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O Homem Irracional

As aparências enganam, parece dizer nas entrelinhas o cineasta Woody Allen em seu mais recente trabalho. Mas isso é apenas uma primeira leitura do filme, cujo protagonista é um apático e deprimido professor de filosofia que, vamos descobrir, tem  um desvio de comportamento. Ele recebe convite para lecionar em uma universidade do interior dos Estados Unidos e, por conta de sua reputação e prestígio, sua chegada irá provocar alvoroço na comunidade, dividida entre os que apreciam seus artigos polêmicos e aqueles que preferem fofocar sobre sua vida pessoal. Não se sabe se Abe é um excêntrico solitário ou um gênio incompreendido. O fato, no entanto, é que o diretor o insere no cotidiano vulgar e cínico do campus, onde comportamentos obsessivos prosperam e alguém é capaz de proclamar que o renomado mestre foi contratado para colocar um pouco de viagra no departamento de filosofia.

Releitura um tanto cômica de Crime e Castigo, do escritor russo Dostoiévski, citado no longa, a trama ilumina o tema do crime perfeito, assunto explorado em outras obras de Allen, como Crimes e Pecados (1989), Match Point (2005) e O Sonho de Cassandra (2007). Aqui, com levada de humor negro e recheado de diálogos filosóficos. Vivido de forma convincente, espirituosa e tocante por um barrigudinho Joaquim Phoenix, o desleixado Abe questiona a importância no mundo de hoje das teorias, livros e ideias consagradas no universo filosófico. Busca compreender o papel que representa pensadores como Heidegger, Kierkegaard e Kant numa sociedade corrompida e culturalmente empobrecida. Sua visão é sombria e ele vive um mal estar existencial, sem um objetivo na vida – em uma festa estudantil, chega a brincar de roleta russa. Nem interesse por sexo ele tem mais, apesar do assédio de uma professora infeliz no casamento (Parker Posey, em desempenho divertido) e da aproximação da estudante Jill (Emma Stone, crível no desempenho da aluna que se deixa enfeitiçar pelo homem mais velho e sábio). Para desgosto de seu enciumado namorado, ela se torna a confidente intelectual e pessoal do docente.

Há sequências hilárias, como quando o protagonista recebe a visita surpresa da mulher  disposta a levá-lo para cama, encontro regado a diálogos de duplo sentido. O enredo, no entanto, sofre uma reviravolta e passa a incorporar elementos de suspense. Isso acontece no momento em que Abe e Jill estão em um restaurante e escutam, por acaso, a história de um tumultuado processo de divórcio e guarda do filho, comprometido por um juiz amigo de uma das partes. Consciente da injustiça do que ouviu, Abe ganhará um propósito e uma inspiração para sair da inércia, deixando-se levar por uma atitude irracional. Ele passa a planejar uma ação que, na sua percepção, irá tornar a humanidade melhor. Rejuvenescido, com ânimo redobrado, sem remorsos e orgulhoso, Abe se transforma. Retoma o projeto de escrever um livro, ativa a relação com a colega impetuosa e estabelece um vínculo amoroso com a estudante.

Allen deslancha a mudança de rota acentuando seu habitual humor mordaz, sutil e inteligente. Ele exibe habilidade para racionar a tensão crescente, derivada do episódio central, e dar vida ao relacionamento do mestre com as suas duas mulheres. Com uma atmosfera que gradativamente se configura claustrofóbica, o longa endossa outra vez algumas reflexões do cineasta a respeito do crime, pecado e a consciência moral do homem contemporâneo. Trata-se de um conto sobre a ética, porque o protagonista acredita estar imbuído de um senso de retidão em um universo amoral. Ou de uma brincadeira em torno da premissa de que a justiça feita pelas próprias mãos pode tornar uma pessoa mais feliz. Curiosamente, Abe não é punido como um delinqüente ou cai nas malhas da justiça humana. Ele também acaba vítima do acaso. Por um acidente de trabalho, a maior ironia do filme.

(Edgar Olimpio de Souza)

(Foto Divulgação)

 

Avaliação: Bom

 

Homem Irracional

Título Original: Irrational Man (EUA, 2015)

Gênero: Comédia / Suspense, 94 min

Direção: Woody Allen

Elenco: Joaquim Phoenix, Emma Stone, Parker Posey e outros.

Estreou: 27/08/2015

 

Veja trailer do filme:

  

Mapas para as Estrelas

O cineasta canadense David Cronenberg expõe os monstros humanos neste seu mais recente filme, embalado por humor negro e pitadas de melodrama. A Hollywood retratada é um mundo cínico, de egos inflados e excessos de todos os tipos. Pela lente do diretor, as criaturas que por ali circulam merecem mais compaixão do que desprezo, porque tentam sobreviver em um ambiente infestado por fantasmas reais e simbólicos.

