dissociados do evento terrível. Não bastasse, o histórico de depressão da mulher e a circunstancial embriaguez na noite da violação, encarada como falha de caráter dela, acabam se tornando mais relevantes do que uma condenação pregressa do estuprador. Mais adiante, aliás, em uma sequência habilmente construída, as estratégias empregadas por advogados modernos em uma inquirição na corte são dissecadas à frente da plateia. 

Mas o que inicialmente parece ser uma espécie de drama de tribunal move-se, em vez disso, para uma investigação impiedosa sobre as tensões que perturbam dois casamentos em processo de implosão. Enfim, o que aconteceu com Gayle não é o único contexto de transgressão sexual nesta peça desconcertante da dramaturga inglesa Nina Raine (Tribos), que recebeu montagem magnética assinada por Camila Turim e Hugo Possolo. Outro episódio de violação sexual, que transcorre num círculo burguês, atormenta também um grupo de advogados articulados de classe média alta, moralmente repugnantes.

O termômetro de que máscaras sociais escondem verdades monstruosas pode ser visto logo nos primeiros minutos. Aparentemente felizes com o seu novo bebê, Kitty e Ed acolhem em sua residência os amigos Jake e Raquel, cujo matrimônio não anda bem das pernas. O quarteto brinca e discute sobre sexo, abuso e consentimento, muitas vezes se referindo insensivelmente aos seus próprios casos judiciais. Eles fazem planos para apresentar Zara, atriz que aspira ao papel de uma advogada em uma série televisiva, a Tim, um promotor público pouco convincente que atua no processo de estupro em que o sistemático Ed trabalha pela defesa. Ambos, aliás, se desprezam. A tentativa de aproximar os dois solteiros vai gerar consequências desastrosas.    

A trama caminha revolvendo velhas feridas dessas criaturas adúlteras, mergulhadas em uma sucessão de embates conjugais, vinganças doloridas e pedidos de perdão. Tudo acontece pelas costas de alguém, um julga o outro, alianças improváveis são formadas, invertem-se papeis. Kitty, que nunca perdoou Ed por uma infidelidade do passado, se envolve com outro homem. Após uma discussão tensa, ela acusa o marido de ter sido violada ao deixá-lo. Ele rebate com o argumento de que estavam apenas tendo um adeus inflamado.

Camila e Possolo dirigem de forma descomplicada, dispensando efeitos cênicos supérfluos. Concentram-se sobre os diálogos afiados e o resultado é uma produção vibrante, fermentada por doses de humor e emocionalmente contundente, projetada para provocar e não oferecer respostas simples. Na encenação, os personagens estão posicionados como se estivessem competindo em um ringue, em embates frontais. Marcações são desenhadas para demarcar esferas e situações de poder - estar em determinado ponto do palco pode significar um alinhamento com uma pessoa ou simbolizar uma crença contra outra.

Com estilo de atuação realista, o elenco mostra sintonia e dá veracidade a estes seres dilacerados. Flávio Tolezani entrega performance intensa na composição do autoconfiante Ed, para quem a presunção de inocência se baseia na convicção de que é melhor um homem culpado ser libertado do que um inocente ser condenado. Conforme o seu casamento se dissolve, o advogado perde a racionalidade ao usar a lógica do tribunal durante a discussão com a esposa. Em desempenho seguro, Camila Turim interpreta Kitty com modos irritantemente inquietos, que começa vulnerável até que outras nuances venham à tona. Sidney Santiago aloca um estranho timing cômico na interpretação do egoísta Jake, um sujeito mais preocupado com invasões de privacidade do que com sua própria culpa.

Helô Cintra aciona paixão e delicadeza na criação de Raquel. Com presença convincente, Gui Calzavara ilumina o reprimido e um tanto maçante Tim. Ana Cecília Junqueira encontra o tom exato para Zara, aquela que queria amor e um filho, mas não ainda Tim. Gayle, que sofreu afronta sexual de um homem que ela conhecia bem, ganha humanidade na representação de Lisi Andrade. A personagem agora está em uma luta infrutífera por justiça, dentro de um sistema que se nutre de procedimentos implacavelmente impessoais, de tênue vínculo com a verdade. Em uma das passagens capitais, ela invade uma reunião de Natal esfregando na cara dos convidados a realidade de sua dor.

