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O Corte

A impressão é a de que todo mundo convive com algum tipo de culpa nesta peça do dramaturgo britânico Mark Ravenhill. Indefinida no tempo e no espaço, a trama, encenada por Daniel Lopes, embute um enigma não totalmente esclarecido e insinua um discurso político pelas suas bordas. A ação tem início em um ordinário escritório governamental, onde um homem está determinado a passar por uma cirurgia, o tal corte do título, que, acredita, irá lhe conceder uma espécie de liberdade.

Ao que parece, o procedimento médico suprime o desejo e a memória e pode provocar a morte. Claro, é um simbolismo para ilustrar a natureza tirânica do Estado, com suas normas obscuras, hierarquias inflexíveis e rarefeita civilidade. Quem irá recepcioná-lo, e tentar demovê-lo do propósito, é um funcionário do alto escalão, saturado de seu papel dentro da instituição e propenso a surtos de irritação. Em surpreendente inversão, Paul oferece-lhe alternativas, como o exército, a universidade e mesmo a prisão, possibilidades rejeitadas por John.        

Na cena seguinte, o burocrata encontra-se em sua casa, ao lado da esposa, com quem mantém uma relação cheia de fissuras. A instável Susan, que suspeita da atividade profissional do marido, está insatisfeita sexualmente, não quer mais dormir na mesma cama e reclama do fato de ele chorar sempre que fazem amor. O casal se vê unido apenas no sentimento afetuoso pelo filho Steven, um estudante que flerta com um cenário político mais liberal. Ela ainda trata a empregada imigrante Mina com desdém e desprezo por julgá-la incompetente, reproduzindo na esfera privada o espírito de opressão reinante.

No terceiro e último segmento, decorridos alguns anos, o planeta passou a ser regido por outra ordem. Paul e Steven se confrontam numa exaltada discussão sobre métodos de tortura. Recente opressor, o filho se envolveu em movimentos estudantis que lutaram pela revogação da técnica do corte e o ex-todo poderoso pai agora é um prisioneiro ávido pela execração para aliviar a sua culpa.

Por vezes o texto, uma utopia às avessas, desliza para um exercício vago, carente de matéria dramática. Há também relativa imprecisão no tocante ao dispositivo cirúrgico em vigência, se administrado como castigo a um crime ou se executado arbitrariamente. A cuidadosa direção de Daniel Lopes contorna esses embaraços disponibilizando um espetáculo com pegadas de ironia e paradoxos, ressaltando a tensão do enredo, a apreensão dos diálogos e o desassossego dos personagens.

Hélio Cícero transforma Paul em uma criatura perturbada psicologicamente – lacaio do Estado, ele carrega o fardo de infligir dor aos outros e desumanizá-los. Ao longo da encenação, o ator transita da autoconfiança para a dúvida, da angústia para a sensação de que o personagem foi definitivamente tragado pela nova realidade. Em interpretação crível, Adriana Pires dá substância à gelada e ansiosa Susan, mulher mais alarmada com a mesa de jantar do que com o casamento em decomposição. No corpo do filho impassível, Felipe Ramos inocula intensidade a Steven, um indivíduo que revela inacreditável placidez na hora de censurar o pai. Felipe Hintze empresta um ar chocantemente sincero a John, o cara em processo irreversível de auto-aniquilação. Com pouca participação, mas seguras em cena, Priscila Castelo Branco (Gitta) e Michelle Sampaio (Mina) incorporam figuras de trejeitos robóticos, destituídas de emoção e reação, até em situações de humilhação, caso específico da funcionária do lar.  

Tudo transcorre em um ambiente asséptico, frio e impessoal, na concepção cenográfica de Luiza Curvo. Com sua transversal representação do autoritarismo, a peça inquieta o espectador ao espelhar uma sociedade brutalizada, intolerante às diferenças, que aprecia valorizar expressões como “metas de desempenho”, vociferadas em determinadas passagens. O autor certamente se inspirou nas obras 1984 e Admirável Mundo Novo, ficções que expressaram o pesadelo de sistemas totalitários programados para proporcionar aos seus cidadãos uma felicidade compulsória. Ravenhill tece sutil comentário sobre a mentalidade de colonialismo e de campo de concentração que ainda contamina o ser humano em circunstância de poder. Ele sugere haver mais semelhanças entre governos coercitivos antigos e atuais do que gostaríamos de admitir.  Ou seja, em sua ótica, nada mudou. O homem está sempre inventando e reinventando a roda da opressão. Na trama, um regime acabou destronado e outro galgou o seu lugar, imbuído da promessa de novos ideais, imediatamente descartados. A parábola é crua: os efeitos degradantes de um estado opressivo devastam tanto os oprimidos quanto quem oprime.  

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )  

(Foto: Leekyunng Kim)  

 

Avaliação: Bom

 

O Corte

Texto: Mark Ravenhill

Direção: Daniel Lopes

Elenco: Adriana Pires, Felipe Hintze, Felipe Ramos, Hélio Cicero, Michelle Sampaio e Priscila Castelo Branco.

Estreou: 19/10/2016

Teatro Faap (Rua Alagoas, 903, Higienópolis. Fone: 3662-7233). Quarta e quinta, 20h. Ingresso: R$ 50. Até 15 de dezembro. 