São personagens que vazam suas obsessões e desejos e esbarram na dificuldade em escapar de si mesmos. Uma dessas figuras absurdas é a delirante Agatha (Mia Wasikowska), moça com partes do corpo desfiguradas por queimaduras, que parece ter desembarcado em Los Angeles como simples visitante. Na verdade, ela tem planos que vão além do passeio turístico. Graças ao contato com a atriz Carrie Fischer, em pele e osso na trama, descola emprego como assistente pessoal de Havana Segrand (Julianne Moore), uma atriz de meia idade que se encontra à deriva, em luta desesperada para resgatar os dias de glória. A volta por cima pode ser o protagonismo na nova versão de um filme em que sua mãe, morta ainda jovem em um incêndio, havia estrelado em sua breve carreira. A falecida (Sarah Gordon), por sinal, assombra Havana em súbitas aparições pela casa e faz questão de revelar sua decepção com a filha – trata-se de sutil crítica a uma Hollywood que ignora seu passado.

Por caminhos entrecruzados, o público passa a estabelecer as necessárias conexões. Agatha é irmã de Benjie (Evan Bird), um arrogante e ególatra ator adolescente que fez muito sucesso em uma franquia de comédia popular e acabou de passar por tratamento para se livrar da dependência química. Em determinada cena, o mimado menino visita uma vítima de câncer em hospital. A garota elogia o seu trabalho no cinema e ele responde, com mentalidade corporativista, que tal produção alcançou oitenta milhões de dólares no mundo inteiro.

A mãe (Olivia Williams) age como trator no agenciamento do filho e o pai (John Cusack), um psiquiatra xamânico, desenvolve uma terapia do grito, na qual as pessoas vomitam seus traumas e têm reações exasperantes. Uma de suas pacientes, aliás, é Havana e há uma cena na esteira de yoga com clara sugestão de sexo entre eles. Esta família disfuncional tentará afastar Agatha de suas vidas, mesmo à força, que chegou sem avisar e carrega eventos desagradáveis de outrora que precisam ser mantidos em segredo. A fauna de personagens pouco convencionais conta ainda com um flutuante motorista de limusine (Robert Pattinson), um tipo blasé aspirante a roteirista que está disposto a se converter para a Cientologia, uma forma de se projetar na indústria cinematográfica.

Trata-se de um filme que, ao olhar sarcasticamente Hollywood, mergulha em questões espinhosas como abuso infantil, incesto, incêndios misteriosos, mortes abruptas, escândalos de tablóide, aparições fantasmagóricas e revelações escabrosas. O psicodrama emanado lembra, em alguns momentos, A Cidade dos Sonhos, de David Lynch, porém sem o sotaque surrealista daquela produção. Cronenberg esfrega observações sobre como gente famosa se comporta vulgarmente e necessita da adoração incondicional, sob pena de naufragar no álcool ou em terapias escapistas. Hollywood, na visão cáustica do cineasta, é um sistema autodestrutivo. Uma espécie de doença congênita.   

 (Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto Divulgação)

 

Avaliação: Bom

 

Mapas para as Estrelas

Título Original: Maps to the Stars (Canadá,  EUA , França , Alemanha, 2014)

Gênero: Drama, 111 min

Direção: David Cronenberg

Elenco: Mia Wasikowska, Juliette Moore, John Cusack e outros.

Estreou: 19/3/2015

 

Veja trailer do filme:

O Sétimo Selo

O personagem Antonius crê em Deus, mas deseja provas consistentes de sua existência. Também está à procura de um sentido para a vida. Nesta obra-prima, de volta aos cinemas em cópia restaurada em digital, o cineasta sueco Ingmar Bergman examina questões agudas sobre a condição humana – o longa, inclusive, abre com uma citação do Livro do Apocalipse. Em um preto e branco impressionante, que realça o olhar sombrio com que enxerga o homem, o mítico diretor desembrulha cenas inesquecíveis, como a da Morte guiando um grupo de pessoas colina acima. Esta e outras imagens, por sinal, foram celebradas e parodiadas em inúmeras produções cinematográficas desde então. Bergman, o cineasta japonês Akira Kurosawa e o diretor italiano Federico Fellini são nomes que, no século passado, contribuíram decisivamente para a evolução da sétima arte.

Pouca gente sabe, mas a inspiração para um dos maiores clássicos da história do cinema veio em 1956, um ano antes de chegar à tela grande. Enquanto fazia a barba e ouvia Carmina Burana, ópera de Carl Orff, o cineasta foi atormentado pelas imagens de Les Saltimbanques, de Picasso, e de Cavaleiro, morte e diabo, de Albrecht Durer. Também foi acometido por lembranças da lenda de Fausto, o homem que teria selado pacto com o demônio.   

A partir dessa manhã iluminada, Bergman concebeu a trama. Ambientada no século XIV durante a Idade Média, época de convulsões religiosas na Europa, acompanha o retorno do cavaleiro Antonius (Max Von Sydow) e seu escudeiro Jon (Gunnar Björnstrand) das Cruzadas. Ambos chegam a uma terra devastada pela peste negra. Nesse cenário soturno, se deparam com teólogos, responsáveis pela Guerra Santa, que roubam dos mortos, presenciam uma bruxa prestes a ser queimada na fogueira, cruzam com uma trupe de atores bufões, formada pelo jovem casal Mia e Jof (Maria e José) e seu bebê.  