Todos se movimentam pela cenografia minimalista de Brunno Anselmo, que consiste em uma plataforma com nichos. Ao longo do espetáculo tais buracos são preenchidos por móveis, que demarcam tanto salas de estar quanto uma cafeteria e um fórum. Além de aproximar o público, a arquitetura cenográfica opera a ideia de um jogo de lego e permite que, dependendo da disposição em que o espectador se encontra, ações e o comportamento dos personagens adquiram matizes e ângulos diferentes. A iluminação de Miló Martins, os figurinos de Anne Cerutti e a trilha sonora de Daniel Maia enriquecem o trabalho.  

No texto, o tema do estupro é tratado com cuidado e visto sob variadas perspectivas. No segundo ato, por exemplo, a caracterização do ultraje é menos evidente comparado à violência sofrida por Gayle no primeiro. Os advogados transformam suas casas em recintos de tribunal e levam seus rancores para seus quartos. Não há distinções entre certo e errado, nem lados óbvios a tomar. Intelectuais privilegiados aprendem que o crime sexual é produto da bestialidade e uma degradação contra um ser humano. E, pior, que eles também fazem parte do sistema de violência.

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )   

(Foto Priscila Prade)

 

Avaliação: Ótimo

 

Consentimento

Texto: Nina Raine

Direção: Camila Turim e Hugo Possolo

Elenco: Anna Cecília Junqueira, Camila Turim, Flávio Tolezani, Gui Calzavara, Helô Cintra, Lisi Andrade e Sidney Santiago.

Estreou: 14/10/2022

Sesc Belenzinho (Rua Padre Adelino, 1000, Belenzinho). Quinta a sábado, 20h; domingo, 17h. Ingresso: R$ 30. Em cartaz até 6 de novembro.

Teatro: O Dilema do Médico

Um médico e pesquisador anuncia ter desenvolvido a cura para a tuberculose, na época, início do século 20, uma doença tida como incurável e letal. No entanto, o tratamento está à disposição apenas para um número reduzido de pacientes. Como sua clínica só pode acolher mais um doente, há dois candidatos disputando a terapia - um jovem talentoso, mas amoral, artista plástico e um honrado clínico totalmente dedicado à classe dos marginalizados. 

Escrita e encenada pela primeira vez em 1906, a sátira do dramaturgo irlandês Bernard Shaw (1856-1950) arremessa dardos tanto contra a prática da medicina privada, num tempo em que o Estado abria mão de sua responsabilidade pública na área da saúde, quanto à decência de gente que brinca de Deus e só se preocupa com suas contas bancárias. Dirigido por Clara Carvalho e encenado pelo Círculo de Atores, que nos últimos anos tem se debruçado sobre a dramaturgia do autor, o espetáculo é uma comédia que camufla uma tragédia.

A trama apresenta cinco caricaturas de médicos, um grupo de amigos que se reúne no consultório particular do doutor Colenso Ridgeon para cumprimentá-lo pela recente conquista do título de cavaleiro, concedido a ele por sua contribuição à medicina. O colóquio dos compadres, que parecem formar uma conspiração para leigos e não uma profissão, revela-se um desfile de criaturas que compartilham suas próprias teorias sobre como curar quase tudo, um tipo de vigarice, diga-se, aceito passivamente pela classe alta.

O enredo acelera após a chegada de Jennifer, anunciada pela funcionária de longa data Emmy. A visitante é mulher de Louis Dubedat, um gênio artístico tuberculoso que precisa urgentemente de socorro. No início, Ridgeon não se interessa muito pelo caso, mas fica impressionado ao contemplar alguns dos trabalhos do rapaz. Para complicar as coisas, ele se apaixona pela moça, rompendo a sua sina celibatária, possível razão dos desconfortos físicos que anda sentindo. Mais adiante, descobre que o seu colega pobre Blenkinsop, um idealista que receita remédios naturais e só atende quem não pode pagar, também está morrendo de tuberculose e requer salvação. O impasse está dado. Como Salomão, deve decidir qual deles é mais precioso para a sociedade e será o último escolhido para o procedimento experimental.