Mais uma vez o Sobrevento ousou e acertou. O novo trabalho da companhia, que tem quase três décadas de existência, é tocante e comovente. Vale-se de objetos que ganham vida, e se relacionam com atores, para falar de uma época marcada pela exaltação do individualismo. Os personagens da peça são seres solitários, transitam no vácuo, meio que sem rumo. Por vezes encontram-se confinados em espaços exíguos, como uma casa de papelão ou uma oficina de alfaiataria. Estão submetidos a ações árduas e fatigantes, como caminhar pisando apenas em pares de sapatos enfileirados ou carregar uma trouxa de malas, saltando de cadeira em cadeira, até perceber que todo o esforço resultou em nada. Há um esgotamento implícito em seus movimentos, de se tentar conseguir alguma coisa que não se sabe bem o que seja. Eles se revelam desesperados para sair do lugar, ora tentando alcançar um trem que passa ora pedindo carona para veículos que nunca param. Alguns só têm como companheiros um pássaro na gaiola ou um peixe no aquário. Outros desejam regressar a um ponto que perderam e, lá estando, continuam a sina solitária. Ou seja, as situações escancaram níveis variados de conflitos pessoais, desajustes em relação ao entorno, uma sensação terrível de ausência. São tipos perdidos em um cotidiano que aboliu o espaço para o sonho.   

Visualmente sugestivas, como se fossem instalações de artes plásticas, as quinze cenas emaranhadas na montagem assemelham-se a campos de prova e decisão. Seguem a lógica de um espetáculo circense, dotado de números de equilíbrio e contorcionismo que o público acompanha com ansiedade e apreensão. Afinal, as figuras ali reunidas vivem numa espécie de corda bamba, enfrentando o tempo todo estágios que as levam cada vez mais um degrau abaixo. A impressão é a de que se debatem em areia movediça e precisam escapar urgentemente dessa armadilha. Estão procurando algum lugar? Alguém? A própria identidade? Um sentimento de culpa cristã pesa sobre eles. Uma bailarina (Sueli Andrade) rodopia e ameaça se perder em moto contínuo. Uma menina aflita (Liana Yuri) perde o fôlego na tentativa de salvar um peixe. Um homem (Maurício Santana) se esforça para conquistar uma jovem, oferecendo jantar regado a vinho, viagem a Paris e até a possibilidade de formarem uma família com muitos filhos. Uma mulher (Sandra Vargas) quer levar todos os seus pertences numa mala e acaba perdendo a viagem. Um moço (Daniel Viana) exerce atividade tão penosa que, lentamente, se transforma em animal.  

Interessante notar como os objetos, que ganham riqueza metafórica, são manipulados com destreza pela trupe, que deixou a função de narrador para assumir a de personagem. Um casaco de pele pendurado num manequim sinaliza a presença feminina. Uma mala é aberta e uma moça some dentro dela. Uma camisa jeans vira mar e traga um barquinho. Puxado por um sujeito, vagão de brinquedo adquire a dimensão de um imenso trem de passageiros. Uma pequena caixa de papelão, forrada de miniaturas como pingüim de geladeira, panelas e outros utensílios, serve para ilustrar o lar claustrofóbico de uma pessoa solitária, cujo corpo assume desproporcionalmente o espaço. Um alfaiate come borboletas em forma de papeis, como se fosse a derradeira refeição.

Despojadas das palavras, as micro narrativas evoluem de forma quase independentes. Os quadros transpiram variadas camadas de emoção. Podem tanto ser dramáticos como melancólicos, gerar ternura ou soar patéticas. Vistos em conjunto, aludem ao absurdo da existência. Não por acaso, o Sobrevento serviu-se do livro Amerika (1957), o romance inacabado de Kafka, para deslanchar seu olhar para o estado atual das relações humanas. Na trama, um rapaz alemão é expulso de casa pelos pais, após engravidar uma empregada doméstica. Enviado aos Estados Unidos, mergulha em uma sociedade que pouco compreende. Só vai encontrar uma fresta de salvação ao se deparar com um circo, quando vislumbra a oportunidade de se tornar um artista.

O que o Sobrevento busca expressar, para impulsionar esse conjunto de metáforas poéticas, é o grande tema da obra kafkiana, o processo de desumanização e coisificação do outro.  Não há uma história linear, com começo, meio e fim, mas apenas situações se sucedendo. O tom é meditativo. O público cumpre missão importante. Cabe a ele construir o seu enredo ou tirar suas próprias conclusões a partir da sua projeção e identificação com itens facilmente reconhecíveis, como árvores secas, carrinhos de brinquedo, casas de bonecas, capazes de ativar memórias do passado. Na peça, as imagens mais dizem do que mostram. Como na literatura do escritor tcheco, as situações desembrulhadas no espetáculo carregam doses de ironia e dor, com pitadas de sarcasmo. Para dar certo alívio existencial ao desconforto dos personagens, ao aparente beco sem saída, em seu desfecho a montagem abre um naco de esperança. Ou comiseração? Como se tivessem sido expulsos do paraíso prometido, eles se reúnem ao pé de uma árvore, embora continuem solitários.  

A encenação conta com trunfos importantes. A música hipnótica de Arrigo Barnabé impregna o ambiente não para sublinhar os momentos. A intenção é claramente oferecer um contraponto, um ruído. Da mesma forma a iluminação sensível de Renato Machado instaura estados emocionais. A peça coloca em evidência indivíduos que habitam um mundo tão moderno quanto hostil e que parecem fadados a viver isolados. O teatro de objetos não é tão prosaico como alguns imaginam. Ele também pode expor a natureza cruel da realidade.

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto Fi Ramos)

 

Avaliação: Ótimo

 

Criação, Concepção e Dramaturgia: Grupo Sobrevento

Direção: Luiz André Cherubini e Sandra Vargas

Estreou: 11 de julho

Elenco: Sandra Vargas, Maurício Santana, Sueli Andrade, Daniel Viana e Liana Yuri   

Espaço Sobrevento (Rua Coronel Albino Bairão, 42, Metrô Bresser. Fone: 3399-3589). Sábado e domingo, 20h. Ingressos gratuitos (disponíveis meia hora antes na bilheteria ou pelo email O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. ). Até 18 de dezembro.