Mas o principal encontro é com a Morte em uma praia rochosa, no instante em que  haviam parado para descansar. Em cena impactante, Antonius desafia a figura sinistra para um jogo de xadrez. Alimenta a esperança de ganhar tempo suficiente para resolver suas dúvidas existenciais, porque busca respostas e anseia saber se Deus realmente existe. No íntimo, acredita que vive num mundo de fantasmas. Tal tormento ele confessa na igreja, para um sacerdote que, na verdade, era a Morte disfarçada. Filho de pastor luterano, Bergman sempre foi fustigado por questões relacionadas a Deus e sua ausência na vida dos homens, tema central neste longa-metragem e que, de maneiras diferentes, contaminou toda a sua filmografia.

O filme, aliás, é pontuado por interpretações religiosas. Cada personagem defende suas próprias convicções religiosas. O jovem ator, por exemplo, afirma ver a Virgem Maria. Aldeões condenaram uma mulher à morte por confiarem que ela manteve relações sexuais com o diabo. Uma procissão de flagelantes, composta por homens, mulheres e crianças vestidos de negros, interrompe uma apresentação dos menestréis. Ao som de cânticos que parecem entoar o fim do mundo, eles se sacrificam com chicotes e se atiram ao chão para pedir perdão ao Pai. 

O título, claramente extraído do Livro das Revelações, não remete apenas ao tema do julgamento final. Mais do que isso, o filme é sobre a ausência de comunicação entre o homem e o criador do universo, a falta de sentido da vida ou a indiferença de Deus. Basta observar como os personagens se dirigem a um Ser ausente, sempre silencioso. Bergman não renega a existência divina, mas questiona o seu aparente alheamento. Curiosamente, a Morte é a única figura que ganhou corpo e expressão no enredo. Há um sentimento de completo abandono que emana daquela gente entregue à própria sorte. A vida é um jogo impossível de vencer, indica o diretor. Mesmo que consigamos estendê-la antes da viagem derradeira, iremos descobrir, desolados, de que nada sabemos sobre ela.  

(Edgar Olimpio de Souza)

(Foto Divulgação)

 

Avaliação: Ótimo

 

O Sétimo Selo

Título Original: Det sjunde inseglet (Suécia, 1957)                                                       

Gênero: Drama, 96 minutos                                                                                                  

Diretor: Ingmar Bergman                                                                                                 

Elenco: Max Von Sydow, Gunnar Björnstrand, Bengt Ekerot, Nils Poppe, Bibi Andersson e outros. 

 

Veja trailer do filme:

Força Maior

Desde a primeira cena, quando um fotógrafo registra retrato improvisado de uma família sueca numa pista de esqui, a imagem deles parece encantadora. Marido, mulher e dois filhos pequenos estão felizes passando férias num sofisticado resort nos Alpes franceses e não escondem isso de ninguém. Ainda no primeiro dia, eles serão flagrados em outras situações idílicas, como na hora em que cochilam juntos na cama ou escovam os dentes lado a lado. A esposa, no afã de tornar a circunstância mais aprazível, chega a repreender o companheiro ao vê-lo fuçando o seu telefone atrás de assuntos relacionados ao seu trabalho.

Nestes minutos iniciais, o filme, que venceu o Prêmio do Júri na mostra paralela no último Festival de Cannes, acompanha o casal em seu esforço de plenitude. A temporada de descanso e lazer de Tomas (Johannes Bah Kuhunke), Ebba (Lisa Loven Kongsli) e das crianças (Clara Wettergren e Vincent Wettergren), no entanto, não será tão bucólica assim. O passeio vai se transformar em um amargo pesadelo. Já no segundo dia, a fachada de perfeição começa a sofrer fissuras durante o jantar ao ar livre no terraço panorâmico do local. Como é praxe, o resort emprega procedimentos de segurança para detonar avalanches controladas. Enquanto sentavam-se à mesa, o dispositivo foi acionado e o deslizamento de gelo provoca uma nuvem branca que avança sobre o ambiente. Amedrontado, porque a parede de neve parecia maior do que o imaginado, Tomas corre, esquecendo-se da mulher e filhos – na fuga, só se preocupa em apanhar as luvas e o iphone.

No final das contas, não era nada, ele retorna e finge que nada de anormal aconteceu. Algo, no entanto, mudou. O que poderia ser uma história para se contar e rir, com os previsíveis embaraços em torno das ações e reações, se desdobra em dois eixos justapostos. O relacionamento começa a esfarelar - ambos deixam de ver um ao outro da mesma forma – e ganha corpo uma provocante reflexão sobre o papel dos gêneros no mundo de hoje. O longa do diretor sueco Ruben Östlund desfia sem pressa essas duas vertentes, valendo-se de edição competente, diálogos afiados, ração de ironia e sugestões musicais. Ele guia a narrativa ora como pungente drama psicológico ora como cortante comédia de costumes. O cineasta traça sutilmente os sentimentos de perplexidade, decepção e raiva que envenenam a união.