Sem precisar gastar energia entupindo a encenação de referências contemporâneas, a montagem desembrulha um debate envolvente e divertido sobre os “assassinos licenciados ignorantes”, como Shaw gostava de etiquetar estes agentes da saúde. Clara Carvalho tem uma visão clara da medula da história e a pilota de maneira fluída e com rigor cênico. A direção traz à tona a essência dos personagens e extrai de uma obra de mais de um século cada centímetro de sua relevância.   

Híbrido de nomes de gerações e trajetórias distintas, o elenco entrega performances focadas e resiste à tentação da caricatura. Com recursos técnicos aprimorados e sensibilidade, Sergio Mastropasqua sugere em Ridgeon que existe algo de trágico em um homem inclinado a imolar sua ética profissional. Na pele da cativante Jennifer, a atriz Bruna Guerin imprime delicados contornos e um ar de desesperada vulnerabilidade a uma mulher que não regula esforços para exaltar as virtudes e a arte do seu marido.                                                                                   

O bígamo e narcisista Dubedat, que cultiva o péssimo hábito de pedir dinheiro emprestado e não pagar, é desenhado por Iuri Saraiva com dissimulação e acento anárquico. À certa altura, o pintor espeta discurso imprevisível sobre moralidade, esfregando uma singular noção de valores que afronta o senso moral comum. Oswaldo Mendes projeta com autoridade o discreto, sentencioso e aposentado médico Patrick Cullen, para quem as novas descobertas científicas não passam de reciclagem de velhos estudos.

Na composição do cirurgião Cutler Walpole, um palerma que acredita que toda patologia é consequência do envenenamento do sangue e basta remover o inexistente saco nuciforme, Rogério Brito avoluma sua performance com gestual cômico. Na mesma chave de humor, Renato Caldas distingue-se ao dar vida ao presunçoso e afetado doutor Ralph Bloomfield, adepto da ideia de que todas as enfermidades podem ser erradicadas à base de medicamentos que estimulam os fagócitos.

Luti Angelelli é crível na caracterização do oprimido e de aparência maltrapilha Blenkinsop, visto pelos demais como um clínico medíocre. Guilherme Gorski emana segurança como o médico Schutzmacher, orgulhoso da posição que desfruta na coletividade e por sua clientela de elevado poder aquisitivo. Nábia Villela interpreta Emmy com tamanho desembaraço que agiganta um papel pequeno. Restritos à pontuais intervenções, Márcia de Oliveira (Minnie), Rogério Pércore (Redpenny, Morte e Secretário) e Thiago Ledier (jornalista) preenchem o palco destilando desempenhos corretos e sinceros.

A não realista cenografia de Chris Aizner resolve de maneira simples a necessidade de três ambientes – consultório, restaurante e estúdio do artista. Painéis móveis são coreograficamente manipulados para criar os recintos. A coparticipante iluminação de Wagner Antônio se vale de contrastes, como na sequência da morte, que ganha atmosfera pesada. Marichilene Artisevskis assina o figurino, aplicando tons de modernidade ao padrão formal e elegante daquele período histórico. A música de Gregory Slivar complementa a cena com o uso de bons efeitos sonoros.   

Nesta peça, Shaw explicita graves questões que ainda reverberam nos dias atuais. O acesso global aos cuidados médicos continua sendo um ideal distante para a maioria da população. E o dilema do título enseja a discussão de como a presunção de imparcialidade médica mantém-se longe da pacificação. O impactante desfecho põe cara a cara Ridgeon e Jennifer, que se reencontram na exposição póstuma que esta organizou. Ele faz uma confissão terrível e ela alavanca uma defesa amorosa do artista, cuja carreira foi ceifada por uma deslealdade inominável. A herança artística de Dubedat será a partir dali carregada pela ex-companheira, agora empoderada. Trata-se de uma sequência seminal, em que a perseverante Jennifer repudia e liquida o celebrado Ridgeon.

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto Ronaldo Gutierrez)

 

Avaliação: Ótimo

 

O Dilema do Médico

Texto: Bernard Shaw

Direção: Clara Carvalho

Elenco: Sergio Mastropasqua, Iuri Saraiva, Bruna Guerin, Oswaldo Mendes, Rogério Brito, Renato Caldas, Luti Angelleli, Guilherme Gorski, Nábia Villela, Márcia de Oliveira, Rogério Pércore e Thiago Ledier.