 

My Fair Lady

A trama é sabida: Henry Higgins, professor de fonética de família aristocrática, se propõe um desafio peculiar: o de transformar Eliza Doolittle, humilde e iletrada vendedora de rua, em uma dama da alta sociedade. O mote funciona para alavancar, nas entrelinhas, uma discussão sobre luta de classes – pobres x ricos – e a sempre difícil relação entre homem e mulher. Com estreia na Broadway em 1956, este célebre musical foi inspirado na comédia clássica Pigmalião, de George Bernard Shaw (1856-1950), e deixou um legado de belas canções, como I Could Have Danced All Night, On The Street Where You Live, Get Me To The Church On Time e The Rain In Spain. No Brasil, a primeira vez que texto e letras de Alan Jay Lerner e música de Frederick Loewe ganharam os palcos aconteceu em 1962. Assinada por Victor Berbara, Minha Querida Dama reuniu Bibi Ferreira, Paulo Autran e uma então jovem Marília Pêra.

A atual versão, de Cláudio Botelho, recebeu direção empolgante de Jorge Takla, que revisita a obra pela segunda vez – a primeira, em 2007, foi elogiada pela crítica, agradou o público e trazia como protagonistas os atores Daniel Boaventura e Amanda Acosta. Novamente o diretor concebeu um espetáculo imponente, que desliza elegante e suave, e extraiu rendimento elevado do grupo de trinta atores e intérpretes. Estreante num musical brasileiro, e dono de exitosa carreira internacional no mundo da ópera, o cantor lírico Paulo Szot prova que é também um ator de mão cheia. Ele incorpora um docente memorável, destilando as nuances de um Higgins misógino, irônico e odioso, inicialmente incapaz de reconhecer seu amor pela aluna, mas finalmente cedendo aos seus encantos. Apesar do personagem não exigir muita potência vocal, especialmente nos primeiros números, quando praticamente declama as canções, Szot exibe sua poderosa voz de barítono em Me acostumei com o rosto dela. Selecionada entre seiscentas candidatas, a bonita soprano goiana Daniele Nastri é uma agradável surpresa, na pele da carente florista – seu delicado timbre vocal ressoa nas músicas Agora eu vou dançar e Você vai.

No corpo do beberrão Alfred Doolittle, pai da moça, Sandro Cristopher está hilário, em especial nas cenas transcorridas num pub, ao entoar Um pouquinho assim de sorte e Me levem logo pro altar. Tem como coadjuvantes os inspirados Fernando Cursino (Harry) e Felipe Tavolaro (Jamie), no enredo seus companheiros de fanfarronice. Eduardo Amir desencapa com competência o Coronel Pickering, amigo do acadêmico. Bisando o papel da montagem passada, Fred Silveira interpreta com vigor e carisma Freddy, o rapaz apaixonado por Eliza. As talentosas Eliete Cigaarini e Daniela Cury se distinguem,  respectivamente, nas funções da elegante Sra. Higgins e da enérgica Sra. Pearce.

Para dar consistência e brilho à encenação, Takla se cercou de uma equipe técnica de altíssimo nível. Nicolás Boni, cenógrafo argentino de larga experiência em ópera, e agora debutando em musicais, criou um cenário extremamente sofisticado, com destaque para o salão de baile da Embaixada da Transilvânia. Na abertura, concebeu um enorme telão, que reproduz um jornal britânico dos anos 1910. Trata-se de conveniente junção de diversas notícias da época, numa alusão aos temas do musical – há espaço até para uma crítica de Pigmalião, em sua estreia em 1914. Fábio Namatame, responsável pelos figurinos da outra adaptação, dessa vez deu um ar mais contemporâneo e sofisticado às peças para combinar com a suntuosidade do cenário – ele apostou em cores mais densas, com o predomínio do colorido. O diretor musical Luís Gustavo Petri, que divide a regência com Natan Bádue, reescreveu os compassos originais, moldando-os para os catorze músicos da orquestra. A competente Tânia Nardini elaborou uma coreografia movimentada e divertida. A luz desenhada por Ney Bonfante é também um dos pontos altos da produção. Eficiente e sedutor, o musical é um estudo sobre a natureza humana e os códigos e valores das classes sociais. Com direito a desfecho não previsível.

(Vinicio Angelici – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto João Caldas)

 

Avaliação: Ótimo

 

My Fair Lady

Baseado no clássico Pigmalião, de George Bernard Shaw 

Texto e Letras: Alan Jay Lerner

Música: Frederick Loewe

Direção: Jorge Takla

Elenco: Paulo Szot, Daniele Nastri, Sandro Christopher, Fred Silveira e outros.

Estreou: 27/08/2016

Teatro Santander (Shopping JK. Avenida Juscelino Kubitschek, 2.041,  Itaim. Fone: 4003-1022). Quinta e sexta, 21h; sábado, 17h e 21h; domingo, 16h e 20h. Ingresso: R$ 50 a R$ 260. Até 11 de dezembro.