Ao ser confrontado com sua suposta covardia, Tomas começa a desmoronar emocionalmente. Em encontro com um velho amigo (Kristofer Hivju) e sua jovem namorada (Fanni Metelius), por exemplo, o desconforto dele é visível porque Ebba faz questão de relatar o incidente sob o seu ponto de vista. Está assombrada com o comportamento do companheiro, inconformada por ter priorizado salvar a própria pele. Na função de marido, pai e homem, ele não teria agido da maneira esperada e a tibieza demonstrada deveria envergonhá-lo. Ironicamente, as imagens do episódio foram captadas pelo iphone do marido. Em sua defesa, Tomas tenta racionalizar a suposta escapada, mas seu estado patético é evidente. Há uma cena ilustrativa: ele sofre um colapso no corredor do hotel, enquanto é observado pelo indiferente zelador. O conflito explodiu de vez e, no calor da situação, o casal se revela incapaz de discernir qualquer verdade objetiva. Desconfia-se que outra avalanche, desta vez letal, pode eclodir a qualquer instante. 

Aos poucos, o filme consolida uma crítica mordaz do ideal masculino de provedor e protetor, dos papéis estabelecidos para o homem e para a mulher na sociedade atual e da instituição do casamento. Não por acaso, o título exprime o termo jurídico pelo qual um acontecimento inesperado, impossível de ser controlado ou antecipado, trava o cumprimento de um contrato. Em entrevista, Ostlund afirmou ter lido que durante desastres marítimos os homens, e não as mulheres, são mais inclinados a fugir para se proteger. O cineasta também pesquisou casais que sobreviveram a naufrágios e tsunamis e descobriu um elevado índice de divórcio entre eles. São dados surpreendentes para muita gente. A obra tem desfecho enigmático, envolvendo um ato de heroísmo e uma tragédia em gestação. É possível que sejam farsas construídas com o intuito de afagar os filhos, ludibriar os amigos e fingir que realmente eles formam um casal magnífico, como desejavam o tempo todo demonstrar.    

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )  

(Foto Divulgação)

 

Avaliação: Ótimo

 

Força Maior

Título Original: Force Majeure (Suécia, Dinamarca , França , Noruega, 2014)

Gênero: Drama, 120 min

Direção: Ruben Östlund

Elenco: Johannes Bah Kuhnke, Lisa Loven Kongsli, Clara Wettergren e outros.

Estreou: 05/03/2015

 

Veja trailer do filme:

Filme mostra autodestruição da família burguesa

Esqueça a maldade representada pela tradição hollywoodiana: serial killers, monstros, psicopatas, terroristas; e russos, árabes e vilões em geral. Para assistir ao filme Borgman, do diretor holandês Alex Van Warmerdan, o espectador deve ter em mente que está entrando no terreno do Mal surrealista e metafísico.  

O longa é incômodo porque ele não aborda o Mal como uma entidade que nos espreita e nos ameaça com estupradores e assassinos, mas o Mal que pede licença para entrar em nossa casa porque ele já está dentro de nós. O Bem e o Mal como os dois lados da moeda de um jogo cósmico, inseparáveis: ordem/caos, vida/morte, prazer/dor, amor/ódio e assim por diante. Tudo que é construído, um dia cairá; não há felicidade que dure. O Universo explode em vida e beleza, mas também caminha para a entropia e desordem.

O cineasta Van Warmerdan nos conta uma história com evidentes influências de filmes como Teorema, de Pasolini, ou Viridiana, de Buñuel: a velha narrativa da família invadida pelo Mal que, de tão contada no cinema, transformou-se numa espécie de subgênero: a Home Invasion, de filmes de gêneros tão diversos como Cabo do Medo (1991) a Esqueceram de Mim (1990).

Mas com as referências de Pasolini, Buñuel e da própria obra literária de Marquês de Sade (admitida pelo diretor em entrevistas), esse subgênero será renovado de forma perturbadora – como uma família é capaz de se desintegrar até a insanidade de tal maneira que o Mal parece se tornar um mero observador de uma maldade já inserida na própria psiquê humana.

O filme abre com uma citação bíblica que será o resumo de tudo que o espectador acompanhará: “E eles desceram sobre a terra para fortalecer suas fileiras”. Em seguida vemos uma estranha sequência onde caçadores armados de espingarda e lanças e ajudados por um cachorro estão à procura de alguém em uma floresta. Vale lembrar que um desses cavalheiros raivosos e armados é um padre!

Eles estão claramente atrás de algo mau que se esconde sob o solo. Eles descobrem o refugio de Camiel Borgman (Jan Bijvoet) que consegue escapar por um túnel a tempo de avisar outros que estão escondidos sob a terra mais adiante – Pascal (Tom Dewispelaere) e Ludwig (performado pelo próprio diretor).

Quem são esses homens? Borgman é apenas um sem-teto? Por que as pessoas, incluindo um padre, querem matá-lo? Por que moram no subsolo? O que estará planejando em seguida? Será que ele é um dos que desceram à terra? Tudo é uma parábola religiosa?

Borgman bate na porta de Richard (Jeroen Perceval) e Marina (Hadewych Minis), chefes de uma família aparentemente normal de classe média alta e completa com crianças e uma babá regular numa ampla casa. Tudo que ele pede é um banho. Bem articulado, diz conhecer Marina. Ela nega, mas já é tarde: a primeira trinca já se abriu no relacionamento do casal. Enfurecido, Richard espanca o “sem-teto” e o afasta dali.