Estreou: 20/01/2023

Auditório do MASP (Avenida Paulista, 1578). Sextas e sábados, 20h; domingo, 19h. Em cartaz até 26 de março. 

 

 

 

Teatro: Tudo

O dramaturgo, diretor e ator argentino Rafael Spregelburd não foge da polêmica ao sintetizar os fracassos humanos, num exame irônico do desvirtuamento da essência dos grandes arquétipos e discursos. A instigante peça, que recebeu encenação inspirada de Guilherme Weber, escancara as travas que afetam a dinâmica do trabalho num escritório do Estado, o rebaixamento da religião à crendice rasteira e a conversão da arte em mais um produto descartável de consumo. A degradação dos valores dessas três instituições, que estruturam e interpretam a realidade, é desnudada por meio de um tipo de comicidade desesperada, argumentos filosóficos, narrativas bíblicas e lampejos de mitologia grega.

Ambientada numa repartição pública, a primeira sequência reúne quatro funcionários que não compreendem bem as suas atribuições. Há a presença ainda de um narrador, que comenta de forma desdenhosa os acontecimentos. A alienação, no entanto, não parece incomodá-los. Um deles chega a descrever diligentemente as tarefas ali executadas, porém o incomum é que a exposição do funcionamento está a léguas de distância de uma gestão competente. O quarteto se perde em diálogos inúteis e evasivos. Briga-se por causa do sumiço de um documento. Uma querela do passado gera desconfianças entre dois colegas. Todos especulam a razão de outras agências pegarem fogo. Um deles se mostra indignado com o número exagerado de mictórios nos banheiros de cada andar. Alguém passa o tempo inteiro se desfazendo de móveis e objetos. De repente irrompe uma discussão acalorada em torno de um casaco e cédulas de dinheiro são incineradas. Molde de uma instância do Estado assolada pela irracionalidade administrativa.  

A sequência seguinte se passa durante a ceia de Natal, evento citado anteriormente, protagonizado por uma família disfuncional. A anfitriã convidou um amigo do emprego com o propósito de deixar enciumado o seu ex-marido, um professor de filosofia que cultiva o hábito de se envolver amorosamente com suas alunas. O jantar inclui também um artista conceitual e sua namorada, uma criatura que interage à base de monossílabos e palavras desconexas.

O eixo central gira em torno de um fato já decorrido que está longe de apaziguado. Uma coleção de livros foi queimada na bienal de arte como parte de uma performance e tanto o performer quanto o homem que ingenuamente lhe emprestara os volumes discutem o significado da controversa realização. A tensão aumenta porque começa uma batalha verbal sobre a natureza e o sentido da produção artística. 

Mais curta, a trama derradeira transcorre na residência de um casal em crise, durante uma noite chuvosa. O marido é um escritor de livros infantis, aludido rapidamente no enredo precedente, surpreendido ao chegar em casa e encontrar um médico, que havia sido convocado às pressas pela sua esposa por suspeitar do estado febril do bebê. Uma narradora orbita na cena evocando passagens do Antigo Testamento, atiçando uma correspondência entre os flagelos da passagem bíblica e a situação em andamento. Desde que deu à luz, a mulher entrou em parafuso, passou a temer a morte do filho e evita chamá-lo pelo nome.

Sem maneirismos na direção, Guilherme Weber estabelece uma afinada sincronia de movimentos e coesão dramática. Explora o despojamento do espaço, valoriza a essência dos conflitos e promove natural integração entre elenco e dramaturgia. Os cinco intérpretes estão adequados aos respectivos papéis e disponibilizam teatro pulsante. Não existe qualquer protagonismo e cada um tem o seu grande momento na montagem.

Claudio Mendes, Dani Barros, Julia Lemmertz, Márcio Vito e Vladimir Brichta mobilizam intensamente seus meios expressivos. Dão vida a criaturas neuróticas, compulsivas e delirantes sob uma camada de aparente normalidade. Gente palpável e, ao mesmo tempo, títeres das circunstâncias, que respondem por suas próprias escolhas e omissões. Julia exibe sólida presença no palco. Dani desembrulha desempenho entre o cômico e o pungente, com meticulosa composição corporal. Brichta irradia energia e carisma. Vito e Mendes se apoiam com firmeza em indicações sutis do texto.  