 

Eu Tenho Tudo

O local parece uma estação de trem deserta ou abandonada. Nesse ambiente mal iluminado, perambula um homem trajado de terno, que murmura febrilmente. Aos poucos ele se torna compulsivo e desata um diálogo agressivo endereçado a um interlocutor invisível. Cospe insultos e xingamentos contra um inimigo sem identidade e rosto, que se mantém em silêncio ou ausente. Seu discurso é megalomaníaco e pontuado pelo refrão “eu tenho tudo”.  Ele não teme nada, acredita poder destruir qualquer um, se vê poderoso e nem o presidente dos Estados Unidos, mesmo contando com bombas, fábricas e aviões, dispõe de sua força. O outro, em sua concepção, não oferece e não tem nada. Escrita pelo dramaturgo argelino Thierry Illouz, um advogado especializado em direito penal e do trabalho, a peça é um soco no estômago. O texto recebeu montagem inspirada de Cácia Goulart e interpretação poderosa de Pedro Vieira, que mergulhou nas entranhas desse personagem em sua luta desesperada para contornar sua impotência, a suposta condição de vítima e o sentimento de humilhação.

Instalado o desconforto, por meio desse histérico fluxo verbal, o público vira testemunha de seu desprezo e é jogado nessa torrente de ódio que chega, por instantes, a ficar insuportável. Em momento algum a narrativa esclarece as razões de seu comportamento e o porquê de sua revolta. Nota-se apenas que ele, embriagado pela arrogância, se deixou absorver pela ideia fixa de se julgar um homem forte, que precisa conduzir essa batalha imaginária até o fim. A grande sacada do enredo, e um dos motivos de seu interesse, é que o personagem, apesar da exposição triunfalista, não passa de um despossuído, que fracassou em tudo, perdeu o amor, o trabalho e a dignidade. Uma realidade, aliás, que ele procura negar de forma veemente, nem que tenha que repetir regularmente ser detentor de certa quantia em euros na conta bancária. Uma “fortuna” que, presume-se, faria dele um homem superior. Se ele é tão rico como anuncia, por que estaria tão colérico e irascível?

A direção de Cácia Goulart mantém a tensão real a flor da pele e instaura um clima sombrio e fantasmagórico. A encenação ganha feição de uma arena destinada a um acerto de contas. Há problemas na adaptação, como certa redundância e prolixidade que ensebam a trama. Ou sequências que parecem sinalizar um desfecho que não acontece. Nada que esmoreça o diálogo de surdos que se estabelece no palco. Para não cair na monotonia e desandar o ritmo, possível num espetáculo que escorre permanentemente em estado de alta pressão, a saída foi implementar marcações não convencionais e surpreendentes. 

Pedro Vieira é intenso e cresce em cena na medida em que incorpora essa figura sem passado e de destino incerto, atormentada em sua prisão mental, que detém uma arma e crê ser possível exercer justiça com as próprias mãos. O ator exibe domínio vigoroso da linguagem. Ele enfrenta o desafio sem apelar para o clichê e a vulgaridade. A interpretação faz com que o espectador sinta a agitação e o nervosismo do personagem, perceba nas entrelinhas a fragilidade e pobreza espiritual de um homem exposto ao exercício de arrolar suas hipotéticas virtudes morais e materiais. Por sinal, um mecanismo de compensação acionado para lidar com eventos traumáticos.

O autor deve ter se inspirado no dramaturgo francês Bernard-Marie Koltèz, cujas peças são marcadas pela necessidade vital de diálogo, mas que, paradoxalmente, desnudam a impossibilidade da comunicação. Illouz engendra uma crítica feroz ao estado atual da humanidade. A vociferante criatura se rebela contra a imagem que a sociedade construiu dele, a de um sujeito relegado à margem do sistema. Um perdedor, diante de um mundo moldado para estimar e apreciar somente os vencedores. Daí a necessidade de se travestir de arrogante para conseguir suportar a dor.  Para não afundar, ele aponta o dedo para o outro, desdenha do antagonista inventado. Seu poder reside nas palavras. Não por acaso o personagem vai se desfazendo de seu uniforme de executivo – armadura, melhor dizendo - até ficar desnudo Exatamente como ele é ou se encontra no momento. 

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )  

(Foto Cacá Bernardes)

 

Avaliação: Bom

 

Eu Tenho Tudo

Texto: Thierry Illouz

Direção: Cácia Goulart

Elenco: Pedro Vieira

Estreou: 29/01/2016

Viga Espaço Cênico (Rua Capote Valente, 1323, Pinheiros. Fone: 3801-1843). Segunda e terça, 21h. Ingresso: R$ 40. Até 29 de novembro.

A Reunificação das Duas Coreias

Não se iluda com o título, porque se trata de uma pista falsa. A peça não fala de política internacional e seus desdobramentos. O nome foi extraído de uma cena, na qual um homem relata à sua desmemoriada mulher como ambos haviam se apaixonado. Na ocasião, eles se sentiam como duas metades de um todo e, ao se unirem, ganharam força incomensurável. Simbolicamente, a atitude equivaleu a uma presumível reunificação das Coreias do Sul e do Norte, há décadas separadas. Uma metáfora sobre a perpétua dificuldade que cerca a união amorosa entre duas pessoas. Nesse texto do dramaturgo e diretor francês Joel Pommerat (Ça Ira / Cinderela / Esta Criança), que recebeu montagem elegante de João Fonseca, o tema crucial que percorre as dezoito micro tramas reunidas é este sentimento de afeição, ternura e carinho. Aquele que produz encontros e desencontros, guarda ambigüidades e contradições, ilude e atemoriza, atrai e distancia amantes, pais e filhos, médico e paciente, advogado e cliente, professor e aluno. Enfim, aquele que se intromete nas mais diversas relações humanas.       