Mais tarde, Marina descobre Borgman escondido na garagem. Penalizada e culpada pelo seu marido tê-lo agredido e vendo seus ferimentos, Marina deixa-o ficar escondido em casa: dá a ele um banho e uma refeição.

A partir daí, a narrativa começa a progredir entre uma tênue fronteira com o sobrenatural na forma como ele desliza pela ampla residência. Borgman sabe se esconder, muitas vezes ele tem que dizer “eu estou aqui” porque ninguém o ouve entrar. Aos poucos, o visitante começa a influenciar Richard, Marina e seus filhos.

Marina esconde a existência de Borgman para o seu marido. Num misto de culpa e atração sexual, ela mantém o segredo fazendo um pacto com a babá. Enquanto isso, Borgman conta estranhas histórias para as crianças antes de dormir, sobre, por exemplo, o quanto Jesus é indiferente com todos nós.

Interpretações religiosas e sociológicas. As mazelas daquela família de classe média alta começam a aflorar: o racismo, a agressividade e a ambição competitiva e profissional de Richard; o distanciamento dos pais em relação aos filhos que entregam todos os afazeres paternos à babá; as insatisfações conjugais de Marina que tenta mitigar se fechando num pequeno ateliê de artes no amplo jardim da casa.

Aos poucos percebemos que algo maior está sendo articulado por Borgman. Seus amigos da floresta chegam para ajudá-lo, depois que ele é admitido oficialmente pela família como jardineiro. Com outras roupas e barba feita, Richard não o reconhece e o contrata como mais um empregado da casa. Borgman e seus ajudantes têm algum plano sinistro para aquela família.

O longa favorece diversas interpretações, sejam religiosas (metáfora do espírito do mal no mundo, demônios e demais forças das trevas) ou sociológicas - a hipocrisia de uma família burguesa e a culpa por viverem na opulência material.

E segundo, a imagem recorrente dos momentos em que Borgman está influenciando os sonhos de Marina: ele está seminu, na cama, sentado sobre as pernas de Marina e olhando fixamente para ela como se acompanhasse seus sonos por alguma tela mental. A óbvia referência tanto imagética quanto simbólica dessas sequências e a do íncubo – entidade descrita desde a Antiguidade como um demônio na forma masculina que se encontra nos sonhos femininos. Ele toma a forma mais atraente para a vítima, atraindo-a com seu magnetismo para sugar a energia sexual.

Essa narrativa religiosa não é tão óbvia para Van Warmerdam. O leitor deve lembrar que o filme dialoga com uma visão ontológica do Mal presente desde as obras de Marquês de Sade: há uma maldade, um lado trevoso, o verdadeiro mal potencialmente se escondendo não apenas presente naquele que bate a sua porta, mas na mesa da sala de jantar, nos sonhos em sua cama após a relação sexual com o marido, no coração dos nossos lares e nas histórias de ninar que contamos para nossos filhos.

Convivemos tanto com o Bem quanto com o Mal, assim como o ar que respiramos. Basta um agente catalisador para que tudo seja revelado... um Borgman. O diretor não quer mostrar o mal por meio de pessoas estranhas ou bizarras, mas através daquelas que poderíamos encontrar na esquina ou num supermercado. Todos os personagens no filme são meio-anjo, meio-demônios.

O Mal é estóico. Isso fica claro pela forma como o grupo formado por Borgman, Ludwing e Pascal são apresentados ao longo do filme: não riem ou parecem sentir prazer ou gozo no que fazem. Ao contrário da vilania hollywoodiana onde o mal faz tudo com prazer perverso (gargalhadas malignas, olhares ferinos e maliciosos etc.), no filme o trio que conspira contra a família parece fazer tudo com estoicismo e com um leve ar de monotonia. Parecem burocratas de alguma repartição pública de uma sucursal do inferno enviado para a Terra.

Lembra a forma como Marquês de Sade descreve o libertino: tal como um cientista, não deve ser tomado pela paixão – deve ser neutro, melancólico, apático e estóico, muito longe da obsessão, selvageria ou loucura – “O Mal deve ser praticado sem paixão”, dizia Sade.

Assim como Marquês de Sade pressentiu na época (1740-1814) que o Iluminismo, a Razão e a Ciência produzem o seu inverso (a violência, a frieza e a indiferença), também Borgman sabe que toda harmonia familiar burguesa produz o contrário: frieza, distanciamento, culpa e ruína final. Ele veio para a Terra não como uma entidade maligna que veio nos corromper, mas como um mensageiro para nos lembrar que tudo já está corrompido de antemão.

Borgman se inscreve na tradição de filmes gnósticos sombrios como Laranja Mecânica, de Kubrick, ou Saló – os 120 Dias de Sodoma, de Pasolini. São produções que causam repulsa e mal estar por que nos lembram que a única forma de salvação não está na moralidade dos  bons comportamentos e valores positivos – mas através da renúncia estóica de um mundo que já está corrompido desde a Criação.

(Wilson Ferreira, do site Cinema Secreto: Cinegnose)

(Foto Divulgação)

 

Borgman

Título Original: Borgman (Holanda / Bélgica / Dinamarca, 2013)

Gênero: Drama, 113 min

Direção: Alex Van Warmerdam

Elenco: Jan Bijvoet, Hadewych Minis, Jeroen Perceval e outros.