A cenografia limpa de Dina Salem Levy dispensa a grandiosidade. Nenhum material mencionado, como impressos, artefatos e móveis, é representado ou visibilizado. No quadro inicial, um servidor alega que por conta do acúmulo de tralhas no gabinete, um conjunto nunca visto pelo público, acabou levando uma mordida de alguma coisa escondida. A iluminação de Renato Machado, com destaque para um painel móvel fosforescente situado no teto, os figurinos de Kika Lopes, a trilha sonora de Rodrigo Apolinário e a preparação corporal de Toni Rodrigues operam em harmonia. 

Não deixa de ser provocativa a maneira como o autor aponta o dedo para a perversão que acomete a arte, a religião e o Estado. No episódio do meio, por exemplo, o artista é reconhecido internacionalmente por sua obra, mas ele parece pouco inclinado a transformar o mundo através de sua criação, vista como uma iniciativa de empreendedorismo. De um bem essencialmente simbólico acabou virando uma mercadoria vendável em festivais, bienais, galerias e plataformas digitais. Na terceira parte, a fé passa a ser tão somente uma questão de crença, que dispensa evidências como prova. Aqui, a personagem feminina substitui a religião pelo pensamento mágico-místico, que não faz mal desde que impeça que ocorra algo ruim. Tudo é uma fábula moral, igual às de Esopo, mas sem animais, como o espectador é lembrado logo no início.

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

(Foto Flávia Canavarro)

 

Avaliação: Ótimo

 

Tudo

Texto: Rafael Spregelburd

Direção: Guilherme Weber

Elenco: Claudio Mendes, Dani Barros, Julia Lemmertz, Márcio Vito e Vladimir Brichta.

Estreou: 01/09/2022

Sesc Bom Retiro (Alameda Nothmann, 185, Campos Elíseos). Quinta a sábado, 20h; domingo, 18h. Ingressos: R$ 50. Em cartaz até 09 de outubro.

 

 

Teatro: A Moscou! Um Palimpsesto

O patriarca morreu há um ano e chegou mais um aniversário da caçula Irina. Ela e as irmãs Masha e Olga vivem uma vida sem graça em um vilarejo russo na companhia do irmão Andrei. Como desdenham desse refúgio provinciano, sonham voltar a morar na bucólica Moscou, onde passaram uma infância feliz. O desejo do retorno, no entanto, vai gradualmente sendo adiado. A mais velha, Olga, é solteira à beira dos trinta anos e já não vislumbra mais se casar. Em um matrimônio desinteressante com um ex-professor, Masha se apaixona por um vizinho casado com uma mulher louca. A aniversariante do dia é uma jovem que ainda se ilude com um futuro idílico. O emprego, o amor, as amizades e as festas não preenchem o vazio que elas sentem em seu cotidiano.

A montagem da Companhia Setor de Áreas Isoladas, de Brasília, é atraente. Tempos atrás a trupe havia aterrissado em São Paulo trazendo na bagagem o ótimo Encerramento do Amor, do autor francês Pascal Rambert. Agora passou rapidamente pela cidade para apresentar outro trabalho de qualidade, uma livre adaptação de um dos maiores clássicos da dramaturgia mundial, As Três Irmãs, do dramaturgo russo Anton Tchekhov (1860-1904). Certamente o público paulistano ansiaria por uma temporada maior.

Nesta releitura moderna, reverente à essência da obra icônica, a ação teve vez em uma galeria de arte com ares retrô, localizado no bairro de Santa Cecília, o que permitia fácil e imediata identificação com a plateia. Não é por acaso que o subtítulo da peça carrega a expressão palimpsesto - um tipo de pergaminho medieval cujo texto impresso nele podia ser apagado para nova utilização.  