O mérito dessa obra, simples só na aparência, não é falar do amor extraordinário. O que se oferece é uma visão do amor por meio de ângulos inesperados. O público acompanha uma sucessão de pequenos episódios independentes, protagonizados por seres que vivem circunstâncias de certa forma triviais. Mas que são flagrados em momentos capitais, em situações-limites de perda, separação, obsessões, agressividade, impasses, incertezas e dilemas. Para compor esse eloqüente painel sobre o comportamento afetivo nos tempos atuais, o autor desembrulha diálogos curtos, secos e sem tergiversações. Intencionalmente, nenhuma cena tem desfecho conclusivo.      

Há, por exemplo, uma faxineira que revela particularidades sobre o seu casamento sem perceber que o marido jaz morto no mesmo ambiente. Uma paciente, grávida, discute com a médica de uma instituição psiquiátrica, que defende o argumento de que a jovem não tem condições de criar a criança – aos poucos, o jogo se inverte e a profissional expõe sua tragédia pessoal. Em passagem de atmosfera fantasmagórica, um casal de namorados é surpreendido pela aparição de um antigo amor dela. Pontuado por humor negro, um matrimônio se esfarela após revelações das irmãs da noiva. Em outra sequência, os pais de um aluno problemático vão tirar satisfações na escola e ficam desconcertados ao topar com o sentimento sincero entre professor e estudante. Uma mulher abandona o marido, apesar de reconhecer que se amam, com a justificativa de que só o amor não basta.  

O espetáculo não se estrutura numa progressão dramática convencional, uma vez que a fragmentação faz parte da essência da peça. Por conta disso, uma sutil monotonia pode eventualmente incomodar o espectador, submetido por quase duas horas ao mesmo tom e estilo. A interpretação também caminha no mesmo sentido, num registro que dispensa emoções exacerbadas ou ações físicas extremas. Nada disso empana o brilho da montagem. A direção de João Fonseca dispensa artifícios, afinado a uma cenografia minimalista, e obtém equilíbrio entre os enredos, os personagens e os contextos, sempre diferentes e marcados por cortes repentinos – as cenas são descontinuadas quase sempre nas horas de sinuca e embaraços.

O diretor extrai do elenco desempenhos fortes, intensos e comoventes. Os sete atores se desdobram em 47 diferentes personagens, sem perder precisão e vigor. Eles dão vida a indivíduos que encontramos no nosso dia a dia, com seus arroubos, ímpetos, ganas, vaidades, egoísmos, limites e outros instintos básicos de qualquer ser humano. Bianca Byington e Marcelo Valle pontificam no palco, inoculando nuances e matizes às variadas figuras que incorporam. A atriz, por exemplo, entrega desempenho cortante na pele da médica perturbada emocionalmente. O ator é agudo na composição do professor acusado de assédio. Gustavo Machado transita com vivacidade e fluência por diversos papéis. Solange Badim e Reiner Tenente engatam performances energéticas. Letícia Isnard está especialmente inspirada como a descrente prostituta que ainda luta por uma réstia de dignidade. Verônica Debom encanta na representação da jovem grávida que vive espécie de epifania.

A equipe técnica trabalha em harmonia com a proposta da encenação. Os figurinos de Antônio Guedes ressaltam tonalidades escuras. Nello Marrese elaborou uma cenografia demarcada por biombos que descomplicam a movimentação cênica. A iluminação sombreada de Renato Machado ambienta desde residências a espaços comerciais e esquinas de ruas.

Por meio desses recortes de histórias, o dramaturgo projeta homens e mulheres resignados aos seus destinos trágicos, sem direito a heroísmos. Mais do que dramáticos, os clichês das relações amorosas adquirem aqui ares de absurdo e irracionalidade. Parece que o desejo de nunca estar sozinho move as criaturas de Pommerat. Se num primeiro instante o título da peça soa estranho e despropositado, ao longo do espetáculo a expressão fica cada vez mais familiar.

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )   

(Foto Victor Hugo Cecatto)

 

Avaliação: Bom

 

A Reunificação das Duas Coreias

Texto: Joel Pommerat

Direção: João Fonseca

Elenco: Bianca Byington, Solange Badim, Marcelo Valle, Gustavo Machado, Verônica Debom, Letícia Isnard e Reiner Tenente 

Estreou: 16/09/2016

Teatro Morumbi Shopping (Avenida Roque Petroni Júnior, 1.089, Morumbi. Fone: 5183-2800). Sexta e sábado, 21h; domingo, 18h. Ingresso: R$ 50 e R$ 70. Até 23 de outubro. 

Uma Ilíada (RJ)

No palco, poderosos exércitos estão se engalfinhando. Cortantes lanças são disparadas, perfurando corpos. O sangue jorra. Ouvem-se as lamúrias dos derrotados e os urros dos vencedores. Encastelados no Olimpo, deuses espreitam esses homens inebriados pelo ódio e vingança, ora facilitando ora complicando os acontecimentos, sem dissimular suas preferências. O notável é que todo o horror da guerra e da brutalidade é evocado por meio apenas das palavras vocalizadas por um único ator em cena. Inteligente, o texto dos dramaturgos americanos Lisa Peterson e Denis O´Hare é uma adaptação do célebre poema narrativo de Homero sobre a mítica Guerra de Tróia. Ganhou inspirada montagem, com direção e atuação de Bruce Gomlevsky, com passagem por São Paulo e atualmente em temporada carioca.

O foco aqui não é o conflito integral, que se alongou por uma década entre 1300 a.C e 1200 a.C, opondo gregos e troianos, mas apenas algumas semanas do confronto. Os autores substituíram o caráter monumental da obra épica por uma versão mais condensada, em formato de monólogo, porém com o cuidado de preservar a sua essência. A trama ganha sentido e eloqüência pela voz de um poeta misterioso, que afirma ter estado presente em Tróia e testemunhado o evento ao vivo. Trata-se de uma figura ficcional, que tanto pode ter sido um guerreiro, mercenário ou até mesmo Homero. Seja como for, na pele desse arauto ele olha nos olhos da assistência e a conduz com desembaraço a uma expedição pelos campos de batalha. O público imerge em uma conflagração irrompida após a bela Helena, casada com Menelau, rei de Esparta, ter sido raptada por Páris, príncipe de Tróia, estopim da desforra empreendida pelo marido traído.