Distribuição: Drafthouse Films

 

Veja trailer do filme:

Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância)

É a arte imitando a vida. Da mesma forma que Michael Keaton conquistou notoriedade na pele do homem morcego em Batman (1989) e Batman: o Retorno (1992), seu personagem no oscarizado Birdman também é um ator que virou celebridade por ter encarnado um super-herói em três sequências de sucesso. Se nos anos seguintes Keaton nada fez de muito relevante no cinema, na ficção o protagonista imergiu no ostracismo, após recusar uma quarta continuação da franquia. No longa, Riggan Thomas espera obter o reconhecimento artístico por meio da montagem de uma peça de prestigio. Na vida real, o Oscar, que não foi para o ex-Batman e caiu no colo de Eddie Redmaney (A Teoria de Tudo), seria o a cereja do bolo da sua volta por cima.

Parênteses: Holywwod, aliás, adora retornos de estrelas que estavam esquecidas. John Travolta renasceu ao brilhar em Pulp Fiction (1994), de Quentin Tarantino, e Mickey Rourke saiu da rota de decadência com a interpretação de um boxeador em O Lutador (2008), de Darren Aronofsky.  

Com assinatura do cineasta mexicano Alejandro Gonzalez Iñárritu (Babel / 21 Gramas), melhor diretor segundo eleitores do Oscar, o filme pode ser definido como uma peculiar comédia dramática, encharcada de metalinguagens e auto-referências, que fala sobre o canto da sereia da fama. Keaton vive o artista de meia idade que, enfastiado de vestir o herói com super poderes, capaz de voar e mover objetos pela força da mente, pretende oxigenar sua carreira e colher o prestígio de estrelar espetáculo na cultuada Broadway. Nesse sentido, aposta na adaptação teatral de um romance clássico do escritor americano Raymond Carver, chamado O que Falamos Quando Falamos de Amor, a ser levada no conceituado circuito teatral de Nova York.     

A empreitada, no entanto, se revela mais difícil do que se imaginava. Uma temida crítica de teatro desconfia que o tiro sairá pela culatra porque ele não seria mais um ator, mas uma celebridade. A filha problemática Sam (Emma Stone) acabou de sair de uma clínica de recuperação de dependentes químicos e passa parte do tempo acomodada na beira do telhado do prédio onde se localiza o teatro. Uma das atrizes da companhia, Lesley (Naomi Watts), está insegura, enquanto a colega Laura (Andrea Riseborough), eventual amante de Riggan, pode estar grávida dele. Dias antes da estréia, um integrante da trupe é vítima da queda de um refletor e precisa ser rapidamente substituído. Faltam opções, alerta o agente e produtor (Zach Galifianakis), porque Woody Harrelson está envolvido com Jogos Vorazes, Robert Downey Jr. filma Homem de Ferro e Michael Fassbender foi escalado para X-Men. A solução surge na figura do arrogante Mike Shiner (Edward Norton), discípulo do famoso Método da Actor´s Studio, uma escola de atores que propõe imersão total no personagem. Estilo fanfarrão, o substituto chega a estragar um ensaio por ter tido ereção em cena de intimidade na cama com Lesley.

As complicações não param por aí. Riggan é assombrado por uma voz, que insiste em antever mais um fracasso na sua vida. Simbolicamente, o super-herói Birdman continua irmanado nele. Ele levita, estala os dedos e produz explosões de carros, destrói o camarim num acesso de raiva. Em cena desconcertante, Riggan acidentalmente corre pela Times Square vestido só de cueca, para delírio de uma multidão de fãs que o persegue.         

O filme é mais do que uma sátira. Também é uma crítica bem humorada ao culto às celebridades, à presunção da Broadway e ao narcisismo de Holywood. Em suma, uma ironia mordaz a uma cultura cinematográfica cada vez mais infantilizada – basta observar as alusões feitas aos atores de prestígio em produções absolutamente caça-níqueis. Keaton é um dínamo na tela. Na trama, ele faz vibrar a luta desse artista pela integridade no afetado mundo do entretenimento americano, desembrulhando performance impactante, que combina ultraje, gana e melancolia.

Toda a história se desenvolve como se fosse um único plano-sequência, dando a impressão de que a produção foi rodada sem cortes. Flutuante, a câmera cruza corredores acanhados, sobe e desce escadas, circula pela rua, projeta-se de cima para baixo, faz movimentos inusitados. Em alguns momentos, o estudado exercício de estilo ameaça engolir o peso emocional do enredo – a sutileza desaparece e a técnica parece existir apenas para brincar com a percepção do público. Seja como for, o truque da edição invisível adiciona charme a uma obra temperada por humor absurdo e que reúne personagens com camadas variadas de perturbação. O tema do artista empenhado em salvar sua carreira do abismo, e por isso se dispõe a mover montanhas, não é novo. Aqui, além dos egos inflados, o maior inimigo de Riggan é o seu demônio interior.  