Foi essa ideia de descascar a camada original e elucidar outros sentidos que moveu a diretora e atriz Ada Luana. O público de 25 pessoas por sessão se acomodava em sofás, cadeiras e banquinhos de uma sala de estar e jantar. Em algumas sequências subia um lance de escadas até uma ampla varada. Em poucos minutos a quarta parede era quebrada e o espectador se deixava fisgar pela encenação imersiva e de meios-tons. Como se tratava de celebrar as passagens de ano de Irina, a família compartilhava com a audiência fatias de bolo, taças de espumante, vinho e vodka. A direção imprime diferentes ritmos, intensidade e formas de relacionamento entre os habitantes da casa, sublinhando os seus conflitos e seus questionamentos acerca de suas vidas. Lentamente uma aura de melancolia e niilismo ia se construindo. O que que acontecia às claras tinha tanta importância quanto o que escorria nas entrelinhas.  

A cenografia e figurinos de Roustang Carrilho, além do desenho de luz de Diego Bresani, conciliaram estilo e significado emocional e favoreceram a instauração de um clima de intimidade. Os ambientes e os objetos cênicos, que no início aludiam a um possível ensaio, eram transformados durante a mis-en-scène. Epicentro de toda o enredo, o salão passava por diversas modificações articuladas no decorrer da história pelos intérpretes, que deixavam suas marcas no espaço. Em uma das sequências, samambaias forravam um tapete. Em outra, um guarda-chuva levava a sua própria chuva.

O elenco valoriza os silêncios, os semitons e os detalhes na caracterização destas criaturas que compreendem o sentimento de urgência e a iminência do fim. Afinal, vivem na inércia, incapazes de agir, quase espectros, aspecto fundamental das figuras tchekhovianas – à medida em que o drama avançava, ficava evidente uma decadência gradual, visível na expressão facial e postura física dos atores.

Ada Luana transpira vigor e autenticidade na composição da irritada Masha, a mais propensa a cometer pecados de traição sem o mínimo pudor. Com pulsantes hesitações, Ana Paula Braga encarna a professoral Olga, modelo de delicadeza e fragilidade. Camila Meskell defende com garra a sonhadora Irina, que nutre o desejo de uma vida de conto de fadas e lá adiante se percebe cansada e desapontada - há uma passagem delicada, quando ela simula brincar com um passarinho em suas mãos e ombros. A vulgar Natasha, a esposa dominadora de Andrei, é feita com desembaraço por Taís Felippe. Se são tímidos na hora de compor  seus papeis, Filipe Togawa (Pedro / pianista) e Kalley Seraine (Andrei / violinista) se sentem mais à vontade como músicos. A dupla é responsável pela inédita trilha sonora executada ao vivo, que realça e revela os estados de alma das personagens.   

É interessante observar como o grupo se apropriou da arquitetura versátil da galeria, uma vez que a peça foi concebida no início para o palco italiano – recentemente a companhia se apresentou em Nova York e há possibilidades de levá-la para a Rússia. Neste espetáculo, à altura da complexidade da dramaturgia de Tchekhov, o público sente na pele a devastação emocional das três irmãs. O dramaturgo criou seres que vêm e vão e são engolidos pela rotina que detestam. No desfecho, a canção dolorida interpretada pelas três irmãs captura e expressa a solidão, o tédio, o desencontro e o fracasso. São vozes da despedida e da morte. 

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto Diego Bresani)

 

Avaliação: Ótimo

 

A Moscou! Um palimpsesto

Texto: Anton Tchekhov

Dramaturgia: Ada Luana e Gabriel F.

Direção: Ada Luana.

Elenco: Ada Luana, Ana Paula Braga, Camila Meskell, Filipe Togawa, Kalley Seraine e Taís Felippe.

Teatro: Longa Jornada Noite Adentro

A tragédia exposta aqui por Eugene O´Neill gira em torno da família Tyrone, cujos elementos se baseiam na biografia do dramaturgo americano. Em sua dramaturgia, os personagens vivem à margem da sociedade e nutrem a ilusão do chamado sonho americano. Dirigido por Sergio Módena, o espetáculo começa com Edmund (alter ego do autor) lendo a carta onde ele entrega os originais da peça para a sua companheira Carlota, justamente na data em que comemoravam o décimo segundo aniversário de casamento.