A pujança do relato se explica pela feliz combinação de uma linguagem casual e espontânea, como a de alguém que conta histórias ao redor de uma fogueira, com o envolvimento intensamente emocional do narrador com os episódios reportados e comentados. O efeito disso é que tanto mortais quanto deuses parecem íntimos da plateia. O enredo ilumina especialmente os guerreiros rivais Aquiles e Heitor. Mas o menestrel dá vida e relevância também a uma série de personagens fantásticos. Como o arrogante líder grego Agamenon, coagido a entregar sua amante para evitar a vingança de Apollo sobre as suas tropas. Pátroclo, o melhor amigo de Aquiles, que morreu em combate contra Heitor, usurpador de sua armadura. Príamo, rei de Troia, em sua obsequiosa jornada para resgatar o corpo do filho assassinado Heitor e garantir um enterro honroso para ele.

Um dos méritos dessa montagem é que ela consegue varrer uma possível poeira acumulada sobre a saga troiana. Mesmo antiga, a história continua empolgante e sedutora. Escorado em desempenho visceral, Gomlevsky exibe ampla gama de emoções e impinge à narrativa uma urgência desesperada. Ao relatar reuniões e discussões, o vai-e-vem das batalhas e duelos, o caráter dos personagens e o contexto histórico da Guerra de Tróia, o ator investe intensidade vocal e física. Em certas passagens, sua voz potente muda de tom, dando lugar a uma fala sem impostação. Salta com agilidade impressionante do protocolo retórico, ao descrever os momentos bélicos, ao registro lírico, ao inventariar as paixões que inflamaram gregos e troianos. Pontualmente sua narração é entrecortada por música sutil e dramática, executada pela contrabaixista Alana Alberg, além de entoar cânticos como se estivesse em transe.

O envolvente espetáculo transcorre em um espaço cênico sem adornos, com bordas enfeitadas por velas. A encenação escoa com fluência, mesmo sem contar com as facilidades da ação dramática. É puro teatro - a iluminação assinada por Elisa Tandeta e o figurino concebido por Carol Lobato contribuem de maneira inteligente para o triunfo. O espectador não familiarizado com os acontecimentos históricos não precisa se inquietar. Ele se conecta naturalmente, porque a adaptação foi construída contemplando referências atuais. No desfecho incômodo, com ares de denúncia, o trovador empilha uma sucessão de massacres e extermínios que infestaram o passado remoto e ainda no presente continuam a devastar a humanidade. É uma maneira de sublinhar a perenidade dos impulsos violentos do homem ao longo de sua existência.

A peça mostra que o preço da raiva pode ceifar vidas, que o custo do orgulho masculino produz destruição, que a sede de sangue faz parte da natureza dos seres humanos. Daí o pesar de saber que entre Tróia e a Síria atual, por exemplo, há mais similaridades no tocante à carnificina humana do que gostaríamos de enxergar. Nessa releitura moderna de um clássico épico e fundamental, por sinal o mais antigo texto literário do Ocidente, o narrador captura e expõe o horror e o heroísmo em uma guerra. Ou melhor, por meio de seus relatos, compreendemos porque o pacifismo é um conceito cada vez mais em desuso.      

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )  

(Foto Dalton Valério)

 

Avaliação: Ótimo

 

Uma Ilíada

Texto: Lisa Peterson e Denis O´Hare

Direção e Atuação: Bruce Gomlevsky

Estreou: 05/11/2015

Teatro Maison de France (Avenida Presidente Antônio Carlos, 58, Centro. Fone: 21. 4003-2330). Sexta e sábado, 21h; domingo, 18h. Ingresso: R$ e R$ 50. Em cartaz por tempo indeterminado. 

Forever Young

Os personagens aqui, na beirada dos noventas anos, não estão parados no tempo, entregues à letargia e à placidez. Nos intervalos em que a enfermeira se ausenta do local, um retiro de artistas aposentados, eles resgatam a vitalidade do passado e incendeiam o lugar. Apesar das dificuldades em andar, falar e se lembrar, esta trupe de ex-cantores e ex-atores ainda consegue cantar, interpretar e se divertir como crianças. Ambientada em 2050, a comédia musical do dramaturgo suíço Erik Gedeon, que ganhou versão brasileira assinada por Jarbas Homem de Melo, não se erige a partir de uma trama convencional e diálogos responsáveis pelo desenvolvimento do enredo. Sua estrutura é simples. É possível afirmar que a dramaturgia se constrói ao longo de uma sucessão de esquetes, temperadas por canções que servem para contar a história e transmitir emoções. Até porque, em uma casa de repouso não costumam acontecer muitas coisas e todos estão reféns das atribulações da idade, quando as articulações ficam mais rígidas e a mente não exala mais o vigor de antes. Na proposta bem sucedida do autor, cabe ao espectador observar o comportamento desses homens e mulheres quase centenários e meio amalucados que, no ocaso da existência, ainda se dedicam a viver a vida em sua plenitude – na apresentação inicial, cada um deles surge em cena exibindo suas limitações físicas, manias e rabugices.