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto Divulgação)

 

Avaliação: Bom

 

Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância)

Título Original: Birdman or (The Unexpected Virtue of ignorance) (EUA, 2014)

Gênero: Comédia dramática, 119 min

Direção: Alejandro Gonzalez Iñárritu

Elenco: Michael Keaton, Edward Norton, Naomi Watts e outros.

Estreou: 29/01/2015

 

Veja trailer do filme:

Winter Sleep

Inspirado em contos do dramaturgo russo Anton Tchecov, o filme denso e intimista do cultuado diretor turco Nuri Bilge Ceylan (3 Macacos / Era uma Vez em Anatólia) explicita a lenta radiografia de um personagem dúbio. No caso, a de um rico proprietário de um pitoresco hotel instalado numa isolada e gélida região montanhosa da Capadócia, em terras que herdou de sua família. Ex-ator, ele assina coluna em um jornal local, onde aborda temas sobre arte e espiritualidade, e cultiva o projeto de escrever a história do teatro turco. Um sujeito, à primeira vista, generoso e de modos afáveis, a ponto de colher cogumelos nas colinas para oferecer aos que estão hospedados em seu estabelecimento. Seu perfil, no entanto, é enganoso. No fundo, Aydin é um intelectual narcisista e arrogante, que acredita ser progressista e disseminar humanismo aos seus hóspedes e inquilinos.

A aparência culta e acessível não tarda a desmoronar. Um menino, filho de um locatário desempregado, ressentido e ameaçado de despejo por inadimplência, arremessa uma pedra na janela do carro de Aydin. O incidente irá desdobrar uma série de episódios que revelarão um homem hipócrita e cruel. A face sombria de sua personalidade pode ser vislumbrada, por exemplo, no momento em que ele estende a mão para o garoto beijá-la, como sinal de que está disposto a conceder perdão. Forçada a se ajoelhar, a criança acaba desmaiando diante da humilhação, para desespero de seu tio, um tipo adulador de sorriso nauseante. 

Na esfera privada, o temperamento intimidador do senhorio ganha contornos mais visíveis. Sua relação com a irmã recentemente divorciada Necla, residente na propriedade, padece de falta de calor humano. Eles mantêm longos diálogos, discutem a ética da criação literária, mas comumente as conversas descambam para insultos recíprocos, como quando ele zomba do pacifismo dela. Com a bela e jovem esposa, a voltagem do estresse é sempre alta porque o relacionamento esfriou faz tempo e ele contribui para arrastar o casamento ao interferir grosseiramente no projeto de Nihal de arrecadar fundos para assistir uma pobre escola local.           

Uma passagem em que o casal imerge em uma guerra verbal sem explosão é uma das mais cruciantes da obra. A interlocução é tensa, de angústia palpável, faz vazar emoções e sentimentos reprimidos. Pelos flancos, a mulher está tentando compensar uma vida anulada apadrinhando uma ação de caridade. Sentindo-se sufocada no casamento, deixa-se flertar com um professor solteiro que a ajuda na tarefa. Ao perceber que a bondade dela é uma maneira de escapar da asfixia conjugal, o marido quer saber o que fez de errado, quais são as suas culpas. É curioso observar que o nome do hotel, Othello, extraído de conhecida tragédia de Shakespeare, evoca o ciúme presente na obra do dramaturgo inglês e as relações envenenadas que permeiam aquela e esta trama. 

Ceylan define as estruturas de poder em jogo e joga luz nesse homem multifacetado que, indiferente ao sofrimento ao seu redor, apenas simula se importar com sua família e comunidade. Hábil, o diretor realça a miséria moral em que vivem aquelas criaturas sem rumo. O roteiro avança sem nunca comprometer o seu condão de reflexão. O mergulho sutil e piedoso na fragilidade humana e nas auto-ilusões transcorre em ambientes fechados, de atmosfera opressiva, que parecem blindados aos valores da cultura e civilização. Trata-se de um drama amargo, serenamente denso, impregnado de imagens impressionantes, como o branco amedrontador das montanhas e a perseguição e captura de um cavalo selvagem. No longa, as alusões a Dostoievski e Strindberg são evidentes. Desamparadas, as figuras que desfilam pela tela encontram-se sem perspectivas de uma redenção pessoal. Em uma visita à casa da família do garoto que apedrejara o jeep, uma perplexa Nihal descobre que nem todos estão abertos aos seus arroubos de generosidade. Nesse mundo desajustado exposto pelo filme, que faturou o prêmio máximo no Festival de Cannes 2014, só o altruísmo não é o bastante.     

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )  

(Foto Divulgação)

 

Avaliação: Ótimo

 

Winter Sleep

Título Original: Kis Uykusu (Turquia/Alemanha/França, 2014)

Gênero: Drama, 196 min.

Direção: Nury Bilge Ceylan

Elenco: Haluk Bilginer, Melisa Sozen, Demet Akbag e outros.

Estreou: 07/05/2015

 

Veja trailer do filme:

Ida

Entender a proposta central de um filme apenas pelo que se vê na tela pode ser uma armadilha. Principalmente quando remete a tema complexo como o extermínio de judeus poloneses durante a Segunda  Guerra Mundial (1939/1945), mas discute a Polônia atual. E é tratado como a luta de duas judias para localizar onde sua família foi enterrada vinte anos atrás, em plena ocupação do país pelos nazistas.