Toda a ação acontece em um único dia no ano de 1912 na casa de veraneio dos Tyrone. Os seus quatro membros se encontram à hora do café, durante o almoço e o jantar e, finalmente, à meia-noite. São momentos, segundo o escritor, em que as famílias costumam se reunir. Metaforicamente, esse intervalo simboliza o tempo da vida.

O patriarca James (Luciano Chirolli) é um homem idoso que há muito abandonou as aspirações de se tornar um grande ator e se resignou a viajar apresentando sempre a mesma peça comercial, um trabalho que não lhe rende prestígio, mas dinheiro - segundo o crítico de teatro Décio de Almeida Prado, O´Neill não teve a coragem de citar o título da obra que encenava, o romance de aventura O Conde de Monte Cristo, de Alexandre Dumas. Sua esposa Mary (Ana Lúcia Torre) abandonou seus sonhos do passado de virar atriz ou freira e hoje se conformou em acompanhar o marido em suas constantes turnês. Viciada em morfina, ela demonstra pouco ou nenhum contato com a realidade desde o nascimento do filho mais novo. Este é Edmund (Bruno Sigrist), um jovem que pretende ser escritor, porém, a carreira pode estar comprometida porque ele tem de lutar contra a tuberculose que o acomete. O irmão mais velho, o alcoólatra Jamie (Gustavo Wabner), foi forçado a seguir os passos do pai e fracassou. Não bastasse a dificuldade de se manter nos empregos, ele ainda tem inveja do talento do caçula. Agregada ao núcleo familiar, a criada Cathleen (Mariana Rosa) a tudo acompanha e algumas vezes tenta dar apoio à patroa.

São figuras em pleno processo de desmoronamento, também vítimas do destino, uma sina que não conseguem controlar. O texto não extrai força somente de seu enredo. Há um drama psicológico no ato de revisitar o passado e trazê-lo ao presente, o que propicia uma sucessão de amargos e até violentos embates entre eles. Na encenação pulsante de Módena, a estrutura de arena do teatro serviu para se criar um ambiente intimista e uma atmosfera de suspense cada vez mais densa.

O elenco exibe performances inspiradas. Luciano Chirolli mobiliza sua conhecida técnica na composição de James, sublinhando o desencanto e as inseguranças de alguém que viu os seus sonhos se espatifarem. Num papel difícil e já interpretado por grandes damas do teatro brasileiro (Cacilda Becker, Cleyde Yáconis e Natália Thimberg) e no cinema por Katharine Hepburn, a atriz Ana Lúcia Torre brilha como a frágil e sofrida Mary, uma mulher que se esforça inutilmente em esconder o seu vício. Gustavo Wabner imprime a amargura e desilusão de Jamie. Com bom rendimento, Bruno Sigrist consegue mostrar a vulnerabilidade de Edmund, que também bebe por se sentir culpado pelo estado emocional da sua mãe. Mariana Rosa é correta na pele da empregada.

A encenação é encorpada por uma equipe técnica de primeira linha. André Cortez concebeu bonitos móveis brancos que, iluminados pela luz branca da sempre competente Aline Santini, provocam belíssimo efeito plástico. Fábio Namatame projetou figurinos clássicos e elegantes. A montagem é pontuada pela envolvente trilha sonora de Marco França.

Vale lembrar que ao finalizar a peça em 1941, O´Neill decidiu que o texto não poderia ser lido nem montado ao longo dos 25 anos seguintes à sua morte. Justificou a exigência com o argumento de que uma das personagens retratadas ainda vivia. No entanto, a esposa Carlota não respeitou a condição e autorizou a publicação e montagem em 1956, três anos depois do falecimento do dramaturgo.

(Vinicio Angelici - O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto Divulgação)

 

Avaliação: Ótimo

 

Longa Jornada Noite Adentro

Texto: Eugene O'Neill

Direção: Sergio Módena

Elenco: Ana Lúcia Torre, Luciano Chirolli, Gustavo Wabner, Bruno Sigrist e Mariana Rosa.

Estreou: 25/06/2022

Teatro Tucarena (Rua Monte Alegre,1024 - Perdizes). Sexta e sábado, 20h30; domingo, 18h30. Ingresso: R$ 80,00. Em cartaz até 04 de setembro.

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