A essência da peça salta à vista por meio da reencenação desajeitada de clássicos teatrais, números de dança, canto e mágica, travessuras feitas com espírito adolescente, lembranças evocadas, alguns conflitos e certas implicâncias. Não por acaso, pelo cenário estão espalhados cartazes de montagens de vários atores nacionais, num tributo aos artistas que fazem parte da crônica do teatro brasileiro. É essa combinação em fina sintonia que dá liga ao texto. Por sinal, os atores usam seus próprios nomes. Nesse lar da terceira idade, vemos figuras ímpares como o apaixonado casal Cláudia (Claúdia Ohana) e Jarbas (Jarbas Homem de Melo), que se conheceu em uma fila durante uma audição. Ela chegou a ser diva dos palcos em papeis como Julieta em Romeu e Julieta, e Nina, de A Gaivota. Ele atuou como mágico, performer e sapateador. Homem de poucas palavras e um tanto mal-humorado, Tumura (Marcos Tumura) foi roqueiro e hippie. Com tosse persistente, o ex-ator Carmo (Carmo Dalla Vecchia) é um viúvo solitário e romântico, que tem o estranho hábito de carregar um aquário. Ex-ativista na mocidade, a radical Paula (Paula Capovilla) é desbocada e adepta do lema sexo, drogas e rock´n´roll. Um pianista (Miguel Briamonte) contracena com os demais por olhares e gestos. Há ainda uma enfermeira (Fafy Siqueira) que, embora revele zelo pelos residentes, perde facilmente as estribeiras diante das atitudes intempestivas dos velhinhos.       

Escorado em boas atuações, o elenco enfrenta o desafio com diligência e caracterizações que buscam fugir de estereótipos, num trabalho gestual que contou com a preciosa participação da preparadora Renata Mello. A atriz Cláudia Ohana é convincente na pele de uma senhora que, assolada por sinais de demência, por vezes caminha aleatoriamente pelo espaço. Jarbas Homem de Melo mostra desembaraço ao dar vida a um sujeito doce e terno. Dona de voz poderosa, Paula Capovilla arranca risos na composição de uma senhora ao mesmo tempo rude e irreverente. Carmo Dalla Vecchia e Marcos Tumura exibem desempenhos seguros. Ambos protagonizam uma sequência na qual seus respectivos personagens se distraem agredindo um ao outro, empregando para isso formas bastante criativas. Tumura enseja ainda outra cena burlesca, ao cantar em forma de pot-pourri por não se lembrar integralmente das músicas. Conhecida pela veia cômica, Fafy Siqueira faz a enfermeira sem tato, que em uma passagem absurda interpreta uma música que fala da morte e de proximidade que eles estão da sepultura. Como um atônito pianista que eventualmente recorre a uma máscara de oxigênio, Miguel Briamonte executa canções que captam e expressam o temperamento, o ânimo e o humor dos personagens. São hits que marcaram várias gerações, um mosaico que inclui de Califórnia Dreamin a Rehab, de Forever Young a Smells Like a Teen Spirit, de Valsinha a Do Leme ao Pontal.

O espetáculo abre espaço para extratos dramáticos, mas é o tom cômico que sobressai. Não faltam exemplos de momentos hilariantes. Como um número mequetrefe de ilusionismo, uma personagem que perde pedaço do corpo, uma urna posicionada sobre o piano que contém as cinzas de um artista famoso – aliás, durante a encenação brotam referências ao universo artístico brasileiro. Mesmo vinculado ao registro da comédia, o texto expõe uma colcha de temas contemporâneos relacionados à maneira como os idosos são tratados em um mundo marcado pela ode à juventude. Isso não significa que a obra seja condescendente com os mais velhos. Há um esforço visível para difundir o conceito de que qualquer pessoa, não importa a sua faixa etária, tem plenas condições de brincar e dar asas à sua imaginação. O musical trata de forma delicada e bem-humorada a inevitável passagem do tempo.

(Emerson Rossi – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto Divulgação)

 

Avaliação: Bom

 

Forever Young

Texto: Erik Gedeon

Direção: Jarbas Homem de Melo

Elenco: Jarbas Homem de Melo, Fafy Siqueira, Cláudia Ohana, Carmo Dalla Vecchia, Marcos Tumura, Paula Capovilla e Miguel Briamonte.

Estreou:19/08/2016

Theatro Net São Paulo (Shopping Vila Olímpia. Rua Olimpíadas, 360, Vila Olímpia. Fone: 4003-1212). Sexta e sábado, 21h; domingo, 18h. Ingressos: 50 a R$ 100. Até 18 de dezembro.  

Vermelho

Nesta peça, o dramaturgo norte-americano John Logan desembrulha rico e amplo espaço para uma poderosa reflexão sobre o papel do artista na sociedade, o significado da arte, as razões para criá-la e sua função no mundo. O pintor Mark Rothko (1903-1970), um dos nomes mais expressivos nas artes plásticas do pós-guerra, está em crise. Trata-se de um homem criativo mergulhado em absoluta angústia, com sérias dificuldades de lidar com o paradoxo de ter que agradar consumidores fúteis que podem comprar o seu trabalho. Ele discursa sobre a guerra entre arte e comércio e de como a cultura se transformou em mero entretenimento. Em sua maneira de enxergar as coisas, a arte deve ser séria ou está condenada a não merecer existir.