Afinal são duas mulheres remexendo num baú de najas, quando há um véu cinzento a encobrir o passado, nada lisonjeiro. Notadamente porque as autoridades que deveriam tratar o caso com responsabilidade preferem prender uma delas, por desacato e perturbação à ordem. Assim, a obra (Oscar de Filme Estrangeiro 2015) do cineasta polonês Pawel Pawlikowski, passada nos anos 1960, em preto e branco, cheio de criativas elipses e clima opressivo, ganha em interesse, mistério e suspense.

No entanto, ao pôr a ex-juíza Wanda Cruz (Agata Trzebichowska) e sua sobrinha, a noviça Anna (Agata Kulesza), nesta instigante busca, está fazendo um acerto de contas com o passado e tratando da perda de poder pelos comunistas durante a Queda do Leste Europeu. E a situação em que Wanda se encontra bem o simboliza, pois lhe restou apenas a memória de um passado que ainda a estimula.

A investigação por ela conduzida leva-a a desvendar o que ocorreu com sua irmã Róza, o cunhado e o sobrinho, ainda criança, e com a própria Anna. Não pelas tropas nazistas, mas por camponeses, vizinhos de sua família, que se valeram da perseguição aos judeus para se apropriar de suas propriedades. Fizeram parte, assim, dos três milhões de judeus que, junto com outros 2.850 milhões de poloneses, foram executados naquele período.

A ousadia do diretor está em abordar tal fato, numa época em que ainda não se enfrentou na Alemanha, na França, na Itália e outros países europeus a responsabilidade dos cidadãos comuns, a maioria silenciosa, pelo extermínio de 5,7 milhões de judeus e de milhões de comunistas, resistentes e trabalhadores. Na Polônia morreram 160 mil soldados e 2,4 milhões de civis. E em toda a Segunda Guerra Mundial, 59,6 milhões, dentre eles, 26 mil soldados e mil civis brasileiros.

Em duas sequências, Pawlikowski dá conta de seu tema: I - na negociação de Wanda com o filho do velho Marek, para que ele revele o que aconteceu com sua família; II - na frieza com que o camponês, enfim, retira de si a carga pelos assassinatos e ela se livra do mistério. Seu alívio poderia ser o de uma família brasileira, cujo ente querido foi “desaparecido” e, enfim, pode lhe dar um enterro digno. Entretanto, paira ainda sobre o país a tutela militar que torna a “democracia” uma concessão, não uma conquista, como realmente foi.

O tema central do filme encerra-se com o acordo entre Wanda e o camponês, não o filme em si. Surge então o paralelo feito pelo cineasta. Ela é o personagem emblemático da Polônia atual, pós-queda do Socialismo Real. Ex-juíza, diz à sobrinha que outrora tinha poder, chamavam-na “Rosa, a Vermelha”. No entanto, uma vez destituída do cargo, nenhum poder ou influência lhe restou.

Isto não a impede de encontrar tempo para se divertir, fazer amizades, frequentar bares e namorar. Talvez uma forma de fugir à melancolia, pois, diante da descoberta do que ocorreu à família e a perda de poder, se desnorteia. Seu gesto desesperado mostra o quanto ela se vê impotente para reagir e encontrar soluções para os novos desafios e recompor as forças em meio ao caos.

O diretor  fecha esta discussão com a introspectiva Anna, que se chama Ida. Seu encontro com a tia a mergulha no redemoinho da vida real, materialista, que exige dela iniciativa e interação. Porém, não está preparada para o choque de ser judia e ainda por cima ter de ajudar a tia a desvendar seu passado. É, para ela, a Via-Crúcis. Mas, sensível, descobre outro mundo e nele o saxofonista Lis (Dawid Ogrodnik), que toca jazz num clube noturno.

Ela se digladia com a tia, por esta querer incutir nela visão diferente da recebida no convento. No entanto, quando Wanda sucumbe, ela cai numa onda de vícios e sexo. São nestas sequências que o cineasta desmonta a proposta central do longa. Notadamente na conversa de Ida com Liz. Ela lhe pergunta o que será a vida deles juntos. “De trabalho, passeios, dificuldades, enfim, igual ao que a vida normalmente é”, lhe responde ele.

A opção dela não é ajudá-lo a enfrentar as dificuldades, para melhorar a vida do casal e dos jovens de sua geração. Prefere a clausura, onde a contemplação, a obediência, o silêncio, são respostas para ela, em total mergulho na metafísica. Com isto, Pawlikowski quer dizer que a religião tornou-se a solução contra os males advindos da crônica crise do neoliberalismo. Se isto já era falácia em seu nascedouro, hoje é muito mais. Desta forma, ele facilita o jogo do sistema.

(Cloves Geraldo, do site Vermelho)

(Foto Divulgação)

 

Ida

Título Original: Ida (Polônia/Dinamarca. 2013)

Gênero: Drama, 82 minutos.

Direção: Pawel Pawlikowski

Elenco: Agata Kulesza, Agata Trzebichowska, Dawid Ogrodnik e outros

Estreou: 01/01/2015

 

Veja trailer do filme:

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