Assinada por Jorge Takla e estrelada por Antonio Fagundes e Bruno Fagundes, pai e filho na vida real, a vigorosa montagem dá vida a esse debate acalorado. Tudo é muito intenso, emocionante e envolvente neste texto, que extrapola os limites da discussão sobre a natureza rebelde do processo artístico e a aflição de quem busca a perfeição no ofício para alavancar observações instigantes sobre a vida e a morte. A trama é ambientada no final dos anos 1950, no ateliê de Rothko, artista nascido na Rússia e naturalizado americano, que se tornou estrela do expressionismo abstrato, ao lado de Jackson Pollock e Willem de Kooning. O espectador acompanha o relacionamento dele, em um momento em que já começa a perder o tônus de influência, com o jovem aspirante a pintor Ken. Mediante um cachê milionário, ele está produzindo uma série de murais para enfeitar as paredes do novo e elegante restaurante do Four Seasons, instalado na cobertura do edifício de um arquiteto renomado. Da mesma forma que o aluno vai invadir o espaço do mestre, este está prestes a coabitar o ambiente dos endinheirados. 

O grande trunfo do espetáculo é que o conteúdo estético, conceitual e filosófico levado a cabo pelos personagens não se perde em verborragia chata. Concomitante às discussões sobre a história da arte e suas implicações, aflora uma sedutora disputa verbal entre mestre e aprendiz e seus pontos-de-vistas e concepções acerca da arte e da vida. Um duelo entre dois homens, pontuado por músicas clássicas e respeito reverente, mesmo nos instantes mais loquazes. Rothko não é um artista fácil de se relacionar e Ken se dá conta disso. Logo de cara ouve do mestre que hoje em dia todo mundo gosta de tudo e que vivemos sob a tirania do bem, num mundo sem discernimento. Da mesma forma, é informado de que a pintura que ele cria é para a posteridade e não pela fama ou fortuna. "Eu estou aqui para fazer você pensar, não para pintar quadros bonitos", avisa, mesmo insistindo não ser professor – obcecado pelo significado de formas e matizes, quer ensinar o pupilo a olhar a arte não como um borrão na tela, mas como um desfile de emoções. Culto, influenciado pela obra de Nietzsche, Rothko passeia por Sócrates a Shakespeare, Freud a Yung e ataca, com raciocínio afiado, a cultura pop do dia, desancando, por exemplo, o trompetista e cantor de jazz Chet Baker e o pintor iconoclasta Andy Warhol. Ambos, sustenta, carecem de profundidade e substância. A montagem oferece diálogos fortes e cenas pungentes. Em uma delas, os protagonistas pintam a mesma tela como se compusessem uma sinfonia, em um momento delicado de entrelaçamento. Em outra sequência, poeticamente dilacerante, Rothko vocifera a sua visão dos murais pendurados no Four Seasons, quando teme o rebaixamento de seu trabalho a mero papel decorativo, em vez de significar veículo para a transformação. Afinal, suas pinturas estarão emoldurando um lugar de negócios, com executivos engravatados mais interessados em refeições e transações do que vermelhos e pretos.

A direção de Takla é sutil e inteligente o suficiente para não criar ruídos desnecessários.  Ele desenha uma encenação que ajuda a manter as idéias em movimento e o fluxo da ação, ocupando o tempo ocioso entre as conversas dos personagens com uma série de mudanças efetuadas no palco pelos atores – telas descem e sobem e a mesa de trabalho se desloca de um ponto a outro, por exemplo. Tais momentos de silêncio funcionam não só de contemplação como alívio para as disputas verbais que ocorrem. A minuciosa  iluminação, de Ney Bonfante, tem ares de partitura porque rege o discurso de Rothko sobre a importância da luz para não quebrar o feitiço da obra e deixá-la radiante e viva.  Apesar do peso do texto, a leveza do espetáculo garante o interesse do público até o último minuto. Mesmo o clichê do artista atormentado, em crise com suas criações, tão comum no cinema, literatura, teatro e nas artes plásticas, é contornado satisfatoriamente pelo diretor, que mantém o foco no universo rico e pulsante da pintura.

Com visível química no palco, ambos os atores destravam desempenhos apaixonados, até nas pequenas ações, como misturar a tinta, preparar a tela, debater a luz ideal para realçar um quadro. Antonio Fagundes preenche de energia e vitalidade um personagem arrogante, vaidoso e brilhante, que caminha exalando mau humor e agressividade criativa. Seu Rothko é uma figura que cativa mesmo suando reclamações pelos poros e lascando suas obsessivas percepções sobre a vida e a arte. Ele o impregna com a ansiedade de um homem com medo de que o seu lugar no mundo da pintura esteja  por um fio. Bruno Fagundes, intérprete em processo de maturação, aproveita a ainda pouca experiência teatral a favor da composição de Ken, injetando humanidade ao assistente que luta para se tornar um pintor de vida própria. O ator faz o personagem evoluir da condição de aluno curioso para o artista que descobre a sua sensibilidade artística e adquire consciência de seu papel no jogo, chegando a desafiar a visão artística do mestre. Um dos momentos mais veementes é justamente quando ele mede forças com Rothko e defende apaixonadamente a sua forma de ver a arte. O texto de Logan evidencia o embate de duas gerações que brigam pelo significado e o propósito da arte. Escancara o dilema de todo criador que, para sobreviver em um mundo mercantilizado, muitas vezes precisa abdicar do compromisso estético e ideológico para encher o bolso. E põe em cena um artista que, fadado ao declínio, brada contra a irrupção da próxima caravana de artistas, também tão inquieta, provocadora e talentosa quanto ele.   

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )
(Foto João Caldas)

 

Avaliação: Ótimo

Vermelho

Texto: John Logan

Direção: Jorge Takla

Elenco: Antonio Fagundes e Bruno Fagundes

Estreou: 24/03/2012

Teatro Tuca (Rua Monte Alegre, 1024, Perdizes. Fone: 3670-8455). Sexta e sábado, 21h30; domingo, 18h. Ingresso: R$ 60 a R$ 80. Em cartaz até 04 de dezembro.

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